Correio da Cidadania

Em defesa do voto obrigatório

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Existe um mal-estar no senso comum em relação ao voto obrigatório. Toda obrigação incomoda. Este fato, indiscutível, favorece os defensores do voto facultativo, que se apresenta como elemento de desmonte da praga dos currais eleitorais. Falso. Na República Velha, o voto era facultativo e os currais proliferavam. O voto obrigatório foi implantado na década de 30 e os curais continuam a operar até hoje. Ou seja, sendo obrigatório ou facultativo, o voto pode se tornar mercadoria: a coerção que encurrala eleitores é de outra natureza.

 

No entanto, razões não faltam para o sucesso de público da proposta. Ela joga com a desmoralização da política em geral e com a descrença no voto como instrumento efetivo de mudança (elementos que favorecem a cristalização do poder de quem já está por cima) e, ao mesmo tempo, ainda aparece como uma concessão à liberdade individual. Desobrigado de votar, o indivíduo fica mais “livre” ao deixar de “perder” aquele pedaço do dia em que, de dois em dois anos, comparece na sessão eleitoral. Falsa conquista, perigoso conceito de liberdade individual que compromete a realização do princípio republicano da soberania popular.

 

O voto, além de um direito duramente conquistado, deve ser considerado um dever cívico, sem o exercício do qual aquele direito se descaracteriza ou se perde, afinal liberdade e democracia são fins e não apenas meios. Quem vive numa comunidade política não pode estar desobrigado de opinar sobre os seus rumos. Nada contra a desobediência civil, recurso legítimo para o protesto cidadão que, no caso eleitoral, pode se expressar no voto nulo (cuja tecla deveria constar na máquina de votar).  A questão, no caso, é outra. Com o voto facultativo, o direito de votar e o de não votar ficam inscritos, em pé de igualdade, no corpo legal. Uma parte do eleitorado deixará voluntariamente de opinar sobre a constituição do poder político.  O desinteresse pela política e a descrença no voto serão registrados como mera “escolha”, sequer como desobediência civil ou protesto. A consagração da alienação política como um direito legal interessa aos conservadores, reduz o peso da soberania popular e desconstitui o sufrágio como universal.

 

Ganha com a mudança quem quer o povo na “maioria silenciosa”, gigante adormecido, aglomerado de consumidores, nunca como titular soberano e organizado do poder político. Nos EUA, onde o voto é facultativo, a abstenção eleitoral é enorme e tende a se perpetuar nos mesmos grupos sociais e étnicos, especialmente os discriminados socialmente e os negros. A redução da universalidade do sufrágio se expressa como exclusão social e elemento efetivo de cristalização do poder nas mãos da chamada “classe política”.  No quadro brasileiro atual, a investida neoliberal no “Estado mínimo” se associa à teoria da representação mínima, que articula voto facultativo, cláusula de barreira e sistema distrital misto. Querem reduzir a participação política, eliminar partidos e esterilizar o voto de oposição.

 

Para o cidadão ativo, que além de votar se organiza para garantir os direitos civis, políticos e sociais, o enfoque é inteiramente outro. O tempo e o trabalho dedicado ao acompanhamento continuado da política não se apresentam como restritivos da liberdade individual. Pelo contrário, são obrigações auto-assumidas no esforço de construção e aprofundamento da democracia e de vigília na defesa das liberdades individuais e públicas. A idéia de que a democracia se constrói nas lutas do dia-a-dia se contrapõe, na essência, ao modelo liberal. O cidadão escolado na disputa política sabe que a liberdade de não ir votar é uma armadilha. Para que o sufrágio continue universal, para que todo poder emane do povo e não dos donos do poder econômico, o voto, além de um direito, deve conservar a sua condição de dever cívico.

 

 

Léo Lince é sociólogo

 

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