Correio da Cidadania

A polêmica de Angra III

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Não é preciso ser economista para saber que não se deve investir dinheiro bom para salvar um mau projeto, porque o prejuízo aumenta. Não foi à toa que os norte-americanos cunharam o adágio “Sunk costs are like spilt milk. They must be ignored, because they cannot be recovered by the decision to accept or reject a project” (Custos afundados são como leite derramado. Devem ser ignorados, porque não podem ser recuperados pela decisão de aceitar ou rejeitar um projeto).

 

No entanto, o principal argumento dos defensores de Angra III é o de que “já foram gastos US$ 750 milhões na obra, quantia que será desperdiçada, caso se rejeite a conclusão do projeto”. Trata-se de uma incoerência porque, se Angra III entrar em operação, o prejuízo aumentará na medida da diferença entre seus custos de geração e os das hidroelétricas, e também porque – como sempre acontece – o que se gastaria para construir a obra excederia em muito o valor previsto pelos otimistas (US$ 1,8 bilhão). E nem falemos das despesas financeiras... Por conseguinte, é melhor lançar desde já aquele valor na conta de prejuízos, do que vê-lo crescer em bola de neve.

 

Pode-se, entretanto, tentar diminuir o prejuízo, mediante a venda dos equipamentos já comprados e estocados a países que – por não mais disporem de alternativas hidroelétricas comparáveis às brasileiras – tenham que investir em grandes programas eletronucleares, como o Irã e a China, por exemplo. É possível que se consiga, por aqueles equipamentos, algo em torno de 20% a 30% do preço original.

 

Os interessados na obra argumentam também que “a decisão de concluir Angra III é de fundamental importância para a continuidade do programa nuclear brasileiro”.

 

Ocorre que usinas eletronucleares não são construídas para dar continuidade a programas que começaram tortos, mas sim para gerar eletricidade. Para isso, devem elas ser operadas por profissionais qualificados e experientes.

 

Angra I e Angra II são operadas por uma subsidiária da Eletrobrás, a Eletronuclear (antiga Nuclen), na qual trabalham excelentes profissionais, treinados para operar usinas nucleares equipadas com reatores a água leve pressurizada. Esses profissionais renovam-se continuamente, com os "juniors", que chegam, absorvendo tecnologia e experiência operacional dos "seniors" que estão em fim de carreira. Não cabe a eles a atribuição de projetar novas usinas. E não é necessário construir Angra III para que os quadros da Eletronuclear se renovem.

 

Façamos aqui um paralelo com a indústria aeronáutica: construir Angra III equivale a comprar um moderno Boeing, que pode ser pilotado com muita competência pelos pilotos formados nas companhias aéreas brasileiras. Esses pilotos operam os aviões, mas não têm preparo para desenvolver tecnologia de projeto de aviões. De fato, não obstante a Varig e outras companhias sempre tenham comprado e operado aviões modernos, a indústria aeronáutica brasileira só nasceu com a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, que estimulou a criação da Embraer e suas empresas satélites, nos segmentos de mecânica fina e eletrônica de instrumentação. 

 

Analogamente, a capacitação brasileira para fazer o projeto básico, desenvolver os materiais e desenhar os sistemas de uma usina eletronuclear só virá quando o governo – em vez de comprar projetos feitos no exterior, como o de Angra III – entregar aos nossos centros de excelência a responsabilidade de desenvolver e construir um protótipo, e em seguida escalá-lo para escala industrial. Os centros de que falo são o IPEN – Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo e o CTM/SP – Centro Tecnológico da Marinha em Aramar, nos quais se desenvolveu a tecnologia brasileira de enriquecimento de urânio. De muito bom nível são também a COOPE/UFRJ, o IEN e o CDTN (do ministério da Ciência e Tecnologia), a Universidade de São Carlos e a Unicamp. É a partir desses centros que se deve dar continuidade a um programa nuclear brasileiro na direção correta.

 

Por fim, alegam os defensores de Angra III que “o término da obra permitirá que o país complete a unidade de enriquecimento de urânio e alcance a auto-suficiência na produção do combustível nuclear”.

 

Sobre isso, o fato é que a unidade de Resende não tem capacidade para abastecer sequer a usina de Angra I, muito menos Angra II, e não será Angra III que vai viabilizá-la.

 

Aliás, considerando-se a importância estratégica do ciclo do combustível nuclear, não tem sentido falar-se em viabilidade econômica. De fato, nada impede que a unidade de Resende seja ampliada e que o governo compre parte de sua produção, para acumular um estoque estratégico de urânio enriquecido a 3%, que é impróprio para construir bombas, porém importantíssimo para ser usado mais tarde, nas usinas desenvolvidas no contexto de um legítimo programa nuclear brasileiro.

 

 

Joaquim Francisco de Carvalho, licenciado em Física e mestre em Engenharia Nuclear, foi diretor industrial da NUCLEN.

 

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