Do Instituto Cidadania ao governo Lula: a necessidade de um novo modelo no setor elétrico
- Detalhes
- Valéria Nader
- 28/08/2007
Unanimidade em busca da mudança
A constatação inequívoca da inadequação do modelo energético vigente no Brasil, a partir da acelerada liberalização do setor na gestão de FHC, resultou em uma série de elaborados estudos para a sua reestruturação. Especialistas do setor, alguns deles hoje integrantes do governo Lula, procederam a detalhadas análises para a proposição de um novo modelo baseado na retomada do planejamento público.
A busca da revalorização do planejamento, com maior atenção ao interesse público, seria imprescindível como ponto de partida para quaisquer mudanças – atividade para a qual não estaria apto o Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão dos Sistemas Elétricos (CCPE), criado em 1999, no governo de Fernando Henrique. A submissão dos planos indicativos à contestabilidade pública; a atenção a critérios ambientais e sociais; a realização de licitações para novos empreendimentos pelo critério de menor custo; o fortalecimento do sistema de regulação; e a volta da tarifação pelo custo deveriam constar como condições essenciais dentro desse novo parâmetro.
Atendendo aos novos preceitos, um rearranjo institucional tornava-se imperativo. Dentre as alterações essenciais, os produtores independentes deveriam se tornar concessionários do serviço público regulado; a agência reguladora Aneel passaria a exercer atividades restritas à fiscalização e controle, com o retorno do Poder Concedente e da formulação de políticas setoriais ao poder central; o Mercado Atacadista de Energia (MAE) deixaria de operar, na medida em que suas funções fossem absorvidas por um novo agente de comercialização controlado pelo Estado.
Na elaboração de um novo modelo para o setor elétrico, a cujos estudos tivemos acesso via relatos ou trabalhos impressos, estiveram envolvidos Ildo Sauer, diretor de Energia e Gás da Petrobrás, Luiz Pinguelli, ex-presidente da Eletrobrás na atual gestão, Joaquim Francisco de Carvalho, ex-diretor da Nuclen, José Paulo de Souza, doutorando em Energia pela USP, Roberto D’Araújo, diretor do Instituto Ilumina, dentre outros especialistas do setor. Todos eles fizeram parte do grupo de estudos sobre o setor elétrico no Instituto Cidadania, ONG de Lula, no período anterior à sua eleição à presidência. A atual ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff e o ex-secretário executivo do ministério e atual presidente da Empresa de Política Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, também integraram, à época, esse grupo de estudos.
O Comprador único de energia – o Pool
Como idéia comum aos estudos a presidir a reestruturação da área elétrica, estaria a constituição de um condomínio comercializador majoritário, comumente designado como “Pool”. Tratava-se de um comprador único de toda energia ofertada pelo serviço público, para vendê-la ao conjunto das distribuidoras. Através da associação de empresas de geração e transmissão de eletricidade, o Pool seria uma empresa controlada pelo Estado com o objetivo de planejar a expansão do sistema e coordenar a sua operação, reassumindo as funções de comercialização da energia. Em outras palavras, o Pool absorveria as funções do MAE, que no modelo desregulamentado assumiu atividades antes restritas à Eletrobrás.
A atuação do Pool permitiria a absorção de sobras de energia em função da redução de mercado e, alternativamente, a agregação de oferta com mais agilidade - tarefa impossível em um modelo de contratação multilateral, onde qualquer medida deve ser pactuada com todos os agentes. Com isso, minimizar-se-iam substancialmente os riscos de operação e comercialização, os quais seriam assumidos pelo Pool. Possibilitar-se-ia, ademais, a execução de um “mix” entre a energia velha (mais barata, como as hidrelétricas já amortizadas) e a energia nova (mais cara, cujas instalações, sejam hídricas ou térmicas, não foram ainda amortizadas), em um processo em que a energia cara iria entrando gradativamente no sistema. Esses fatores permitiriam, agregadamente, uma elevação menor dos preços da eletricidade, ao contrário do modelo operado pelo mercado, em que esses preços atingirão os patamares superiores em tempo mais curto, com a apropriação da “renda hidráulica” (basicamente dada pela diferença entre os altos custos da geração de novas usinas, especialmente as termelétricas, em torno de US$ 40 por MWh, e os baixíssimos custos das velhas hidrelétricas, por volta de US$ 20 por MWh) pelos agentes privados.
Assegurar-se-ia, com esse mecanismo, 100% da energia necessária para o atendimento do mercado no âmbito do serviço público regulado. Em função do excesso de oferta de energia, decorrente da forte redução do consumo após o racionamento, uma das garantias do Pool seria a remuneração das geradoras, em sua maior parte estatais, pela energia assegurada a cada uma delas no planejamento do sistema – energia assegurada diz respeito a uma média histórica de produção de energia, abaixo, portanto, dos picos de geração, às vezes alcançados. A energia secundária, que excede a energia assegurada, ficaria com o sistema como um todo. Necessidade de energia adicional ao montante contratado, dentro da margem, seria entregue pelo sistema, valorizada por um preço semelhante ao Custo Marginal de Longo Prazo (um custo resultante de uma operação em que se utilizam primeiro as usinas produtoras de energia mais barata e, posteriormente, as opções mais caras de produção; é, portanto, um custo historicamente crescente, porém mais estável que aquele decorrente da atuação no mercado atacadista).
Alusão também foi feita à gestão dos fluxos financeiros, que deveria ser executada de modo transparente e independente da empresa controladora do Pool, através, por exemplo, de uma grande instituição bancária. Quanto à atuação de produtores independentes e consumidores livres, o modelo previa a delimitação de um espaço para as práticas de mercado. Admitir-se-iam, inicialmente, os referidos agentes em um ambiente transitório de livre contratação. A sua adesão ao novo sistema seria voluntária, com o que se repactuariam os contratos de concessão para o serviço público de geração. Quanto aos novos empreendimentos, deveriam ser obrigatoriamente contratados pelo Pool.
De acordo com documentos internos que foram usados pelo grupo de estudos do setor elétrico no Instituto Cidadania, aos quais tivemos acesso, Joaquim Francisco de Carvalho desenvolvia a idéia de um comprador único como ligada à Eletrobrás ou diretamente vinculada ao ministério de Minas e Energia: “esta empresa assumiria todos os ativos da Rede Básica de Transmissão e seria responsável pela operação, manutenção e expansão desta rede. Além disso, teria a incumbência de comprar a energia das geradoras (hidrelétricas e termelétricas), compensando os diferentes custos e fazendo um “mix” tarifário para o suprimento às distribuidoras, de forma a aproveitar, em benefício dos consumidores, os baixos custos de geração das hidrelétricas cujos ativos estão em fase adiantada de depreciação contábil”. uma empresa de transmissão e comercialização
Em seu modelo, não há alusão à atuação de produtores independentes ou autoprodutores, do que se infere que não seriam admitidos na reestruturação do setor. A sua proposta era peremptória na recusa em remendar o antigo modelo, o que configuraria, a seu ver, uma tentativa de preservar a “financeirização” do setor em benefício dos agentes intermediários, que nada acrescentaram à estrutura física do sistema e se apropriaram de boa parte dos lucros resultantes da diferença entre os altos custos de geração das novas usinas e os baixíssimos custos das velhas hidrelétricas.
Crônica de uma morte anunciada
Com a posse de Lula, foram chamados a participar do governo e a colaborar na implantação de um novo modelo alguns dos antigos integrantes do grupo de estudos sobre o setor elétrico no Instituto Cidadania. Ildo Sauer esteve entre os primeiros a apresentar uma proposta alternativa. A essência de seu modelo era dada pela idéia do comprador majoritário controlado pelo Estado. Não haveria hipótese de relacionamento direto entre fornecedores e compradores de energia e a garantia de financiamentos seria dada pelo setor público. A remuneração das geradoras pela energia assegurada e a absorção da sobra de energia pelo sistema também constavam na sua proposta.
O anteriormente mencionado espaço delimitado para o mercado estava presente no modelo de Ildo: admitir-se-iam na geração os produtores independentes e os geradores privados e não se planejava a ruptura de contratos, evitando maiores traumas a um governo em início de gestão. Não obstante, já insinuando uma ambígua trajetória no setor, o ministério não coloca em prática esse modelo. As justificativas básicas - naquele momento ainda surpreendentes para um governo que se propunha retomar o planejamento público - estiveram essencialmente associadas a um excessivo grau de controle do Estado na compra e venda de energia.
Luiz Pinguelli foi também um dos especialistas que, já empossado presidente da Eletrobrás, participou de um outro grupo de estudos para tentar elaborar um novo modelo para o setor, baseado na maioria dos princípios destacados acima. Mesmo fazendo concessões ligadas à redução do papel do Estado na garantia dos financiamentos das geradoras, viu desfalecer paulatinamente a sua visão ao longo do governo, o que determinaria a sua decisão de saída da presidência da Eletrobrás.
José Paulo Vieira, em entrevista ao Correio da Cidadania, afirmou que o ministério montou um grupo de trabalho de 14 pessoas, através da Resolução 40, de fevereiro de 2003, para tentar transplantar para o governo o modelo do setor elétrico discutido no Instituto Cidadania. Acabou ocorrendo, no entanto, uma divisão, porque havia entre os participantes pessoas que pensavam em termos dos princípios liberais e que ajudaram a engendrar o modelo anterior. “O ministério não conseguiu suportar essa discussão, e, em certo momento, dispensou metade do grupo, justamente aquela que trabalhou no modelo do Instituto Cidadania. Esta parcela acreditava que a área elétrica, por todos os erros de que já fora vítima, deveria ser um foco inicial para a proposição de mudanças, tornando-se um paradigma para o governo”, observou Vieira.
Segundo Roberto D’Araújo, o seu grupo no Instituto Cidadania procurou concluir o trabalho de modo a minimizar as resistências. A estratégia seria “enganar, para buscar recuperar aquilo que é seu”, com a sugestão de medidas na tentativa de minimizar o impacto do desmonte do monopólio natural. Uma idéia básica nesse sentido seria que ninguém iria mais vender energia - os investidores alugariam as usinas e sua receita seria constante durante o ano. Acabaria a confusão do mercado de curto prazo, com a compra de energia barata e a venda a elevadas tarifas: a quantidade de energia adicional seria pública. Para D’Araújo, “isso era uma maneira de dizer que as máquinas podiam ser privadas, mas a água é pública. Era como se as usinas fossem minhas outra vez, como se você tivesse ´estatizado’”. Esforço infelizmente abandonado, segundo D’Araújo: “inicialmente, houve um grupo de técnicos que foram designados para montar o modelo no ministério, mas, em 2003, fomos desligados. Segundo eles, estávamos ligados à Eletrobrás e estávamos defendendo seus interesses comerciais, o que era um absurdo, porque não havia nenhuma estrutura definida para que pudéssemos encontrar interesses comerciais na Eletrobrás. Não era nada disso, era um problema de discordância filosófica profunda”.
Início da esquizofrenia
Já no final de 2003, a apresentação do modelo institucional do setor elétrico, em Brasília (conforme resumo executivo do MME de 11/12/2003), trouxe vários elementos estranhos aos especialistas defensores de um modelo que realmente retomasse o planejamento. Estranhos, porém não surpreendentes, uma vez que sintomáticos do rumo que tomara os acontecimentos.
Já em seus primeiros itens, mencionava-se a contratação de energia por licitação conjunta das distribuidoras, visando obter economia de escala, repartir riscos e equalizar tarifas de suprimento. Cada gerador contratado na licitação assinaria contratos bilaterais separados com cada distribuidora. Prenunciava-se aí a deturpação da idéia original do Pool, que seria um comprador único de energia para posteriormente vendê-la a todas as distribuidoras. Não pretendia, portanto, incentivar um “Pool” das distribuidoras.
Menção se fazia, ademais, a que diferenças entre valores contratados e efetivamente consumidos de energia seriam liquidados com base no Custo Marginal de Operação, o custo que de fato vigorava nas operações do mercado atacadista, cujos preços acabaram por não ter relação com a oferta e demanda e nem mesmo com os custos de produção. A concepção inicial previa, como já visto, que os requisitos de energia adicionais seriam valorizados pelo Custo Marginal de Longo Prazo - resultante da operação do sistema, onde primeiro se utiliza a energia mais barata -, mais previsível que o Custo Marginal de Operação, centralizado em modelos computacionais e sujeito à manipulação em função da priorização de variáveis aleatórias.
Maior espaço foi concedido a produtores independentes e autoprodutores, que poderiam atuar não só no ambiente de livre contratação, como proposto, mas ainda no serviço público regulado. Contrariamente à determinação de que as usinas termelétricas operassem complementarmente apenas em caso de necessidade, estabeleceu-se a inclusão de uma proporção “desejável” de geração térmica. Criaram-se, ainda, incentivos e instrumentos de gestão de risco para as distribuidoras, desnecessários estivesse em vigor o Pool tal como idealizado, que assumiria praticamente todos os riscos de operação e comercialização.
No que diz respeito ao processo de licitação, não se previu uma ampla divulgação do processo, com sua conseqüente sujeição à contestabilidade pública. E na reorganização institucional do setor, expuseram-se os indicativos finais do desvio de rota. Criou-se um novo órgão, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), incumbida de realizar estudos para o ministério, incrementando-se os riscos de afastamento entre a elaboração de planos e a realidade do setor. Na sucessão do Mercado Atacadista de Energia (MAE) passou a vigorar a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Teoricamente, a CCEE administraria contratos de compra de energia, sendo apenas uma outra forma de se designar o Pool. Na prática, porém, diante da inexistência do Pool como um comprador único, viria a ter um funcionamento idêntico ao do antigo MAE.
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