Setor elétrico: uma história de descaminhos
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- Valéria Nader
- 28/08/2007
FHC versus Lula
Falsos diagnósticos e soluções foram levando a uma série de desvirtuamentos uma de nossas mais importantes infra-estruturas econômicas, o setor elétrico. A sua paulatina descapitalização, em especial a partir da década de 80, fruto do imobilismo do Estado, acabou por pavimentar o caminho rumo às privatizações, com toda uma série de conseqüências negativas. Dentre essas conseqüências, o próprio racionamento, cujas causas passaram bem longe da ausência de chuvas, como se quis fazer crer aos incautos.
Para o engenheiro Roberto D’Araújo, ex-assessor da presidência da Eletrobrás na gestão de Luiz Pinguelli, em entrevista concedida ao Correio da Cidadania, “o governo FHC foi todo um desastre. O destaque dos desastres foi o setor elétrico. Se olharmos outros países do mundo – já houve apagões na Austrália, na Califórnia, até em Londres -, ninguém tem esta estatística que nós tivemos. Nenhum país do mundo teve que economizar cerca de 25% da sua energia em um período de 10 meses. Essa estatística você só encontra num país em guerra. O gráfico de consumo do Brasil é uma coisa impressionante, cai violentamente e permanece lá embaixo. É um jogo de perdas para todo mundo, pois aquele consumo que se imaginou no futuro se frustrou. O racionamento era óbvio, ninguém do setor elétrico ficou surpreso. Já em 98, 99, dizíamos que ‘nesse ano não teve por sorte’. Estruturalmente, tínhamos uma oferta muito baixa, que estava calcada simplesmente nas chuvas. Isso foi adiado por quatro anos por obra e graça de São Pedro. E foi uma seca mixuruca, uma seca média a que gerou finalmente o apagão”.
Se, por um lado, o apagão da era FHC colocou todo o país em situação emergencial, por outro, desnudou um problema que vinha se acumulando há anos. A partir daí, incentivou-se um mergulho analítico no setor e se tornou possível despertar a atenção do cidadão comum para as reais origens de suas mazelas. Situação bem diversa da atual, onde a benevolência da natureza nos últimos anos, coincidentes com o mandato de Lula, condiciona uma impressão imediata de que não há mais riscos de racionamentos e de que os desvios do modelo anterior foram equacionados.
Mas como realmente está o funcionamento do setor hoje, com a chegada de Lula e de sua equipe, crítica do modelo anterior, ao poder? A pergunta seria mais fácil de responder estivesse direcionada a outro setor de nossa infra-estrutura, a malha rodoviária nacional, cuja deterioração é de fácil percepção a qualquer pessoa. No entanto, é a menor visibilidade dos problemas da área elétrica que torna imperiosa a necessidade de averiguá-los.
Apagão
Chegar a um diagnóstico quanto ao funcionamento do setor elétrico, na atual gestão, não é tarefa simples. Buscar um sério entendimento a este respeito impõe a pesquisa da seqüência de falseamentos que o foram vitimando. Essa história começa lá atrás - e finca suas raízes até hoje.
A súbita queda de energia no ano de 2001, acompanhada de horas seguidas sem o retorno da rede elétrica às suas funções normais, deixou todo o país perplexo após anos de funcionamento do sistema sem falhas consideráveis de fornecimento. Ao mesmo tempo, o setor elétrico entrou na pauta do cidadão comum, mediante a avalanche de noticiários sobre o assunto e também a ampla gama de estudos e análises buscando as verdadeiras origens do problema.
Colocar a culpa na ausência de chuvas foi o caminho mais fácil encontrado por um governo já em seu segundo mandato, visto que não teria como justificar a crise sob o pretexto de carência de tempo para a tomada de medidas e, muito menos, iria atribuir ao modelo adotado a responsabilidade pela sua eclosão.
Técnicos e especialistas do setor, já há bastante tempo alertando para o risco de blecaute, não tardaram em apresentar minuciosas análises. Fundamentalmente, desfez-se a confusão quanto à origem da crise. Segundo estudo do físico e diretor da COPPE (Coordenação de Programas de Pós-graduação em Engenharia) da UFRJ, Luiz Pinguelli, ex-presidente da Eletrobrás no governo Lula, os reservatórios teriam sido planejados para operar com risco de déficit, através do armazenamento de água. Ocorre que, especialmente após 1995 – quando entra em vigor um novo modelo para o setor elétrico e se intensificam as privatizações, conforme será visto mais à frente -, houve um declínio na sua capacidade de armazenamento, em função da queda de investimentos em geração e também em transmissão.
Em entrevista ao Correio da Cidadania após o apagão, na edição de número 245, de 19 a 26 de maio de 2001, Pinguelli declarou que “quando a coisa foi se agravando, nós mostramos que estavam sendo esvaziados os reservatórios das hidrelétricas, que foram feitos para acumular água por até 65 anos, e não se podia culpar a chuva por isso, absolutamente. As chuvas foram abundantes no ano de 1998. O problema começou a piorar mesmo em 2000 e 2001. E se nós tivéssemos a água devidamente armazenada, nós não teríamos problema nenhum. Por que não se armazenou a água? Porque não havia usinas em número necessário e passou-se a gastar a água do futuro no presente. Nós mostramos isso matematicamente. Nós levamos um relatório para o governo, porém eles não tomaram providência e ficaram repetindo que tudo se resolveria, no fundo acreditando que haveria chuva. Só que a chuva é variável. Não se pode apostar na sorte. O governo foi não só imprevidente, como também irresponsável”.
A falta de chuvas é apenas um dos diagnósticos errôneos no setor elétrico, a partir das falsas avaliações e soluções das quais foi sendo vítima ao longo dos anos. Como se verá, as privatizações foram justificadas como forma de capitalizar um setor ao qual foi sendo paulatinamente imposta a perda de capacidade de autofinanciamento, em função de ter sido amplamente utilizado como instrumento de política econômica e na concessão de subsídios indiretos ao próprio capital privado. Capital, que, no final das contas, ficou com o controle de parte substancial do setor em suas mãos.
A origem dos problemas no setor elétrico
De fins do século XIX até a década de 70 do século XX, grupos privados predominavam no setor elétrico. A sua expansão era, portanto, determinada em função do interesse desses grupos, cujo maior objetivo não era sustentar o desenvolvimento. O avanço do setor esteve associado à participação do poder público, eminentemente após os anos 60, o que levou a um rápido crescimento da capacidade instalada, em função do seu empenho em reinvestir lucros na transferência de tecnologia. Consolidou-se, destarte, no Brasil, uma eficiente indústria de equipamentos e uma formação de pessoal qualificado para desenvolver tecnologia adaptada às nossas condições.
Os anos setenta assistiram a uma vertiginosa expansão na infra-estrutura energética - não sem, no entanto, começar a fincar raízes de problemas que se avizinhariam. Com a implantação do II PND – Plano Nacional de Desenvolvimento, entre 1974 e 1978, a ampliação da base industrial e o incremento de importações levaram à elevação da dívida externa, em função das políticas governamentais indutoras de captação de recursos externos para atenuar o déficit do Balanço de Pagamentos. As estatais elétricas foram amplamente utilizadas, nesse processo, como instrumentos para a obtenção de empréstimos. Se, por um lado, puderam, com estes recursos, manter e incrementar sua capacidade de investimento, por outro, foram pegas na contramão com a eclosão da crise do final da década de 70, em função da queda da liquidez financeira internacional, subida das taxas de juros externas e as maxidesvalorizações cambiais. Esse conjunto de acontecimentos acelerou o comprometimento financeiro do setor, uma vez tendo caminhado de uma grande capacidade de autofinanciamento para a estratégia de endividamento externo.
Concorrendo ainda para a corrosão de suas possibilidades de autofinanciamento, estiveram as políticas de combate à inflação, devido, especialmente, às duas crises do petróleo, em 1973 e 1979. Iniciou-se daí, sobretudo após 1979, uma política de contenção tarifária para amortecer o impulso altista de preços, com o controle das tarifas públicas, ao lado da promoção de esforços para contenção de gastos.
A recessão do início dos anos 80 aprofundou a tática de reajuste de tarifas abaixo da inflação e também o controle de gastos. As estatais do setor elétrico foram ostensivamente utilizadas para a viabilização da acumulação privada – via contenções tarifárias, preços subsidiados, realização de financiamentos deslocados de suas operações precípuas, priorização de obras desnecessárias, suscetibilidade à pressão de grupos privados -, conformando um fenômeno que ficou amplamente conhecido como “a privatização do Estado”.
O modelo estatal vigente desde o governo militar até o fim da década de 80 ocupou o espaço vazio deixado pela iniciativa privada e criou um sistema produtivo que, a despeito de não ter alcançado a universalização, foi capaz de fornecer eletricidade a baixos preços e com reduzidas falhas no fornecimento. O planejamento pouco transparente, a centralização acentuada e uma excessiva burocracia conduziram, no entanto, a práticas clientelistas, indutivas de suscetibilidade aos interesses privados, conducentes à desestruturação do setor público.
A desastrada entrada nos anos 90, com a chegada de Collor ao poder, não trouxe, obviamente, alívio algum a este quadro. O Estado caracterizou-se por profundo imobilismo, com o aprofundamento da recessão para evitar a explosão de preços e o lançamento do PND – Plano Nacional de Desestatização – como meio de ajuste fiscal e de saneamento do setor público. A privatização passou, assim, a ser efetivamente considerada como um instrumento de política econômica - o que pavimentaria o caminho para o posterior desmonte do Estado.
A este desenrolar interno dos acontecimentos, configurando a crise do Estado, aliou-se um cenário externo caracterizado por grandes disponibilidades financeiras e capacidade ociosa na indústria energética dos países industrializados. As privatizações, oferecidas em nosso país com generosos deságios, ser-lhes-iam excelente oportunidade de negócio. Para o capital financeiro internacional, era o melhor dos mundos: transformar as dívidas do setor elétrico em ativos capazes de gerar renda. E, ainda por cima, renda assegurada por entidades reguladoras que trabalhariam, na prática, à margem do setor público.
Ademais, insinuava-se no cenário externo, com vigor, o surto neoliberal. Entrava em pauta a reestruturação dos setores de infra-estrutura, presidida pela visão do “Consenso de Washington”, através do qual foram consubstanciadas diretrizes ligadas à desregulamentação e liberalização a serem implementadas pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial de Comércio (OMC) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em países latino-americanos. Sob a justificativa de que o mercado deveria ter primazia sobre o Estado em função de sua maior eficiência na alocação de recursos, propugnava-se pela privatização, pela liberalização do mercado de capitais e dos preços e pelo livre comércio. Flexibilização de direitos trabalhistas e redução do funcionalismo também constavam no receituário básico.
Privatização e liberalização
Os marcos iniciais para a liberalização e privatização do setor elétrico foram dados já no governo de Itamar Franco, com a extinção da remuneração garantida e do regime tarifário pelo custo do serviço e o estabelecimento da desequalização de tarifas. Foram possibilitados, ademais, em seu governo, através de decretos e portarias, os consórcios entre concessionárias e autoprodutores e o livre acesso à rede federal de transmissão, propiciando a competição na geração. O governo FHC vai acelerar este processo, delineando a cara final do setor. Foram definidos os novos regimes de concessão e o sistema Eletrobrás é inserido no PND – Plano Nacional de Desestatização. Em São Paulo, foi lançado o Plano Estadual, com a desverticalização da Cesp, CPFL e Eletropaulo, dividindo-as em várias empresas para sua posterior venda.
As mudanças introduzidas configurariam a ruptura final relativamente ao modelo estatal vigente por mais de 30 anos. O planejamento, antes normativo, passou a ser apenas indicativo; no lugar dos preços regulamentados de geração, estes passaram a se formar no Mercado Atacadista de Energia (o MAE); empresas que antes atuavam integradas em regime de monopólio foram desverticalizadas, e as atividades de geração, transmissão e distribuição tornaram-se independentes, com instituição do livre acesso às malhas de transmissão; produtores independentes passaram a ser admitidos no sistema.
Surgiram, na operacionalização dessas mudanças, as novas entidades constituintes do modelo: dentre as mais importantes, a Aneel - Agência Nacional de Energia Elétrica, com a função de implementação de políticas e de regulação; o ONS - Operador Nacional de Sistema, para planejar e programar de forma centralizada a geração; o MAE – Mercado Atacadista de Energia, anteriormente citado, ambiente no qual passou a se processar a compra e venda de energia, através de contratos bilaterais e do mercado de curto prazo; e o CCPE - Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão. Nessa sistemática, as geradoras passaram a vender a sua produção através do MAE.
Os objetivos anunciados para a nova organização do setor seriam a sua capitalização, em função da crise financeira por que passavam as empresas (cujas reais origens foram elucidadas acima), e a redução de custos de geração e distribuição, via promoção da livre competição. Os comercializadores de energia passariam a ter livre trânsito entre os agentes produtores e consumidores, liberando-se o acesso às redes de transporte.
Ao BNDES coube, internamente, a estratégia de reestruturação e privatização. Passou a geri-las, não raro proporcionando vultosos financiamentos para a sua efetivação, inclusive para os grupos estrangeiros. A venda da CPFL e das geradoras Tietê e Paranapanema (resultantes do desmembramento da Cesp), as duas últimas a grupos norte-americanos, não teria sido possível sem a participação do BNDES. (Clique para ver a tabela 1)
De acordo com Joaquim Francisco de Carvalho, ex-diretor industrial da Nuclen, em artigo no Jornal do Brasil de 10 de janeiro de 2001, “já no governo FHC, com o Sr. José Serra no ministério do Planejamento e seu amigo Mendonça de Barros na presidência do BNDES (a Sra. Landau cuidava das desestatizações), a Light foi ‘desestatizada’, a favor da estatal francesa Életricité de France (EDF), associada à norte-americana AES e à Companhia Siderúrgica Nacional, então recém comprada pelo grupo do Sr. Benjamim Steinbruch. Curiosamente, os 2,2 bilhões de reais que o governo diz ter recebido vieram em boa parte do próprio governo (BNDES, Eletrobrás e PREVI)”.
Incongruências do novo modelo
Os problemas associados ao novo modelo e às privatizações têm seu ponto de partida na lógica que a eles conduziu e nas características peculiares ao setor elétrico.
Quanto ao primeiro ponto, um olhar mais acurado na evolução do setor permite vislumbrar o início de seus problemas em uma gestão que, ao lado de tê-lo fomentado e desenvolvido, conduziu à sua descapitalização, conforme avaliação feita anteriormente. A inferência mais imediata é que, se o problema era em grande medida financeiro, a solução ideal não passaria pela dilapidação do patrimônio público. Nesse sentido, se o governo comprometeu uma fatia apreciável de seu orçamento em uma duvidosa operação de salvamento dos bancos, o Proer, por que não se empenhou também em programas de socorro à infra-estrutura energética?
No que diz respeito à segunda questão, ligada às características da energia elétrica, aplicar leis de mercado na sua produção constitui, já de partida, um erro conceitual, pois não se trata de uma “commodity”, mas de um serviço público essencial, ao qual todo cidadão deve ter acesso. Estamos, além disso, diante de um setor de monopólio natural - como é o caso de grandes infra-estruturas econômicas, dentre elas a energia elétrica -, onde os custos decrescem com o aumento da quantidade de energia produzida pelo sistema verticalizado, que inclui geração, transmissão e distribuição. A intervenção estatal é, portanto, uma imposição, não sendo razoável esperar que a competição consiga atender às necessidades da coletividade.
Ressalte-se ainda que o sistema brasileiro é eminentemente hidráulico, requerendo uma operação interligada para o melhor aproveitamento das vazões dos rios, rateando-se os déficits e superávits de energia entre períodos secos e úmidos. O alcance dessa otimização, assim como uma gestão racional de bacias e recursos hídricos, proporcionando usos múltiplos para a água, exigem o controle público, podendo ser altamente comprometidos com a exclusiva atuação de entes privados. Além disso, em momentos de escassez de oferta, o mercado competitivo beneficia os agentes concessionários, dotados de maior capacidade de pressão e articulação, em detrimento dos consumidores.
Um outro fator de grande relevância diz respeito a que estamos diante de um parque gerador já amortizado, com reduzido valor contábil, o que implica em baixos custos de geração. Estes custos são aproveitados pelas distribuidoras privadas, em boa parte estrangeiras, as quais, ao imporem altas tarifas para os consumidores, se apropriam de nossa renda hidráulica.
A liberdade de escolha dos consumidores, um dos pilares do novo modelo, acaba, finalmente, por se constituir em um conto do vigário. As distribuidoras tendem, pela própria lógica do mercado, a oferecer condições mais favoráveis aos grandes consumidores, e os pequenos ainda correm o risco de pagar a conta desses benefícios.
Conseqüências da liberalização: uma dinâmica autofágica
As conseqüências da reestruturação no setor elétrico não trouxeram surpresa àqueles que tinham noção das suas características intrínsecas.
Colocou-se, claramente, para o Estado, à medida que avançava a liberalização do setor, o impasse originário da insustentabilidade de um modelo que, a cada concessão que fazia à iniciativa privada, novas exigências recebia da mesma. Ao fortalecimento paulatino dos agentes de mercado correspondeu o patente enfraquecimento da estrutura pública de planejamento, uma vez que esta transferiu aos órgãos reguladores, bastante suscetíveis aos lobbies privados, a capacidade de definir a política energética. Não é preciso, ademais, maiores elucubrações para perceber que há uma insuperável contradição entre interesses de lucro de multinacionais e o bem estar da coletividade.
Contrariando o argumento básico usado para a defesa da liberalização e privatização, de que viriam expandir o sistema e criar novos empregos, houve, na verdade, tão somente transferência de propriedade, com a esterilização de nossa capacidade tecnológica e a subordinação de nossos recursos naturais aos interesses externos. Para o capital privado, não havia o menor interesse em investir em projetos intensivos em capital e de longa duração.
A anteriormente referida privatização do Estado, vigente entre os anos 70 e 80, consubstanciada pelos favorecimentos a grupos privados, através, entre outros, de tarifas subsidiadas, deu lugar, assim, à efetiva transferência do patrimônio público, via privatizações, leilões e licitações, com conseqüências bem mais nefastas para a sociedade.
Imaginando que uma reestruturação da magnitude da levada a cabo no setor elétrico não se faria sem almejar, em tese, melhora na qualidade dos serviços e promoção da universalização, pode-se dizer que os resultados ficaram bem aquém dos desejados. No que diz respeito à qualidade, os cortes de custos, a redução de quadros e a terceirização dos serviços, com vistas ao incremento dos lucros, concorreram sobremaneira para o seu comprometimento. Quanto à universalização, o desinteresse constitutivo dos agentes privados para com pequenos consumidores, assim como o impacto altista nas tarifas, já perfizeram motivos mais que suficientes para impedir a concretização de um maior acesso ao serviço de energia elétrica.
A evolução das tarifas foi também extremamente desfavorável aos consumidores. A remoção de subsídios que favoreciam usuários de baixa renda, a escolha do IGPM como indexador de tarifas, um índice sem relação direta com a estrutura de custos setoriais, e o desprezo de critérios de produtividade nas revisões tarifárias levaram a um aumento explosivo de tarifas, em patamares bem acima da inflação. Às residências sobraram os maiores ônus com o reajuste, ocasionando enorme transferência de renda dos setores produtivo (os geradores estatais, que permanecem com tarifas módicas) e residencial para distribuidoras privadas. Destaque-se, ademais, que sendo os gastos com energia mais representativos nas despesas das famílias com menores rendimentos, essas acabaram mais impactadas pelos reajustes tarifários. (Clique para ver a tabela 2 e a tabela 3)
As relações de trabalho caracterizaram-se no período pelas dispensas de trabalhadores, impulso às terceirizações e desmonte da antiga cultura empresarial. O resultado foi um decréscimo notável do número de empregados no setor, queda de salários, precarização de empregos em toda a estrutura produtiva e impulso ao desmonte de direitos trabalhistas. (Clique para ver a tabela 4 e a tabela 5)
Dispensa de trabalhadores, remoção de subsídios e aumentos tarifários conformaram uma combinação explosiva, acentuando os nossos já altíssimos índices de concentração de renda.
Quanto à corriqueira alegação de que os recursos advindos da privatização viriam a auxiliar na redução da dívida pública, nada mais falso. A manutenção de elevadíssimas taxas de juros durante a gestão FHC, para a atração de divisas que cobririam o déficit das contas externas – em função da política deliberada de sobrevalorização cambial -, impingiu uma dinâmica de crescente endividamento interno que tornou irrisórios os valores obtidos com as privatizações. Esses valores não foram nem mesmo aproveitados nas atividades típicas do Estado. Acabaram, outrossim, sendo absorvidos no circuito financeiro.
Alimentando ainda esse círculo vicioso, os investimentos diretos do período estiveram basicamente associados às privatizações no setor elétrico - um setor de serviços, que, portanto, não gera bens comercializáveis. Esses investimentos não puderam, desse modo, contribuir com a melhora da balança comercial (saldo entre exportações e importações); muito pelo contrário, concorreram para agravar os resultados negativos das contas externas, na medida em que reforçaram o envio de lucros e dividendos para fora e em que incrementaram a importação de insumos, máquinas e equipamentos dos países de origem. Assim sendo, além de não resolverem e até mesmo acirrarem os problemas financeiros do Estado, as privatizações reforçaram nossas limitações estratégicas, drenando para fora do país efeitos encadeadores que poderiam atuar internamente.
Por último, como conseqüência síntese da reestruturação do setor, o apagão seguido do racionamento, com os quais iniciamos esta matéria. Fica agora fácil compreendê-los como resultados inexoráveis de um modelo que não logrou promover os investimentos privados, sempre à espera de mais vantagens e garantias, e ainda por cima vetou novos projetos para as empresas estatais com as restrições de financiamentos do BNDES. A inevitável queda de investimentos em geração e transmissão desequilibrou o sistema interligado - planejado para operar com risco de déficit através do armazenamento de água -, uma vez que se requisitou dos reservatórios mais água do que seria recomendável.
A reação do governo à crise foi sintomática de sua conduta em todo o decorrer da implantação do novo modelo do setor elétrico: os consumidores, as maiores vítimas desse modelo, foram transformados em culpados e as distribuidoras, co-partícipes na responsabilidade pelo racionamento, foram agraciadas. Através do Acordo Geral, receberam do BNDES generoso adiantamento daquilo que teria sido negociado como perdas decorrentes do racionamento, a ser pago com os reajustes tarifários obtidos. E, através do Seguro Antiapagão, os consumidores ficaram com o ônus da contratação de energia emergencial, que, ao final, não se comprovou necessária.
Segundo avaliação de vários especialistas do setor, o fracasso da reestruturação da era FHC ficou patente com seu programa relativo às termelétricas. Os incentivos oferecidos para operacionalizá-lo constituiriam, inclusive, o próprio reconhecimento governamental da vulnerabilidade da reforma. A despeito de todos esses incentivos, o capital privado não compareceu em escala suficiente, e os únicos projetos viabilizados ancoraram-se na Petrobrás. A estatal vem, inclusive, denunciando alguns dos contratos à justiça brasileira - incorre até hoje em largos prejuízos com as garantias concedidas às térmicas, pagando por usinas que nem em funcionamento se encontram.
De acordo ainda com técnicos da área elétrica, o programa teria sido fortemente influenciado por empreiteiras que construíram os gasodutos e pelos grupos que controlam o gás na Bolívia, além de ter exercido forte impacto altista nas tarifas. Haveria, em sua opinião, opções mais viáveis e adequadas ligadas às pequenas centrais hidrelétricas, à conservação de energia e às energias alternativas - como a eólica e biomassa -, estivéssemos diante de um governo que realmente planejasse a política energética.
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