Correio da Cidadania

Biocombustíveis: moda decorrente do alto preço do petróleo

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Na primeira parte da entrevista que Tamás Szmrecsányi, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, concedeu ao Correio – publicada no dia 06 de dezembro -, avaliaram-se as atuais discussões em torno dos biocombustíveis, a sua eficiência energética e os argumentos críticos a essa fonte.

 

Nesta parte de sua entrevista, Tamas discute as ponderações dos defensores dos biocombustíveis, que têm sido intensamente veiculadas em nossa imprensa.

 

Na terceira e última parte,que logo divulgaremos, serão avaliadas alternativas à sua produção e também a postura do governo e dos movimentos sociais.

 

Confira abaixo.

 

CC: A intensa discussão em que estão envoltos os biocombustíveis se associa de alguma maneira a interesses políticos e econômicos do atual momento vivido pelo capitalismo em escala global? Como isso se dá a seu ver?

 

TS: A moda atual dos biocombustíveis, e mais particularmente do bioetanol, decorre dos atuais preços do petróleo, provocados pelas intervenções militares do EUA no Oriente Médio. Trata-se de fatores conjunturais, reversíveis a curto e médio prazos. A era Bush, felizmente, está chegando ao fim, e qualquer um de seus sucessores poderá adotar outras políticas com vistas a normalizar as relações internacionais e evitar a ocorrência de uma recessão aguda do sistema capitalista. A partir do momento em que isto se der, haverá uma inflexão das tendências atuais.

 

Em termos estruturais e no longo prazo, não está havendo uma diminuição das reservas mundiais de petróleo; antes pelo contrário, novas reservas estão sendo descobertas continuamente, inclusive pelo Brasil. Nos países economicamente mais desenvolvidos, há programas de poupança de energia em andamento – inclusive no campo automobilístico, através dos chamados carros híbridos, com motores que não se destinam, como os carros flex, a substituir um combustível por outro, mas a poupar combustíveis em geral.

 

Por outro lado, os desequilíbrios entre a produção e o consumo decorrentes do intenso consumo de algumas economias asiáticas (China e Índia) não são necessariamente estruturais e também podem assumir um caráter conjuntural.

 

Diante disso, eu diria que as atuais tendências são movidas por motivos de curto prazo e voltadas para ganhos imediatos e de caráter especulativo, possibilitados pelas condições de países como o Brasil, onde a terra e o trabalho são baratos, e os poderes públicos complacentes e cooptáveis, dominados por minorias poderosas e rentistas, que têm conseguido manter sua hegemonia através do tempo, seja aproximando-se ao capital estrangeiro, seja subordinando a atuação do Estado a seus interesses.

 

CC: Os defensores dos biocombustíveis contrapõem-se a cada uma das críticas. Com relação àquela que avalia ser a cana uma monocultura, que viria reforçar a concentração de terras, em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos, sinalizam os defensores que, no Brasil, estariam sendo ocupados somente 3 milhões de hectares para a produção de açúcar, outros 3 milhões para a produção de 17 bilhões de litros de álcool, e sobrariam como área passível de ser utilizada para cultivos energéticos nada menos que 300 milhões de hectares – já descontados desse total a área destinada a cultivos agrícolas e as áreas de preservação ambiental. O que você pensa sobre isso?

 

TS: Os argumentos levantados pelos defensores das atuais políticas e das tendências dominantes não se sustentam e fazem parte das campanhas de desinformação às quais já me referi – antigamente, havia os contos de fadas; hoje em dia predominam os contos da mídia e as verdades pseudocientíficas.

 

Não há dúvida de que no capitalismo atual tem prevalecido a grande produção, inclusive na agricultura. Mas isto vem ocorrendo em outros países não da mesma forma que no Brasil, não com essa concentração da renda, da riqueza e do poder, que tem como contrapartida o empobrecimento, a exclusão e a miséria de grandes massas da população.

 

Nos Estados Unidos e na França, não há monocultores e nem usineiros como aqui. Quanto às áreas ocupadas pela cana-de-açúcar, há que compará-las não com a superfície territorial do país, mas com o total das áreas agricultáveis, mas com o total das áreas de colheita, particularmente nos estados que são seus principais produtores – caso de São Paulo, que abastece mais da metade dos canaviais do país, e onde os mesmos ocupam quase metade das áreas cultivadas, relegando a um plano absolutamente secundário o arroz, o feijão e até o café.

 

Finalmente, no que se refere às áreas de preservação ambiental, há dados empíricos que mostram cabalmente que elas deixaram simplesmente de existir em áreas canavieiras como as dos cerrados de Pernambuco e Alagoas, ou aqui na região de Ribeirão Preto.

 

CC: Argumenta-se, ademais, nesse sentido, que a fome se deve à pobreza, é questão de falta de renda de vastos setores da população, e não de oferta de alimentos, segundo inclusive participantes da Conferência Internacional Rio+15 em setembro. Supondo que se proíba nesse setor o uso de matéria-prima alimentar, não haveria redução da pobreza no mundo e o preço do petróleo subiria ainda mais. Expandir a produção de bioenergia contribuiria, ademais, para combater a fome, ao gerar novos empreendimentos econômicos e empregos. Qual a sua visão sobre esse argumento?

 

TS: É verdade que a fome se deve à pobreza, mas esta é gerada pelo preço e/ou pela falta de acesso aos meios de produção capazes de alimentar a população carente.

 

Na verdade, o mal não está na cana, mas sim no tipo de empresas e de empresários que exploram a sua produção no Brasil, empresários que fazem parte das classes dominantes do país e que são apoiados por estas em detrimento do resto da sociedade – ou melhor, da maioria.

 

O aumento da produção de biocombustíveis não faz, nem fará, baixar o preços do petróleo. É a elevação dos preços que tem feito crescer a produção de álcool; na hora em que os preços do petróleo baixarem, haverá uma superprodução de álcool, como já ocorreu no passado.

 

Muitos dos novos empreendimentos surgidos na atual conjuntura deixarão de existir ou terão que mudar de ramo; alguns deles, aliás, nem sequer saíram ainda do papel em que foram inscritos.

 

A geração de empregos poderá existir, mas não será grande nem automaticamente capaz de sustentar-se por si só.

 

CC: Haveria ainda, nessa linha de argumentos, os ganhos de produtividade da lavoura advindos da inovação tecnológica, possibilitando aumentar a produção por terra cultivável. O que você pensa sobre isso?

 

TS: Os ganhos de produtividade da agroindústria canavieira ocorreram de fato, mais no segmento industrial do que no agrícola. Os ganhos se deram pela adoção de novas variedades de cana, que fazem aumentar a produção de açúcar e de álcool por hectare. Mas no que se refere à cana em si, a produtividade é medida em toneladas por hectare e não tem crescido muito, razão pela qual a lavoura canavieira continua sendo uma monocultura extensiva, cuja produção cresce mais em função da área cultivada do que devido a crescentes rendimentos por unidades de área.

 

Os ganhos de produtividade agroindustrial que acabam de ser mencionados constituem um argumento favorável à diminuição, e não ao aumento das áreas cultivadas. Isso é algo que poderá talvez ocorrer por meio da extração de álcool da celulose, e não mais do caldo, da cana – uma tecnologia ainda não disponível, por meio da qual se poderá aumentar muito a produtividade agroindustrial por hectare cultivado.

 

CC: O jornalista Vinícios Torres Freire chegou a alertar, em artigo na Folha de São Paulo, que a “teoria alcoolismo ignora o ganho de renda de países pobres que plantariam cana (e poderiam comprar comida, que ainda sobra no mundo), ignora ganhos de produtividade das lavouras e os estímulos de preço (se a comida fica cara, planta-se mais comida)”. Quanto ao ganho de renda, cita-se, por exemplo, que, dos 17 bilhões de litros de álcool produzidos atualmente, poder-se-ia chegar a 44 bilhões de litros em 2016, segundo o mais recente (e crítico) documento da própria FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). No que se refere aos estímulos de preço, considerando características singulares de um país como o nosso - tais quais o sol, as terras agricultáveis e até mesmo a água -, o argumento crítico relativo aos impactos da produção de biocombustíveis na elevação dos preços de alimentos seria pouco significativo: preços em elevação seriam, outrossim, um estímulo à expansão da produção. O que você responderia?

 

TS: Não conheço o artigo do referido jornalista, mas poderia comentar as idéias que ele veicula da seguinte forma: (a) plantar mais comida em um país dominado pela cana é algo complicado, como se pode observar pela história da zona da mata no nordeste. No caso de São Paulo, atualmente, boa parte do abastecimento alimentar vem dos estados do Sul, graças ao fato de a expansão canavieira não poder ir além do norte do Paraná, por razões climáticas; (b) Os repiques inflacionários através da alta dos preços dos produtos alimentícios no Brasil podem ser atribuídos à expansão canavieira; em âmbito internacional, também tem havido uma alta, em função do aumento dos preços do milho usado tanto para fazer álcool nos EUA, como para fabricar ração para animais produtores de carne.

 

CC: Ainda nessa linha, insinua-se que o cultivo do etanol colocaria o Brasil em uma escala ainda mais privilegiada no comércio internacional de commodities, no caso os bios, com significativos ganhos de renda. Nesse sentido, advoga-se a redução de tarifas por parte de países desenvolvidos para impulsionar esse comércio, com o que se incluiriam os emergentes em um “novo ciclo de geração de riqueza”. O que você pensa sobre isso?

 

TS: Os programas de biocombustíveis dos países mais desenvolvidos não se destinam a abrir mercados para países em desenvolvimento, mas para resolver seus próprios problemas de curto, médio e longo prazos.

 

CC: Quanto à crítica relativa ao balanço energético negativo do álcool – onde se gastaria mais combustível fóssil para produzi-lo do que aquele que ele economizaria -, o físico Rogério Cezar Cerqueira Leite diz que, para cada unidade de combustível fóssil despendida para produzir o álcool, mais de 8 unidades deixarão de ser queimadas. É correto esse raciocínio, a seu ver?

 

TS: Não entendi bem o raciocínio do professor Cerqueira Leite, e tampouco pude perceber qual é a sua relevância prática. O álcool nunca conseguirá substituir uma grande parte do consumo de petróleo, e um excessivo aumento de sua produção acaba criando uma série de problemas sociais, econômicos e ambientais.

 

CC: No que se refere à degradação ambiental, o mesmo Rogério César avalia que as terras mais férteis do globo são aquelas cultivadas há séculos, e que, atualmente, não existe mais no Brasil vinhoto nos rios e nos mananciais e que a queima de palha já foi reduzida e o será mais ainda com a mecanização da lavoura. Qual a sua opinião?

 

TS: Também aqui há vários argumentos misturados e cuja relevância prática é difícil avaliar. A presença de vinhoto em cursos d’água e em mananciais continua existindo no Brasil, embora não seja registrada por falta de fiscalização. A colheita mecanizada de cana crua é ambientalmente e também do ponto de vista trabalhista a melhor prática possível. Mas ela precisaria ser complementada pela liberação das áreas não mecanizadas para outras culturas, e inclusive para a reforma agrária, se essas culturas não surgirem espontaneamente.

 

Na verdade, uma medida de fundamental importância seria a adoção de um zoneamento agroecológico e socioeconômico entre as diversas culturas e atividades, a fim de manter uma convivência entre as grandes lavouras, de um lado, e policulturas e biodiversidade, do outro.

 

CC: Dizem ainda os defensores do etanol que a preocupação com a água consumida pela cultura da cana é infundada, na medida em que o que existe é um complexo processo de ingestão/evaporação, no qual a água voltaria para a natureza na mesma proporção em que foi utilizada. O que você pensa disso?

 

TS: A cana de açúcar requer muita água, o mesmo se dando com o segmento industrial da agroindústria. Se este recurso for suficiente ou abundante, não há maiores problemas. Mas, caso isto não ocorra – por exemplo, na agricultura irrigada –, surgem problemas de prioridade social e econômica. E, no caso das usinas e destilarias, há o problema da cobrança da água utilizada e às vezes poluída por elas.

 

CC: Em uma versão mais política, a defesa do etanol chega também a citar Fidel Castro e Hugo Chávez, que teriam “virado a casaca”, passando de defensores a críticos contumazes do etanol em apenas um mês, uma vez diante da possibilidade de concretização da parceria Brasil-EUA na produção de bioenergia – especialmente após a vinda de Bush ao Brasil. Quanto a Chávez, especificamente, teria um motivo a mais para estar à revelia do projeto, um concorrente em potencial para o petróleo venezuelano. O que responder a essa versão?

 

TS: As críticas a Fidel Castro e a Hugo Chávez me parecem tão ridículas quanto a confiança depositada nas profecias de Bush para o Brasil.

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