Correio da Cidadania

“A política industrial não pode ser subordinada às questões macroeconômicas”, diz Fernando Sarti

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Entrevistamos para esta edição especial o economista e professor da Unicamp Fernando Sarti, que analisa a política industrial e tecnológica no Brasil durante o governo Lula. Não poupando críticas, Sarti considera "equivocada" a visão liberal dos petistas e alerta que, para tomarmos um rumo de crescimento sustentável, é necessário que a política industrial saia do papel secundário que hoje possui.

 

Correio da Cidadania: Quais as diferentes visões quanto à importância da política industrial e tecnológica para o desenvolvimento? Qual delas tem prevalecido ao longo da história?

 

Fernando Sarti: Podemos dividi-las em dois grandes grupos: de um lado, um grupo liberal, que vê uma função muito restrita e subordinada da política industrial em relação às demais políticas. Para esses, basicamente, a política industrial serviria como uma forma de resolver falhas de mercado ou falhas de governança, sendo subsidiária e tendo como intuito promover melhorias de externalidades. É uma visão muito restrita e passiva.

 

A outra visão, que eu denominaria "desenvolvimentista", atribui uma importância muito maior para a política industrial. Primeiro, propõe-se que ela não deve estar subordinada à política macroeconômica, ao contrário: dada a sua sinergia, ela deve ser ativa e integrada a essa política macroeconômica, numa posição hierárquica superior à que possui dentro da visão liberal. Segundo, propõe-se que ela não deve ser apenas uma política horizontal e não-discricionária; ao contrário, ela precisa ser discricionária e deve tratar desiguais de forma desigual. Transcendendo sua dimensão horizontal, tal política precisa olhar de forma diferente para os diversos setores, elegendo quais serão privilegiados e beneficiados, dependendo da estratégia de desenvolvimento.

 

De um lado, há um consenso de que é fundamental estimular os setores geradores de difusores de tecnologia, pois são cruciais numa economia - principalmente em economias em desenvolvimento, onde tais setores encontram dificuldades, gerando uma necessidade de se pensar em instrumentos especiais. No entanto, isso não significa que se devem abandonar os setores mais tradicionais, que tenham uma capacidade competitiva inferior, principalmente quando se pensa num processo de exposição desses setores a uma maior competição com outros países.

 

CC: Como levar adiante uma política industrial que se complemente pela política macroeconômica, subordinando-a, em vez de ser por ela subordinada?

 

FS: Ao se pensar em uma política de crescimento, é necessária uma política microeconômica que lhe dê sustentação, que não seja pensada como uma política subalterna, mas sim como uma política sinérgica à política macroeconômica. Isso não é chatice desenvolvimentista, não é discussão acadêmica, mas sim algo que faz todo o sentido. Os liberais dizem que basta que a política macroeconômica seja consistente, basta que você trabalhe em cima dos macrofudamentos da economia e as decisões de investimentos ocorrerão naturalmente, o crescimento virá naturalmente. Não é verdade. A visão desenvolvimentista diz que isso pressupõe visão, planejamento, o que se traduz na idéia de uma política industrial e tecnológica.

 

Observe a proposta do novo governo quando tomou posse - ou então, as propostas do começo da década passada. Há um consenso geral - e não entre economistas e industriais apenas - de que temos uma dívida social muito significativa. Essa dívida, em termos econômicos, representa a necessidade de crescimento de setores voltados aos cidadãos de baixa renda, estimulando o consumo dessa parte da sociedade que se encontra excluída. Falamos aqui de alimentos, de vestuário, moradia popular, todos esses bens de consumo duráveis ou não duráveis que deveriam estar acessíveis a esse nicho social e não está. Ao torná-los acessíveis – perceba que falamos de um volume muito grande da população -, teremos um aumento no consumo muito significativo, fundamental para a dívida social de nosso país.

 

A partir do momento que a população andar mais de ônibus, passará a consumir mais óleo diesel, por exemplo. Esse aumento do consumo estimula a produção doméstica, mas tende também a aumentar significativamente as importações. A produção precisa de mais máquinas e equipamentos; estimulam-se também alguns insumos que precisam ser importados. Há uma pressão sobre as importações e, o que é mais importante, uma menor geração de excedente de produtos a serem exportados, causando um impacto macroeconômico.

 

Perceba que as pressões nas importações levam a um aumento da vulnerabilidade externa da economia. Isso pode levar a uma situação de déficit comercial ou, o que é mais importante, a uma crise cambial. Mas se não se fizer isso, a economia nunca crescerá, não haverá o resgate da dívida social, além de não se criar sustentabilidade, que é fundamental a uma política de desenvolvimento.

 

Para que o crescimento da economia seja sustentável, também é fundamental que haja um retorno dos investimentos feitos. No caso do investimento feito por organismos públicos, precisa haver uma coordenação, pressupondo a existência de uma política industrial. Isso não existe hoje; não há uma diretriz dizendo que o financiamento público deve privilegiar, fundamentalmente, esse ou aquele setor. Se não se estabelece uma hierarquia, não existe uma política; basta prevalecer uma lógica de mercado, que é uma lógica deficiente. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) empresta dinheiro para quem alega que tem capacidade de pagar e pronto, deixando muitas vezes de ter o papel de um banco de desenvolvimento.

 

CC: E como tratar essa vulnerabilidade externa?

 

FS: Uma política industrial é fundamental. É necessário que as exportações, descontadas as importações, tenham seu dinamismo incrementado. Há que se fazer com que a produção incorpore cada vez mais produtos sofisticados, produtos que tenham cada vez mais dinamismo no mercado internacional. Se não é assim, aparecem problemas de preço, de elasticidade, de não se conseguir fazer com que as exportações cresçam a uma velocidade superior às importações. Daí a importância da pauta exportadora. Se nos deixarmos ficar pura e simplesmente à mercê das forças de mercado, o crescimento não vai acontecer.

 

CC: Existe uma política industrial no Brasil de hoje? Qual o seu perfil?

 

FS: Se falamos aqui de uma política ativa e articulada com a macroeconomia, nós não temos. Temos algumas atitudes dispersas, de visão estreita - até porque política industrial também pressupõe recursos, financiamento e um Estado mais ativo, o que nós não temos. Há uma lógica que prevalece no centro do poder – no Banco Central e no Ministério da Fazenda – de que hoje se deve buscar o ajuste fiscal antes de tudo, e isso pressupõe um Estado mais fraco, menos intervencionista, que não atue em financiamento público. Portanto, ainda que você tenha algumas iniciativas importantes do BNDES, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em termos de propostas, na prática, a política industrial não existe – ou não existe no perfil que havíamos considerado: ela continua sendo subalterna, passiva e apenas reagindo à política macroeconômica. Na prática, prevalece a visão liberal.

 

CC: Qual era o eixo básico da proposta do governo Lula para a política industrial e tecnológica?

 

FS: Havia a idéia de se usar a política industrial como uma política de desenvolvimento. Isso, porém, foi paulatinamente abandonado; temos hoje uma política industrial que está muito mais presa à idéia de competição, de eficiência. Se olharmos para os principais instrumentos e políticas adotadas nesse período, percebem-se atitudes nessa linha, como a MP do Bem, que propõe que se reduza o custo do capital para favorecer os investimentos – como se os determinantes do investimento dependessem basicamente dessa questão de custo. O governo toma medidas muito pontuais, a partir de uma visão diferente daquela que era a original no tratamento da política industrial.A proposta de política industrial não foi levada adiante em relação ao que foi proposto pelo Instituto da Cidadania.

 

CC: A MP do Bem, trazendo uma série de benefícios tributários para diversos setores da economia, seria, então, mais uma das medidas que não se inseririam estruturalmente na política industrial?

 

FS: A MP é bem-vinda, é positiva. Mas, dadas as necessidades, ela ainda é uma ação muito pontual; ela foi gestada, basicamente, conforme mencionei anteriormente, na idéia de que há um custo de capital elevado e de que tudo que for possível para a redução desse custo é bem-vindo. Isso é verdade, mas as taxas de investimentos no Brasil não vão saltar para os patamares necessários apenas pela redução desse custo de capital. De que adianta ter uma máquina mais barata se a rentabilidade que vou ter com o meu empreendimento está muito aquém da taxa básica de juros? Os juros altos não são inibidores do investimento produtivo apenas do ponto de vista do custo, mas também por se constituírem em alternativas de investimento financeiro, a partir de uma avaliação dos custos de oportunidade.

 

A MP é necessária, porém insuficiente. Ela se encaixa no objetivo de redesenhar a política econômica brasileira associada à idéia do produto potencial – ou seja, a idéia de que o Brasil tem um limite para crescer, que seria hoje algo em torno de 3,5% ou 4%, dado o estoque de capital, a qualidade de mão-de-obra e o nosso nível de produtividade. Esta é uma visão convencional na análise do crescimento da economia: advoga-se que o estoque de capital é baixo, pois o seu custo é elevado. Neste sentido, uma redução nas tarifas de máquinas e equipamentos permitiria a redução do custo do capital, viabilizando o aumento dos investimentos e, subsequentemente, o aumento do estoque de capital – permitindo maior potencial de crescimento. Trata-se de um raciocínio equivocado.

 

CC: Diante da predominância da visão liberal na consecução da política industrial, você destacaria o cumprimento de uma agenda mínima pelo governo Lula?

 

FS: Acho que sim, também não podemos ser tão pessimistas. Houve um esforço muito grande por parte do Ipea e do BNDES, que pelo menos colocaram para a sociedade que a política industrial não pode ser uma política horizontal. O próprio fato de se elegerem alguns setores, como o de software e a indústria farmacêutica, já é um avanço.

 

Para isso, pressupõe-se não apenas uma política tarifária, mas que os fundos setoriais funcionem, que haja recursos para alavancar os investimentos. Seriam, talvez, necessárias uma reforma patrimonial – fusões de empresas - e outras medidas que são importantes para alavancar esse processo. Diante da conjuntura que estamos vivendo, com a crise política e insuficiência de recursos, essas medidas, infelizmente, não se efetivaram.

 

Não houve investimento em infra-estrutura. Apesar de a identificarem como prioritária, os recursos não apareceram. Fizeram a proposta das PPPs (Parecerias Público-Privadas), mas isso não quer dizer que o projeto caminhou. Na concepção, há um avanço; a operacionalização deve frustrar em boa medida os elaboradores que acreditam no planejamento industrial e tecnológico. Tenho certeza que o Ipea e o BNDES têm uma visão diferente da prevalecente no ministério da Fazenda. Mas, entre esta visão e a sua efetivação, existe uma grande distância.

 

CC: Qual seria precisamente a sua explicação para a não operacionalização das propostas originais da equipe que formulou a política industrial e tecnológica? O que reverteu, já desde o início desse governo, a rota idealizada?

 

FS: É uma questão de hierarquia. Priorizou-se a "macroeconomia". Partiu-se da visão conservadora na Fazenda de que seria preciso reduzir a relação dívida/PIB, com o aumento do superávit fiscal. Deu-se, ademais, uma atenção crucial para a questão inflacionária - daí a manutenção das metas de inflação. O quadro de estabilidade daí originário criaria expectativas otimistas para os empresários, que então começariam a investir. O circuito deste pensamento pode ser assim resumido: há uma parte importante da poupança privada que é destinada ao financiamento da dívida pública; a partir do momento em que se começar a reduzir a relação entre a dívida e o PIB, ou seja, a partir do momento em que se começar a liberar recursos privados que hoje financiam a dívida, sobrará uma massa de recursos a ser destinada aos investimentos.

 

Essa é uma visão tradicional de pensar a solução. Todos os instrumentos do governo foram utilizados nessa direção – veja a reforma da Previdência. Se for preciso reduzir a dívida em relação ao PIB, existem duas opções: fazer o PIB crescer muito mais ou reduzir a dívida – escolheram a segunda opção.

 

Houve também a reforma tributária, com a idéia de que não se elevaria a carga tributária, mas apenas a base arrecadatória, com isso aumentando o volume de recursos. Sobre o investimento, houve algumas medidas pontuais. Na falta de financiamento, propuseram a nova lei de falências, ou de garantias. Há a idéia de que, se o investimento não ocorre, é porque o emprestador se sente desestimulado, pois empresta e não recebe de volta. Então, nada melhor que oferecer garantia – é esse o argumento.

 

Se olharmos bem, o que acabou por prevalecer no documento da reforma estrutural foi uma idéia secundária de política industrial - nesse sentido, as medidas tomadas foram coerentes. Mas, nem sob essa tônica mais limitada, houve a implementação de uma "política industrial". A política macroeconômica foi bastante ortodoxa e a microeconômica, por pressupor recursos, intervencionismo e um Estado mais forte, chocou-se diretamente com ela.

 

CC: Em suas alusões ao papel e desempenho do BNDES nesse governo aparecem aspectos positivos e negativos. Como você resumiria esta atuação?

 

FS: O BNDES é, até hoje, a principal fonte de investimentos para o desenvolvimento no país – o que, por si só, já confere ao banco uma importância ímpar. Na gestão anterior, o BNDES foi muito mal utilizado nos processos de privatização – que também criaram problemas operacionais.

 

O papel do BNDES não é planejar a política industrial, mas sim participar do processo realizando o financiamento. Muitas vezes, as exigências que estão por trás da tomada de recursos são muito grandes. As pequenas e médias empresas reclamam que os recursos não têm capilaridade, que algumas exigências, como, por exemplo, as relacionadas à certificação negativa de débito, atingem a empresa que tem um pequeno problema fiscal, trabalhista ou previdenciário. Talvez fosse necessário pensar em algum outro mecanismo para garantir os empréstimos.

 

Evidentemente, quando você empresta dinheiro, precisa de um retorno. Mas qual é o retorno? Em que prazo deve se dar o retorno? Com a falta de diretrizes de financiamento para setores específicos, a própria política fica frouxa. O BNDES é fundamental, mas sua utilização poderia estar otimizada se houvesse uma clara diretriz de qual é a política industrial que se deseja para o país.

 

CC: Você destacaria algum avanço deste governo em relação ao anterior?

 

FS: Entender que a indústria e a tecnologia caminham juntas e que precisamos pensar numa política setorial são avanços. Não obstante, acredito que algumas iniciativas do ministério da Ciência e Tecnologia do governo anterior foram muito positivas, como a criação de um fundo de recursos provenientes da cobrança de royalties para financiar investimentos. Assim, em alguns aspectos, houve avanço; em outros, tivemos até um retrocesso.

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