Da (Anti)Reforma Urbana brasileira a um novo ciclo de lutas nas cidades
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- Pedro Fiori Arantes
- 09/11/2013
Nos países avançados, em que a crise econômica bateu mais forte e trilhões de dólares foram drenados do orçamento público para o sistema financeiro, o desemprego e o desalento dos jovens levaram às ruas e praças das grandes cidades indignados e occupies. Nos países árabes, foi o “basta!” (kifaya) às ditaduras e às diversas formas de opressão militar-religiosa. Mas, qual o motivo das revoltas recentes no Brasil, país “emergente” e até pouco tempo “sensação” da economia global? Pico da inflação, redução dos níveis de crescimento, escândalos de corrupção são causas insuficientes para justificar milhões de pessoas nas ruas nos atos diários de junho em todo o país, sobretudo nas grandes cidades, e que seguem ainda hoje, esparsos, mas latentes.
Afinal, vivíamos no Brasil da última década certo nível de crescimento econômico continuado; aumento do emprego, do consumo e do crédito; mobilidade social, programas compensatórios de transferência de renda; incentivo ao “empreendedorismo” de todos os tipos; recordes na produção, de carros a commodities; status de potência agrícola e mineral; descoberta das reservas do pré-sal com a miragem da renda petroleira irrigando o país; deixamos de ser devedores para sermos credores do FMI, de alunos passamos a exemplo do Banco Mundial; barramos a ALCA, ampliamos o Mercosul, levamos nossas empresas para a África e alcançamos a presidência da OMC; para arrematar, ganhamos a corrida para hospedar espetáculos globais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Enfim, o país deixou de ser coadjuvante e tornou-se um dos protagonistas no concerto mundial das nações.
Se é assim, como, de uma hora para outra, tudo que ia bem parece ir mal? Muitas coisas desmentem ou relativizam esse cenário cor-de-rosa do Brasil emergente, mas talvez a principal delas seja a inviabilidade crônica de nossas metrópoles. O crescimento econômico e os níveis recordes de investimento não melhoraram as condições urbanas, mas, pelo contrário, levaram ao limite do impossível a vida nas cidades. Esse é um dos paradoxos de fundo, na origem do nosso “basta!”.
Se a forma urbana das metrópoles pode dizer algo sobre a sociedade brasileira e os sentidos da nossa (de)formação nacional, ou de nossa precária e incompleta cidadania, não é preciso ser especialista para perceber que o Brasil, como projeto de civilização – visto pelo ângulo das nossas cidades –, está longe de resultar em algo integrado, coerente e igualitário. Há um avanço da barbárie urbana concomitante ao avanço da cidade-mercadoria. A maioria de nossas principais cidades vive situações recorrentes de caos e calamidade, apesar da abundância relativa recente. Nos últimos anos, vivemos o boom imobiliário e o boom automobilístico – ambos impulsionados pelo governo federal – que colaboraram não para o crescimento da qualidade da vida urbana, mas para sua crescente deterioração.
Aquilo deu nisso
Temos, supostamente, as leis e os instrumentos urbanísticos considerados os mais avançados do mundo, um Ministério das Cidades, o Estatuto das Cidades (nossa lei da Reforma Urbana), planos, conselhos, fundos, em vários níveis administrativos. Tudo resultado de anos de luta popular, mas também da sua institucionalização, graças à prevalência de certa tecnocracia espalhada em centenas de administrações públicas, universidades, gabinetes e ONGs, que canalizou a ação direta de desobediência civil (o ciclo das ocupações) na direção da prática “responsável” de quem propõe novos instrumentos legais, participa de conselhos de fundos públicos e seus programas governamentais, tudo dentro da ordem (o ciclo institucional).
Constatamos hoje que a quase totalidade desses instrumentos legais não é aplicada, sobretudo no que diz respeito a garantir a função social da propriedade, sobretaxar grandes propriedades privadas, imóveis abandonados ou especulativos, forçar a urbanização de terrenos ociosos, cobrar a dívida ativa de devedores por meio da dação de imóveis, combater os crimes ambientais realizados pelos ricos, barrar despejos forçados fazendo valer o direito inalienável à moradia (pela Constituição Federal, o direito à propriedade privada no Brasil é relativo) e, por fim, orientar e planejar o crescimento das cidades em favor das maiorias, da qualidade de vida dos cidadãos e contra sua apropriação como mais um negócio do capital, agora em sua fase financeira e globalizada.
O Programa Democrático-Popular e seu capítulo da Reforma Urbana não apenas não realizou o que prometeu, mas deu no seu contrário, numa Anti-Reforma, ou numa privatização/mercantilização crescente das cidades, tratadas como mais um ramo dos negócios. A face social da Reforma Urbana democrático-popular foi sendo recalcada a favor de soluções de mercado, das parcerias público-privadas e da gestão focalizada da pobreza – receituário do Banco Mundial bem aplicado pelo Brasil (hoje na condição de formulador das mesmas receitas e seus ajustes).
Façamos um breve recuo histórico. Nos anos 1980 e início dos 1990, houve um primeiro ciclo da Reforma Urbana, ainda menos institucionalizada, que esteve combinada com as primeiras administrações municipais do PT, a ação dos núcleos de base e das comunidades eclesiais de base, com suas diversas associações de moradores, a formação dos movimentos urbanos e suas articulações, entre elas com um pensamento renovado na universidade, com seus laboratórios e ações de campo em favelas e periferias. Foi quando se reconheceu, pela primeira vez, nas políticas públicas e na academia, a cidade “oculta”, fora dos planos e leis, autoconstruída pelos trabalhadores.
Surgem naquele momento políticas dirigidas a essas áreas, fora da cidade do mercado, e que em muitas capitais abrigavam (e ainda abrigam) mais da metade da população. O novo urbanismo democrático-popular promove inversões de prioridades, projetos e obras de urbanização de favelas – no lugar da remoção forçada, que era a prática comum anterior –, a regularização fundiária, a construção de praças, escolas, saneamento e drenagem urbana, a produção de moradias por mutirão e autogestão, com qualidade superior às construtoras, políticas de assistência social de novo tipo, com experiências de economia solidária, além dos orçamentos participativos, que caracterizavam o “modo petista de governar”. Iniciativas que foram naquele momento importantes referências da transformação social, de diálogo entre intelectuais, ativistas e trabalhadores, mas que passaram a ser esvaziadas de sentido político e transformadas numa espécie de tecnologia de gestão de massas urbanas empobrecidas. A ênfase na participação, da construção das casas à peça orçamentária, perdeu o sentido de construção de poder popular e tornou-se uma forma de atrelar os movimentos à agenda dos governos e ocupar mais tempo que o necessário dos militantes em inúmeras reuniões e representações pouco efetivas, enredados em decisões secundárias dentro de um jogo em que as cartas, frequentemente marcadas, já estavam sendo dadas pelo setor privado.
O movimento pela Reforma Urbana, mesmo na sua fase mais criativa, também não chegou a ultrapassar algumas barreiras fundamentais, sobretudo não avançou no questionamento da propriedade privada do solo urbano – que por 350 anos da história brasileira foi de livre acesso. A terra tornou-se cativa, isto é, foi privatizada no momento em que a escravidão ruía e que os homens cativos eram alforriados. A Lei de Terras, de 1850, ano em que o tráfico negreiro tornou-se ilegal, antecipava a despossessão dos trabalhadores assalariados em relação à terra para morar. O sistema se modernizava e armava o jogo para a venda da força de trabalho como único meio para alcançar a moradia e qualquer outro bem de subsistência: o trabalhador assalariado deveria pagar pela terra cativa, que até então fora livre.
No programa da Reforma Urbana democrático-popular, a propriedade privada não foi questionada e combatida. Ao contrário, deveria ser regulada e distribuída a todos. Contra o latifúndio urbano a solução era o minifúndio privado, como na Reforma Agrária. Na prática, isso significou, mesmo nas experiências mais avançadas, projetar e construir loteamentos convencionais, em geral com lotes abaixo do mínimo permitido pela legislação, único meio de equacionar a compra da terra, até a construção de prédios em condomínios fechados. A propriedade privada seguiu ditando o modelo (da política à arquitetura), pois o objetivo não foi superá-la, mas reparti-la com todos.
Pleiteava-se o lote, a casa e alguma infraestrutura urbana. Avançou-se pouco em relação aos espaços coletivos, em direção a novas formas de produção, educação e saúde sob gestão dos movimentos populares, como ocorreu com mais frequência nos assentamentos de Reforma Agrária. No máximo, ao lado das moradias, erguia-se um centro comunitário, uma padaria, uma quadra esportiva e, se possível, guaritas e muros.
Formas de propriedade pública e estatização do solo eram recusadas (com exceção do caso especial de Diadema, e de poucos projetos de aluguel social em São Paulo, tidos hoje como “equívocos”), vistas como planificação antidemocrática, típica do socialismo real ou de regimes autoritários, como nossa ditadura militar. Contudo, a base da Reforma Urbana europeia e de seus Estados de bem-estar social também foi o controle parcial da terra pela propriedade pública, com moradias estatais de aluguel subsidiado, construídas e reguladas pelo governo, como forma de alocação planejada e relativamente igualitária das populações nos territórios. Tal modelo, como se sabe, supostamente em crise desde meados dos anos 1970, foi parcialmente desmontado por políticas neoliberais (a Inglaterra de Thatcher, por exemplo, chegou a privatizar todo seu parque público de moradias).
Mesmo formas de propriedade coletiva ou cooperativada também não foram amplamente defendidas e testadas pelos ativistas da Reforma Urbana. O influente modelo uruguaio de construção de moradias por ajuda mútua em suas cooperativas de habitação chegou ao Brasil pela metade: veio o trabalho em mutirão mas sem a propriedade coletiva, ou seja, o momento de produção das casas era associativo mas seu consumo fragmentado em propriedades privadas individuais (e os espaços comunitários, culturais e educacionais ficaram aqui atrofiados). A insurgência e autogestão dos trabalhadores não teve como prosperar, cerceada por um sistema de valores e práticas que lhe era contrário, pois dependia, depois do mutirão, da expansão do ato cooperativo para a propriedade coletiva em todos os níveis.
A aceitação da propriedade privada também encontrou apoio nas comunidades de base da Igreja, que pregavam um socialismo cristão de pequenos proprietários. Os militantes da Economia Solidária, por sua vez, não deram importância devida à produção solidária da cidade, dirigindo seus esforços para apoiar cooperativas de produção de mercadorias, como a reciclagem de lixo, artesanato, alimentos e alguns poucos produtos industrializados.
Assim, entre os movimentos sociais havia uma confusão/sobreposição entre direito à moradia e direito à propriedade, apresentados como sinônimos. No regime militar ganhara a alcunha de “sonho da casa própria”. Ampliar o acesso à moradia parecia ser o mesmo que ampliar o acesso à propriedade privada – agora com o slogan renovado de “minha casa, minha vida”. Confusão que interessa às elites, evidentemente, ao reforçar a propriedade privada como regra e princípio positivo perseguido por todos.
Pode-se comparar esse “freio” político-ideológico da Reforma Urbana brasileira ao que Florestan Fernandes indicou a respeito da visão positiva do assalariamento pela classe trabalhadora brasileira. O mito do emprego como inclusão social dirigiu a energia dos trabalhadores para a luta por ascensão social ao invés da crítica ao capitalismo – daí a prevalência do sindicalismo de resultados, sem defesa da autogestão da produção, sem enfrentamento com o sistema.
Em ambos os casos, na cidade e na fábrica, nos movimentos urbanos e nos sindicatos, não se levou adiante o combate à propriedade privada e ao assalariamento. Daí que nunca se defendeu no Brasil (e mesmo pouco se conheceu) o modelo cubano de Reforma Urbana, com expropriação de imóveis ociosos, mansões ou casas de veraneio (apesar da acusação de Collor de que, com Lula presidente, uma família de sem-teto iria morar em cada casa da classe média), ou ainda o fim do aluguel – banido em Cuba antes mesmo de declarado o caráter socialista da Revolução. Nunca se reivindicou moradia gratuita aos que precisam (“a gente não quer nada de graça” é o senso comum incutido), apesar da luta para que a moradia constasse na Constituição Federal como direito fundamental do cidadão.
Aceitou-se a regularização fundiária nas favelas e loteamentos informais, mesmo sem infraestrutura e moradia adequadas. Pretendeu-se aplicar programas de titulação em massa, em nome da “segurança na posse” e também como regularização do capitalzinho-moradia (a casa titulada) para que os moradores tomassem mais crédito (como no Peru de Fujimori, com 5 milhões de títulos de propriedade, incluindo favelas nos Andes sem infraestrutura alguma, como forma de criar capital hipotecável para pequenos empreendedores, como defendia De Soto). Ou, ainda, financiamentos aos mutuários da casa própria, representando décadas de endividamento para famílias com baixíssima seguridade social, riscos de despejo e inadimplência. E o pior, o tamanho e a qualidade da moradia definidos de acordo com a renda e a capacidade de pagamento de cada morador (resultando em acintosas moradias de trinta e tantos metros quadrados e em faixas de atendimento “focalizadas”), não de acordo com as necessidades de sua família, do bairro ou da cidade. Modelo que gera iniquidade, mas atende à minimização de riscos e à “viabilidade econômica da operação de crédito” envolvida, segundo o Banco Mundial, que assessorou e financiou programas similares no Chile, México, África do Sul etc.
A aceitação da propriedade privada como regra inviolável do jogo, a falta de ousadia e um certo pragmatismo na gestão da pobreza empurraram a agenda da Reforma Urbana a ponto desta confundir-se com os discursos e práticas do setor imobiliário, dos governos de direita e do Banco Mundial. Afinal, não sabemos mais como seria essa cidade da Reforma Urbana. Quais suas qualidades outras, contrárias ao que está aí? Como seria viver nela e construí-la? Quais os nexos entre Reforma Urbana e transformação social, que se expressariam numa nova forma de cidade?
Os inúmeros instrumentos, programas, conselhos, fundos e o próprio Estatuto das Cidades não resultaram em uma nova visão da cidade e dos sentidos da vida urbana, das relações entre sociedade, território e ambiente construído. Mesmo os projetos para mutirões e favelas, restritos a lotes e perímetros bem definidos, não se desdobravam em perspectivas mais amplas de cidade, suas infraestruturas, seus espaços públicos. De fato, não se imaginou (desenhou ou escreveu) como seria essa (re)Forma Urbana, suas qualidades materiais e simbólicas, as novas condições de vida, as características dos bairros e dos centros urbanos, seus lugares de uso público, a relação com a natureza e a paisagem, as formas de mobilidade, os sistemas de saneamento, os espaços da política, da memória, do corpo etc.
A Reforma Urbana democrático-popular, focada nos meios, nos instrumentos, pouco avançou no pensamento substantivo sobre a cidade, nos fins. Não há imagem, não há forma, não há narrativa para essa cidade almejada – não há projeto e utopia. Se a Reforma Urbana recusou o urbanismo moderno, sua forma e sua ideologia, que tem em Brasília sua expressão/contradição máxima – cidade para um novo país, construída pelos que não puderam nela morar –, por sua vez, abdicou da própria disciplina do urbanismo, enquanto capacidade projetual articuladora e antecipadora da cidade pensada. Negação que impediu antecipações mais claras do que se pretendia.
O desafio seria reassumir o urbanismo, noutros termos, não como ideologia do Estado e do capital, mas como campo projetual igualmente renovado, como exercício de criação coletiva, capaz de imaginar essa cidade (re)formada – da cidade como experiência vivida à sua dimensão política, simbólica e mesmo utópica.
O conservadorismo político-ideológico e a falta de imaginação e vontade projetual da Reforma Urbana levaram a esquerda a entregar o desenho da cidade ora aos urbanizadores de favelas ora, o que é muito pior, ao próprio mercado imobiliário – e a aceitar a sua forma urbana. Levou-a também a rechaçar outras propostas ousadas, entre elas a da tarifa zero nos transportes, ainda nos anos 1980, o que implicaria noutra forma de mobilidade e de cidade.
A tarifa zero era defendida por um grupo pequeno na gestão de Luiza Erundina (1989-92) e foi derrotada não apenas pela mídia e a “opinião pública”, mas também dentro do próprio PT. Ônibus gratuito e sem catraca era visto como um “delírio”, apesar de hoje novamente em pauta e com apoio de uma parcela significativa da população. O movimento de Reforma Urbana, centrado no problema da moradia, não chegou a constituir uma agenda sobre mobilidade como direito urbano fundamental, meio de acesso a outros direitos, muito menos sua gratuidade. A catraca não foi posta em questão, tal como a propriedade privada. E ainda aceitou-se a gestão e prestação privada (e cartelizada) de serviços de transportes urbanos. Trataremos disso adiante.
É possível reconhecer um movimento de capitulação paralelo, na base e nas lideranças, em questões decisivas da Reforma Urbana. Na base, como mencionamos, era estimulado o sentimento pró casa própria e o direito à moradia como direito à propriedade. Na cúpula do movimento disseminava-se posição similar, a favor do sistema: convencer o capital imobiliário a atender os mais pobres e não apenas o topo da pirâmide social brasileira. Assim, adubavam-se as sementes que promoveriam a inversão de sentido da nossa Reforma Urbana: a naturalização da propriedade privada e a aliança com o capital para ampliar o mercado e “incluir” a classe trabalhadora na sua máquina de (des)fazer cidade. Os pobres deveriam parar de autoconstruir a moradia ou fazer mutirão, meios arcaicos de se produzir habitação no mundo da mercadoria, para tornarem-se compradores, a prazo e com certo subsídio, da mercadoria-moradia. As bases estavam lançadas: o projeto democrático-popular propunha uma aliança de classes por uma Reforma Urbana sem conflitos e com “mercado para todos”.
Basta rever o debate dos anos 1990, os textos desse período, os consultores internacionais que por aqui passaram e o Projeto Moradia elaborado pelo Instituto Cidadania, do PT. Na agenda da Reforma Urbana, no final dos anos 1990, as construtoras e o mercado imobiliário seriam os protagonistas, e não mais os movimentos sociais em luta. Mas o capital, agora aliado, teria que aceitar algum controle, daí a necessidade de “regulá-lo”, com leis, conselhos, instrumentos, que pouco puderam refrear sua natural voracidade. “Ampliar o mercado” era uma palavra de ordem, “queremos capitalismo de verdade nas nossas cidades”, outra. Consultores do modelo habitacional chileno, do Banco Mundial, BID e de institutos norte-americanos acorriam para nos dizer o que fazer.
No PT, com a alegação de acabar com o déficit habitacional a qualquer custo, eram elaborados estudos e planilhas da engenharia financeira para reativar uma máquina de crescimento habitacional parecida com o BNH dos militares (visto até com saudosismo por alguns). O que levou o Partido e movimentos de luta por Reforma Urbana, por exemplo, a defenderem, nos anos 2000, a “PEC da moradia”, lado a lado com os empresários do setor – todos pela causa da habitação...
Fazer o bolo urbano crescer para depois dividi-lo
É importante lembrar, quando avaliamos as metamorfoses da Reforma Urbana brasileira, que os formuladores de políticas urbanas ligados ao PT defenderam e mesmo introduziram, a partir dos anos 1990, vários dos mecanismos pós-modernos de privatização das cidades: operações urbanas, operações interligadas, concessões urbanísticas, venda de certificados de potencial construtivo adicional, parcerias público-privadas, grandes projetos urbanos, megaeventos etc. Os urbanistas do Partido foram personagens importantes na circulação e importação de modelos internacionais de gestão urbana financeirizada e seu city marketing (apesar de alguns terem revisto essa posição nos últimos anos). Foram divulgadores no Brasil dos sistema chileno de habitação e seu mercado financeiro-imobiliário, de Puerto Madero em Buenos Aires e do “modelo Barcelona”, levando consultores internacionais e operações urbanas a todos os rincões do país, a cidades que queriam atrair investidores e participar do competitivo mercado de “cidades à venda” (com suas vocações, isenções fiscais e golpes de marketing).
O mantra era acelerar a acumulação capitalista nos circuitos imobiliários, fazer as cidades máquinas de crescimento para arrecadar “mais-valias urbanas” e aumentar o orçamento público em tempos de restrição fiscal a novos endividamentos. Uma fórmula mágica que logo se mostrou ilusória para os fins sociais, e que serviu a outros propósitos, incluindo o financiamento de campanhas. Na gestão Marta Suplicy (2000-2004), em São Paulo, uma parcela dos urbanistas petistas começou a perceber que a aliança com o capital e a difusão de operações urbanas tinham saído de controle quando onze operações foram introduzidas no Plano Diretor e aprovadas sem o devido debate – algumas delas beneficiando grupos específicos e levantando outras suspeitas.
Acabada a era do “modo petista de governar”, que marcou a primeira fase da Reforma Urbana democrática-popular, agora prevalecia o pragmatismo da aliança com os produtores capitalistas da cidade. As forças sociais, levadas a segundo plano, foram conduzidas a participar de conselhos e discutir Planos Diretores, delimitar ZEIS (zonas especiais de interesse social) e opinar na alocação de recursos ainda exíguos para enfrentar os enormes problemas urbanos. A anestesia do movimento social era ampliada com a distribuição de cargos em mandatos parlamentares e nas administrações públicas, o que reduzia a autonomia e colaborava para ampliar o consenso dos gabinetes.
No fim dos anos 1990 e início dos 2000, resultado dos estragos promovidos pelo neoliberalismo – desemprego e desamparo social, despejos e políticas urbanas higienistas –, e com o PT na oposição, ocorre um miniciclo de ascensão popular e novas ocupações. Em São Paulo, no Rio, Porto Alegre, Recife, entre outras cidades, eram ocupados por movimentos organizados dezenas de imóveis vazios nos centros, trazendo à cena moradores de cortiços e o tema da “gentrificação” (substituição de populações) nas renovações urbanas (cujo modelo era o Pelourinho higienizado de ACM), o direito à cidade e aos seus centros com infraestrutura. Articulações novas aparecem, entre encortiçados, moradores de rua, ambulantes, estudantes, grupos de teatro e de direitos humanos, resultando em São Paulo, por exemplo, no Fórum Centro Vivo. Ocorrem rachas no movimento de Reforma Urbana e surgem outros movimentos de luta por moradia fora da órbita direta do PT, autônomos ou ligados a partidos mais à esquerda. Os movimentos rurais também ensaiam criar movimentos urbanos próprios e projetos de moradia de novo tipo. Na luta por transportes, com a articulação dos jovens por passe livre, começa a surgir um movimento nacional pela tarifa zero e pela qualidade na prestação dos serviços de transportes coletivos.
Na eleição de Lula, em 2002, um sopro de esperança (ou de ilusão) veio com a criação do Ministério das Cidades. Apesar das inovações políticas e administrativas que o Ministério permitiu – com a articulação de programas setoriais de transportes, saneamento, habitação e desenvolvimento urbano, a ampliação da participação com novos conselhos e fundos –, a política habitacional patinava (com o pífio programa de Crédito Solidário e o rescaldo do PAR, de FHC), o Estatuto das Cidades não era aplicado nos Planos Diretores municipais, não havia uma política pública de terras, enquanto ampliava-se o crédito para as empresas imobiliárias brasileiras crescerem, produzindo um boom imobiliário estrondoso e uma onda de valorização sem precedentes das propriedades urbanas.
Com o objetivo de injetar recursos nas cidades via mercado financeiro e construtoras, os petistas faziam o bolo imobiliário crescer, supostamente para depois dividir. Não à toa, Delfim Netto, ex-ministro da fazenda do Regime Militar (quando inventou a metáfora do bolo) e conselheiro econômico número um de Lula, e seu partido, o PP, ganham em 2005 o Ministério das Cidades, indicando o novo ministro – como forma também de acalmar a base em mais um escândalo de corrupção. Desde então, o PP está à frente das Cidades e, em São Paulo, controla a máquina de fazer casas estadual (a CDHU) e a Secretaria de Habitação da Prefeitura Haddad. Se é para fazer a política do capital, nada melhor do que entregar diretamente aos seus representantes, abrigados num partido de extrema direita, herdeiro da ditadura.
O ponto de chegada da (Anti)Reforma Urbana petista, ao mesmo tempo seu fim de linha e sua realização, é o Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Três milhões de moradias estão sendo produzidas nos últimos cinco anos, com a alegação de ataque em grande escala ao déficit habitacional, quase integralmente (cerca de 98%) sob a batuta do setor privado, usando recursos públicos e promovendo uma onda de aumento do preço da terra em todo o país. No MCMV, quem faz política de terras é o setor privado, como é também ele quem define o local e o padrão de urbanização, a arquitetura, a tecnologia a ser adotada, e assim por diante. O Estado abdicou de uma política pública de terras e desenvolvimento urbano, abdicou de ter inteligência projetual sobre as cidades e de qualificá-las. Quem “opera” o MCMV, além de 13 grandes construtoras, é um banco – a Caixa Econômica Federal, cujo presidente é um dos urbanistas do PT –, que segue a racionalidade financeira de cálculo de riscos comerciais de crédito consignado e um check list de requisitos mínimos para aprovação dos empreendimentos (fiscalização que muitas vezes é até terceirizada). Apoia-se na lei de alienação fiduciária, que dá segurança às empresas na retomada de imóveis de inadimplentes e permite, afinal, avançar no mercado para populações precarizadas.
A promoção da casa popular é apresentada, assim, como solução compensatória da Reforma Urbana que não ocorreu, e melhor elo da conciliação de classes entre capital e trabalho – uma vez que beneficiaria a ambos. Na “aliança pela casa própria” não haveria interesses opostos: forja-se um consenso entre a necessária lucratividade dos capitais, os ganhos eleitorais dos políticos, a venda de terras valorizadas pelos proprietários e o benefício social dos atendidos pelo programa. A valorização imobiliária produzida pelo MCMV e pela ampliação do crédito imobiliário levou a crescimentos vertiginosos do preço da terra (180% em São Paulo e 250% no Rio de Janeiro nos últimos 5 anos). A própria tabela do MCMV para a sua casa mais simples (com menos de 40 m2), em São Paulo, começou com R$ 52 mil em 2009 e hoje está em R$ 96 mil (com o complemento estadual), e mesmo ultrapassando este valor, com doação de terras públicas via desapropriação municipal, crescendo assim bem acima da inflação.
Trata-se, à primeira vista, de uma onda de valorização imobiliária rentista que parece beneficiar a todos, dos grandes proprietários aos pequenos, que veem seu capitalzinho imobiliário valorizar-se e têm a certeza de que sempre valeu a pena estar ao lado da propriedade privada. Contudo, essa valorização da terra cria uma situação desfavorável aos trabalhadores, ampliando a diferença entre renda imobiliária e renda do trabalho (salários). Hoje é cada vez mais caro comprar e alugar a moradia, os aumentos de IPTU serão inevitáveis, acima da inflação e dos salários. Daí a chance de ampliação do endividamento e da inadimplência, chegando atualmente a 70% em algumas faixas de financiamento, incluindo o MCMV, que, por isso, parece estar com os dias contados.
Dessa valorização não surgiram cidades melhores, mais justas e integradas. Quanto mais se investe, mais caras e piores ficam – um aparente paradoxo, mas explicável no sistema em que vivemos. Países com grandes projetos habitacionais como o nosso, no qual se privilegiam quantidades ao invés de qualidades, e desconsidera-se o processo complexo de fazer cidades, produziram uma série de desastres urbanos e sociais, muitos deles irreversíveis. Por mais que se ataque o déficit de teto para morar, esse modelo de produção da casa-mercadoria não reverte nosso principal déficit, que é o de falta de qualidade urbana, pois a urbanização que promove é desurbanizadora (e desoladora). Inspiradas na produção em massa de carros populares, e dispostas na cidade como se fossem pátios de estacionamento, essas casas não por acaso foram batizadas (pelo atual presidente do BNDES) de “moradias 1.0”.
Crédito e renúncia fiscal para nosso apocalipse motorizado
Aí está a outra ponta de nosso desastre urbano: o “carro para todos” e a apologia do automóvel, do petróleo e da cana como motores da economia.
A aposta petista de crescimento econômico com conciliação de classes também ocorreu com o abraço entre metalúrgicos e indústrias multinacionais de automóveis (aliança que já vinha sendo sinalizada desde as câmaras setoriais, nos anos 1990, com a premissa de gerar empregos e entupir as cidades de carros). Essa aposta foi reforçada pelos inúmeros e escandalosos incentivos e renúncias fiscais para as multinacionais, substituição das lavouras de alimentos por plantação de cana-combustível (baseada no trabalho degradante do boia-fria) e direcionamento da construção pesada para a ampliação das infraestruturas destinadas aos automóveis. O caso emblemático, além dos túneis bilionários, é a ponte estaiada na Marginal Pinheiros em São Paulo, projeto do PT, chamariz para o mercado imobiliário, cenário de fundo do jornal da Globo e novo “cartão postal” da cidade. Selando a aliança das mídias com o capital automotivo-imobiliário e os governantes de plantão, a obra, cujo acesso é reservado a carros (ônibus, bicicletas e pedestres são proibidos), consumiu quase 400 milhões de reais (recursos que deveriam ter sido destinados, por lei, para habitação social dos atingidos na Operação Urbana) e ao fim foi batizada com o nome do falecido dono da Folha de S. Paulo, Otávio Frias, despejando o trânsito na Avenida Roberto Marinho, falecido dono da Globo.
De outro lado, a expansão vertiginosa do crédito ao consumo de automóveis, a juros zero e parcelas a perder de vista, permitiu o crescimento artificial do setor, com altos riscos, como demonstrou a crise do crédito subprime nos Estados Unidos. Por aqui as taxas de inadimplência também cresceram, com veículos sendo retomados pelas financiadoras, gerando prejuízos a ponto de a principal financeira de automóveis ter sido semiestatizada pelo governo: o Banco Votorantim, do ex-mais rico do Brasil, Antonio Ermírio de Moraes, teve 49,9% de suas ações compradas por quase R$ 5 bilhões pelo Banco do Brasil para tampar o rombo na inadimplência da BV Financeira de automóveis. O Itaú foi outro a perder bilhões com inadimplência no crédito de veículos.
Os males do “apocalipse motorizado” são conhecidos e os números, alarmantes. Acidentes no trânsito são a principal causa de morte não natural no Brasil, com 61 mil pessoas em 2012, além das doenças e mortes de origem respiratória causadas pela poluição do ar. Além disso, o automóvel é responsável por grande parte da impermeabilização do solo nas cidades – ele consome 30% do solo urbano, entregues ao asfalto e pátios de estacionamento – e pela descaracterização de seus rios e fundos de vale, a degradação de várzeas, morros e áreas verdes, o que tem resultado em inúmeras enchentes e outras catástrofes.
O carro é ainda uma mercadoria sui generis. Tomado individualmente, como objeto técnico cada vez mais aperfeiçoado para locomoção individual ponto a ponto, ele é uma das maravilhas do progresso técnico e do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Contudo, do ponto de vista do consumo coletivo do automóvel, enfileiram-se (ou engavetam-se) os paradoxos. Trata-se de uma mercadoria que, quanto mais vendida e consumida, mais torna-se inoperante. Isso porque o automóvel é um bem privado consumido no espaço público, que é limitado, por mais que se ampliem as obras de ruas e avenidas. Como dois corpos não ocupam o mesmo espaço, quanto mais carros nas ruas, menos andam. A trava do sistema de mobilidades produz um efeito dominó de irracionalidades: desgaste dos equipamentos, consumo excessivo de combustíveis, poluição do ar e sonora, stress, acidentes, gastos em saúde pública etc. Mesmo assim a indústria especializa-se em carros superpotentes e gigantes, que ficam parados em congestionamentos monstro.
Mas o carro é ainda a mercadoria vedete do capitalismo. O fetiche do automóvel e sua promessa de liberdade e potência individuais estão no cerne do sistema: vou para onde quiser – mesmo se o resultado geral do uso do automóvel seja a morte de milhares de pessoas e a inviabilização das cidades. A propaganda de carro e suas “fábulas”, que mobilizam de forma aterradora valores individualistas e arrivistas dominantes (potência, velocidades além do limite, status social, conquista de mulheres, liberdade para ir onde outros não vão, desprezo ao riscos e aos sem carro etc.), é um tema central para uma análise sociológica da sociedade de consumo. Deveria ser restringida, como a de cigarro e qualquer droga prejudicial à saúde. Mas elas povoam (e pagam) jornais e revistas, os mesmos que informam em seus outros cadernos os novos números recordes de engarrafamentos e poluição.
Os parcos orçamentos públicos para investimento em obras urbanas são tragados em proporção acintosa por mais pontes, avenidas e túneis (o último, recém-cancelado graças aos protestos, custaria quase R$ 3 bilhões, entre a Água Espraiada e a Rodovia dos Imigrantes, novamente com acesso restrito a carros; e o prefeito Haddad acaba de anunciar que não fará as avenidas prometidas do Arco do Futuro, ao menos não com recurso público). Sem falar na isenção de impostos, como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): o transporte privado individual no Brasil recebe 11 vezes mais recursos públicos do que o transporte coletivo, segundo pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas).
O tempo cada vez mais longo de transporte na cidade, entre casa, trabalho, escola e outros serviços, tem deixado as pessoas apertadas em ônibus ou solitárias em sua mônada de lata, de duas a três horas por dia em deslocamentos. Somados às nove horas no trabalho (oito mais uma de almoço, sem contar a hora extra), oito horas dormindo (ao menos é o que recomenda a OMS), duas a três horas ao menos entre higiene, trabalhos domésticos e demais refeições, sobram de uma a duas horas por dia – quando muito, para viver, momento de tempo livre e atividade supostamente autodeliberada.
Mas sabemos que nem isso é assim, pois o tempo se esvai entre a televisão, o shopping e outros “tempos livres” programados pela sociedade de consumo e idiotização de massas. Essa miséria da vida cotidiana em nossas grandes cidades não se restringe aos mais pobres, mas afeta de um jeito ou de outro também a classe média. Para os primeiros, evidentemente, é bem pior, pois, aos problemas já vividos pelas camadas médias, somam-se os riscos de vida por razões ambientais (deslizamentos, alagamentos), riscos de despejos, maior dificuldade de mobilidade, emprego, serviços públicos precários, falta de qualidades urbanas etc. Mas todos estão “travados” em cidades que deram errado, procurando formas de autodefesa, blindagens e segregações entre grupos típicas de anomia social. O colapso das cidades – enquanto fim da experiência comum de vida social e civilização – democratiza-se, por certo, de forma desigual, e alcança a todos.
Aprendizados para um novo ciclo de lutas urbanas
Há 40 anos, num estudo pioneiro sobre São Paulo, falava-se de uma “lógica da desordem” urbana, do laissez-faire na produção da cidade, criando um caos do qual alguns capitais obviamente se beneficiavam. Hoje a situação se agravou tanto que mesmo esses beneficiários, ainda que lucrem enquanto pessoas jurídicas, não têm mais como viver como pessoas físicas, no próprio caos que criaram. A irracionalidade do capital entregue a si mesmo na produção da cidade e seus serviços torna-se a cada dia mais evidente.
Se nossas cidades ainda são negócio lucrativo para alguns, elas chegaram ao fim da linha: no modelo atual, como já assinalado, quanto mais se investe, mais caras e inviáveis ficam, tal como os carros, que quanto mais se produzem, menos andam. A urbanização não produz mais qualidades urbanas próprias ao que se entendia como cidade – trata-se de uma urbanização desurbanizadora –, assim como o crescimento econômico não produz necessariamente desenvolvimento e equidade social.
A inundação de crédito e mercadorias colapsou nossa frágil estrutura urbana. A aliança com o mercado imobiliário, com as construtoras, com as montadoras, com as máfias de serviços urbanos – o que antigamente era chamado de aliança com a burguesia nacional – serviu mais aos interesses dos que tratam a cidade como negócio do que às necessidades dos cidadãos, que precisam da cidade como meio de vida. As grandes cidades brasileiras, longe de serem espaços animadores de se viver, são hoje produtoras de insegurança, doenças e traumas de todos os tipos.
Ainda assim, a cidade é isso tudo e sua “negação determinada”. Nela estão os sujeitos que tornam possível sua transformação, estudam, pensam, mobilizam-se, têm propostas e desejos. Esses sujeitos são diferentes dos velhos/novos “personagens que entraram em cena” com a Reforma Urbana do ciclo anterior e que tiveram seus méritos reconhecidos naquele momento. Os atuais ativistas urbanos olham para a cidade de outro modo, sem as mesmas ilusões e sem concessões ao capital – não aceitam cidades à venda para os cartéis de sempre, de imobiliárias, transportes, lixo e eventos. Suas demandas são precisas, ao mesmo tempo ousadas e de bom senso, parecem mínimas (vinte centavos a menos na tarifa) mas também máximas (transporte gratuito para todos).
O MPL (Movimento do Passe Livre) e outros grupos de luta por transportes (como o Bloco de Luta por Transporte Público, de Porto Alegre) não apenas obtiveram na rua a vitória dos vinte centavos em dezenas de cidades como conseguiram disseminar no imaginário coletivo a possibilidade da tarifa zero nos transportes, como direito urbano fundamental que conecta os cidadãos a outros direitos (educação, saúde, lazer, cultura, esportes). Afinal, sabe-se que o transporte onera excessivamente a renda de muitos trabalhadores e que 1/3 das populações das cidades não tem sequer como arcar com a tarifa, tendo que andar a pé. Ter que pagar para ir à escola, ao hospital, ao centro cultural, ao museu, ao parque e à praça, quase todos serviços gratuitos, pode ser um impedimento ao seu acesso para muitos cidadãos.
Por isso, a tarifa zero põe em dúvida a mercantilização da cidade – por que pagamos por esse direito? Afinal já pagamos tantos impostos, sendo que os trabalhadores contribuem percentualmente mais do que os ricos. Mesmo que a população não saiba tecnicamente como implantar a tarifa zero, percebe politicamente sua justiça e pergunta-se, afinal, por que pagar pelo transporte público, que é um direito do cidadão, por que passar por catracas humilhantes como gado e apinhar-se em ônibus feitos sobre carroceria de caminhões. Por que aceitávamos tudo isso?
A “descatracalização” dos ônibus, da cidade, do acesso aos direitos, enfim, a descatracalização da vida, que está expressa nas falas e cartazes do MPL (as catracas são puladas e destruídas das mais diversas formas na vida e no material gráfico do movimento), é uma forma de retomar a “imaginação no poder”, lema de maio de 1968 (ou ainda: “sejamos realistas, exijamos o impossível”). A ousadia da reivindicação faz com que sejam acusados, por isso, de irresponsáveis, ao não indicar a origem dos recursos para pagar a conta do sistema, ou ainda de ingênuos, por não perceberem que o subsídio para todos iria também beneficiar empresários que deixariam de gastar com vale transporte.
Mas então a questão torna-se ainda mais interessante. É preciso voltar ao que foi, inclusive, uma das bandeiras fortes do PT em seu princípio: a justiça fiscal. Que se taxem as grande propriedades, fortunas e heranças (na Inglaterra, por exemplo, 50% do valor das heranças vão para o Estado, no Brasil, 4%), e também que se recolha de outra forma o vale transporte (que voltaria para o sistema), que se penalizem as mercadorias que fazem mal à cidade e aos cidadãos, que poluem, matam e tomam o espaço público (ampliando rodízios, pedágios urbanos, impostos sobre combustíveis). O transporte gratuito, como direito que conecta outros direitos, só se viabiliza com um movimento mais amplo de justiça social, fiscal e urbana.
É preciso estranhar o que foi tido como natural: a insanidade das cidades que criamos e nas quais vivemos (ou tentamos viver). Que indivíduos e coletivos em luta aproveitem o momento dessa eclosão nas ruas e de ideias novas para imaginar a transformação radical da cidade/sociedade, passado o ciclo da (Anti)Reforma Urbana petista e do seu correspondente projeto democrático-popular. Qual o novo ciclo de lutas urbanas? Quais seus novos métodos, programas e atores?
De fato, o tema da mobilidade urbana é um bom ponto de partida, mas não de chegada, que ainda deve ser a cidade como projeto de civilização. Se ele atrai um nó de questões que, ao ser desatado, ajuda a questionar a lógica de todo o sistema, é preciso pensar quais os movimentos desse desenrolar, qual o caminho para se mudar a cidade a partir da tarifa zero e para todas as esferas da vida urbana. Quais outras pautas são “conectoras” com a da mobilidade? Quais são integradoras e inter-territoriais (incluindo a aliança campo-cidade, que alimenta a todos)?
Um dos limites da Reforma Urbana do ciclo anterior foi fragmentar a luta popular em lutas setoriais, que iam bater em portas de secretarias para pedir programas igualmente fragmentados. Agora interessa bater às grandes portas. Não deixemos que a força das revoltas de junho seja dirigida apenas para políticas setoriais e seus conselhos, fundos e instrumentos. A cidade é uma só. Aprendemos com o ciclo anterior os limites da luta institucional. Saberemos usá-la quando necessário, mas com as últimas jornadas vimos que as conquistas podem se dar de outro modo – inesperado e radical.
De outro lado, frações do capital já se orientam para esse renovado filão de negócios: a mobilidade urbana. A presidente Dilma anunciou recentemente um pacote de mais de R$ 50 bilhões para o setor, que pode ganhar no novo contexto simbólico gerado pelas manifestações condições políticas para “alavancar” um novo ciclo de investimentos, terminados os estádios da Copa. Obras se anunciam, diversas delas necessárias, outras não, algumas corretamente planejadas, outras mirabolantes ou feitas às pressas para captar recursos do governo federal. Veja-se a farra dos metrôs pelo Brasil: poucos saem do papel, mas todos geram negócios e negociatas. Modalidades de transportes e sua gestão estarão em disputa e muitos lobistas seguirão tentando passar seus trens de dinheiro em cada novo túnel.
Para contrabalançar os interesses privados de mais um ramo do business com os interesses públicos e dos cidadãos, será preciso deixar claro o que distingue nossa pauta da dos comerciantes de mobilidade. Qual o divisor de águas? O que separa o transporte-mercadoria do transporte como direito do cidadão? Ou poderiam ser convergentes, como o modelo Lerner-Curitiba faz crer?
O desafio é fazer a ação direta acompanhada de uma teoria que a oriente e problematize, que indique os pontos frágeis do adversário e nossas forças (nem todas ainda conhecidas). É preciso que as universidades renovem o ensino e a pesquisa e formem profissionais com outra visão dos problemas urbanos, das suas infraestruturas, da mobilidade, do saneamento e meio ambiente, da qualidade dos espaços e edificações e que novas práticas sejam orientadas por pressupostos até então pouco considerados. Que os partidos, sindicatos e organizações de esquerda também possam se dedicar mais profundamente ao tema das lutas urbanas – quase sempre relegadas a segundo plano –, ao entendimento das cidades, de seus agentes e meios de transformação, sem descuidar do “desenho” e das qualidades dessa cidade (trans)formada.
Mesmo o cidadão comum, a partir da sua experiência vivida e apoiado por canais de informação independentes, grupos de debate e novas pesquisas acadêmicas sérias, pode ser estimulado a pensar sua cidade, compreender sua história e sentido de mudança, e também tornar-se um integrante de coletivos de imaginadores urbanos ou de uma imaginação coletiva da cidade em transformação. Pelo desenho, texto, teatro, música, pintura, grafite, cinema, as cidades precisam continuar sendo imaginadas.
E no país o futebol, se as horas dedicadas a assistir, jogar e debater o mundo da bola pudessem ser em parte destinadas a pensar e transformar nossas cidades... Os comitês e grupos de resistência e denúncia das obras e despejos da Copa do Mundo podem ser importantes deflagradores dessa inversão de atenções, entre futebol e cidade, como ocorreu durante a Copa das Confederações, também em junho passado. E mesmo torcidas, comentaristas e jogadores mais politizados, que olhem para o país que está fora das quatro linhas, e percebam os interesses em jogo (como ocorreu no final da ditadura e no movimento pela democracia e eleições diretas), poderiam levar o debate para outros campos.
A cidades entraram novamente em movimento. Mesmo ainda sem unidade possível, sujeitos e ações, combinados ou dispersos, articulados ou não, no mais diversos lugares do país, precisam imaginar o que será a Revolução Urbana Brasileira – que suplante as contradições e limites da Anti-Reforma vigente. As visões dessa nova cidade e o poder das imagens, diálogos e narrativas que elas possam estimular serão, sem dúvida, força motora para nos provocar a agir e a assumir as outras revoluções que serão necessárias.
Este texto é o resultado de uma intervenção na “Conversa aberta sobre as manifestações”, com Luiza Erundina, Peter Pelbart, Olgária Matos e Marcelo do MPL, realizada na FAU USP no dia 18 de agosto de 2013, organizada por um grupo de jovens artistas e intelectuais.
Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, integrante do coletivo Usina e professor da Unifesp.