A Unidade Popular e as Forças Armadas
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- Jorge Magasich
- 22/08/2014
O governo da Unidade Popular (UP) herda as Forças Armadas (FA) tão profundamente alinhadas com as fronteiras ideológicas da Guerra Fria que acaba sendo difícil recuperar a soberania cedida sem o risco de uma grande crise. O presidente Allende opta por diversificar os países provedores de armamentos e busca envolver os militares em trabalhos de desenvolvimento, designando alguns em postos dirigentes de empresas públicas ou outros organismos do Estado. Mas evita reformas democráticas com as Forças Armadas, que pudessem ser pretextos para instigar a conspiração, ignorando as reivindicações dos importantes grupos militares antigolpistas.
Antes da Segunda Guerra Mundial, o Chile adquiria seus armamentos em vários países: a infantaria na Alemanha, a artilharia de montanha na França, os tanques nos Estados Unidos e os navios na Inglaterra. Esta situação muda com a adesão do Chile à “ajuda mútua” militar contra qualquer ataque extracontinental em 1948, no México, e com a assinatura do “Tratado Interamericano da Assistência Recíproca”, em 1947, no Rio. Estes tratados submetem as suas forças armadas à férrea tutela do Pentágono. O documento desclassificado dos US objectives and courses of action with respect to Latin America (objetivos e cursos de ação dos EUA a respeito da América Latina), explica que o rol das missões militares estadunidenses daquela época era promover “a uniformização militar da América Latina conforme as linhas dos Estados Unidos” (1).
O alinhamento se concretiza em princípios dos anos 1950, quando dez países latinos – Chile entre eles – firmam com Washington um Pacto Mútuo de Defesa e Assistência que institucionaliza as missões militares estadunidenses. A Marinha dos EUA instala sua missão em Valparaíso (onde provavelmente o golpe foi planejado); a área está situada na base O Bosque, e outra ocupa o sétimo piso do Ministério da Defesa.
Essas missões dão duas orientações aos militares locais: a “segurança hemisférica”, ou seja, segundo Washington em caso de conflito contra a China ou URSS e, sobretudo, a “segurança interior” (2), que os define como anticomunistas e inimigos de uma parte de seu povo.
O “combate contra o novo inimigo se organiza rapidamente. Em 1946, em Valparaíso, o almirante José Consiglio transmite à Missão Naval uma lista de comunistas e sindicalistas do porto, para quando começar a repressão em 1948 (3). E o agregado militar em Santiago identifica Bernardo Leighton, o futuro dirigente democrata-cristão, como membro procomunist member of the Chilean Falanguist Party (membro pró-comunista da Falange Chilena), já que um discurso seu foi publicado junto a outro de Neruda (4).
Durante os anos 1960, Chile era o país mais militarizado da América Latina, depois de Cuba: com uns 46.000 militares e 24.000 policiais, mantinha seis a sete homens armados por 1.000 habitantes (5). Estes recebem de Washington em torno de 10% do orçamento da defesa, ajuda que aumenta a partir de 1961, depois da revolução cubana e diante de uma possível vitória da esquerda na eleição presidencial de 1964. “Tudo ocorre – afirma Alain Joxe em 1970 – como se a ajuda militar estadunidense estivesse destinada a equilibrar um deslizamento político, aumentando a dependência externa das forças armadas (...) a área militar constitui, portanto, um componente central no sistema de dependência, mas não é seguro que se tenha plena consciência disso (6)”.
Tal ajuda tem condições. O Chile deve se contentar com uma soberania limitada sobre navios e outros armamentos “emprestados” pelos EUA, que só podem ser utilizados para a “defesa hemisférica”. Desde 1956, a marinha participa de manobras com navios da marinha norte-americana, na chamada operação UNITAS (7); aumenta o treinamento da “contra-insurgência” e 2.613 militares chilenos são treinados nos Estados Unidos, 549 deles “fora dos EUA”, ou seja, no Panamá; e multiplicam os exercícios simulando ataques de inimigos bem identificados: comunistas ou miristas. Ao mesmo tempo, militares estadunidenses sondam sistematicamente as opiniões políticas dos oficiais chilenos, como recorda o general aéreo Sergio Poblete (8).
Um sinal interessantes da submissão das Forças Armadas chilenas à ideologia da Guerra Fria é a introdução de um novo juramento, ainda vigente. Este suprime o compromisso com a república e a democracia, introduz a expressão confessional “por Deus”, e minimiza a noção de submissão da lei para destacar e obedecer ordens, seja como for.
O programa da UP
A Unidade Popular (UP) busca acrescentar a soberania firmando o “caráter nacional” das Forças Armadas e integrando-as “em diversos aspectos da vida social”. Propõe terminar com a ajuda mútua e com a operação UNITAS e denuncia a OEA como “agência do imperialismo”. Paradoxalmente, seu programa não postula reformas democráticas das Forças Armadas e seus partidos praticamente não refletiram sobre o tema.
Mas a recuperação da soberania acaba arduamente. A poucos dias da eleição presidencial de 1970, o mando naval encarrega os almirantes Raúl Montero e Toribio Merino, futuros líderes do legalismo e golpismo, se reúnem com Allende para pedir que mantenha a “ajuda mútua”, a presença do Chile na Junta Interamericana de Defesa da OEA e a Operação UNITAS, já que, sem tudo isso, a Armada terá que devolver quase a metade de seus navios e perderia o treinamento fornecido pela Marinha dos EUA.
Allende conclui, sem dúvida, que é melhor ir recuperando a soberania através de uma política de “pequenos passos”. Mantém tratados, “missões” e UNITAS, embora longe de portos chilenos, inclusive, adquire mais armamentos do que os governos anteriores. Mas busca diversificar os fornecedores de armas e treinamentos, estabelecendo contatos com a França, Japão, Suécia e com os países socialistas.
A integração do desenvolvimento da FA se concretiza com a designação de vários oficiais a cargos de direção de empresas públicas: o general Pedro Palacios (professor de metalúrgica) em Chuquicamata; o coronel aéreo Claudio Sepúlveda em El Teniente; e o capitão do navio Horácio Justiniano em El Salvador, e outros em Exótica, Andina e Sagasca. O coronel Sérgio Nuño dirigiu a indústria nacionalizada Química Du Pont, produtora de explosivos, e o general Orlando Urbina, terceiro na hierarquia, é designado vice-presidente da comissão encarregada de organizar a Conferência de Comércio e Desenvolvimento da ONU (UNCTAD III), que se realizou em Santiago em abril de 1972.
Ao mesmo tempo, a lancha Cirujano Videla, construída em ASMAR e administrada pelo Serviço Nacional de Saúde em colaboração com a Marinha, atende os habitantes das ilhas do Sul e leva meio litro de leite diário para os menores. E em 1971, militares participam das operações de prevenção dos estragos de inverno (9).
Allende e os militares
Neste delicado terreno, Allende opta por respeitar rigorosamente a hierarquia. Sempre se dirige às FA através de seus comandantes: o general Prats, o almirante Montero e o general aéreo Ruiz, em quem ele confia. Esta doutrina o leva a evitar utilizar suas atribuições para excluir golpistas conhecidos ou favorecer os constitucionalistas. Somente em caso de tentativas óbvias (10) responde pedindo a retirada dos envolvidos.
O zelo extremo do presidente para evitar o conflito o leva a manter as conquistas democráticas nas portas dos quartéis, uma política que, no final, não acaba com os golpistas. Mas se frustraram as expectativas de muitos membros da tropa, e alguns oficiais, que depositaram nele a esperança de mais justiça e direitos, em instituições marcadas por um anacrônico sistema de castas.
Militares constitucionalistas
No curso dos anos 1972 e 1973, um número considerável de pilotos e marinheiros (não temos conhecimento sobre o exército, policiais e investigadores), alarmados diante dos sinais da conspiração, se organizam para defender o governo. Mas também refletem sobre a necessária democratização de suas instituições. Exigem o fim das absurdas discriminações alimentares entre as classes e outros sistemas domésticos; pedem direitos civis como o de afiliação e o de financiar. Pedem também limitar a obediência cega a toda ordem, estabelecendo a preeminência da lei e criando mecanismos que permitam impugnar as ordem ilegais. E a grande demanda é fundir as escolas matrizes em escolas únicas, onde todos tenham a possibilidade de alcançar os cargos de almirante ou general (11).
Os militares constitucionalistas conheceram o drama de ver, de dentro, como se organiza o golpe sem serem ouvidos pelas autoridades legítimas que tentaram proteger. E nenhum dos governos eleitos desde 1989 teve tempo de escutá-los. Talvez seja interessante para o futuro democrático do país que a voz dos militares que respeitaram a democracia em 1973, arriscando muito mais do que sua carreira, seja por fim ouvida e inicie a reflexão necessária sobre uma FA democrática, a serviço de todos.
Notas:
1. Baines John M. 1972, Assistência Militar dos EUA à América Latina: uma Avaliação no Jornal de Estudos Interamericanos e Assuntos Mundiais, Volume 14, Edição Especial: Militares e governos reformistas na América Latina (novembro de 1972), 473.
2. Joan Garcés, 1995 Soberanos e operados. O Chile da Guerra Fria e, depois, Ed BAT, Santiago, 59.
3. Garcés, 1995, 34-35.
4. Garcés, 1995, 15-16.
5. Word David, citado por Joxe, 1970, 95; 97.
6- Joxe Alain de 1970, as Forças Armadas no sistema político chileno, Ed Universitária, 108-113.
7. A coincidência entre a "operação unitas" e a tentativa de golpe é impressionante: durante a tentativa de golpe de Estado em outubro de 1970, a "Unitas" está prevista, mas não é realizada; durante a greve de outubro de 1972, está em frente à costa chilena. E também em setembro de 1973.
8. Magasich Jorge, 2008, Os que dizem ‘Não’. História do movimento dos marinheiros anti-golpistas de 1973, Ed. LOM. Vol 1, 188-197.
9. Valdivia Ortiz de Zárate Verónica, 2005, “Todos juntos seremos a história” A Unidade Popular e as forças armadas, em Pinto Vallejo Julio (coordenador) Quando fizemos a história. A experiência da Unidade Popular, 2005, Ed. LOM, Santiago, 190-197.
10. Como Alberto Labbé, Alfredo Canales, Sergio Rocha, Lautaro Sazo ou Roberto Souper.
11. Magasich, 2008, Vol 1, 298-304.
12. Manual de Tradições e Ritos do Exército do Chile, 2002, 34-35.
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Jorge Masasich é historiador chileno e leciona em Bruxelas. Série de artigos originalmente publicada pelo Le Monde Diplomatique francês e espanhol.
Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.