Iraque: o erro de Soleimani e o desastre de Trump
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- Patrick Cockburn
- 10/01/2020
Os iraquianos têm um instinto aguçado para saber se há perigo próximo, graças a sua experiência tenebrosa de 40 anos de crise e guerra. Há três meses, perguntei a uma amiga em Bagdá como ela e seus amigos viam o futuro: afinal o Iraque me parecia estar em seu momento mais pacífico desde a invasão norte-americana e britânica, em 2003.
Ela respondeu que o clima geral entre as pessoas que conhecia era sombrio, por acreditarem que a próxima guerra entre os EUA e o Irã poderia ser travada no Iraque. Disse: “muitos dos meus amigos estão com tanto medo da guerra entre EUA e Irã, que estão usando sua indenização, ao deixar o serviço do governo, para comprar casas na Turquia”. Ela estava pensando em fazer o mesmo.
Meus amigos iraquianos acabaram tendo razão em seu prognóstico angustiante: a morte do major-general iraniano Qassem Soleimani, por um drone dos EUA no aeroporto de Bagdá, foi um ato irresponsável do presidente Donald Trump, que garante ao Iraque um futuro violento. Pode não levar a um conflito militar em larga escala, mas servirá de arena política e militar onde a rivalidade EUA-Irã será travada. Os iranianos e seus aliados iraquianos podem ou não realizar novas retaliações, mas seu contra-ataque mais importante será pressionar o governo, o parlamento e as forças de segurança do Iraque para remover os EUA de seu país.
Desde a derrubada de Saddam Hussein, o Irã costuma estar à frente dos EUA em qualquer luta por influência no Iraque. A principal razão para isso é que a comunidade xiita no Iraque, que representa dois terços da população e é politicamente dominante, tem procurado seus companheiros xiitas no Irã em busca de apoio contra seus inimigos.
Ironicamente, a influência e a popularidade iranianas estavam seriamente prejudicadas por causa do general Soleimani, que supervisionava os esforços brutais das forças de segurança pró-iranianas e grupos paramilitares para esmagar os protestos nas ruas do Iraque, matando pelo menos 400 manifestantes e ferindo outros 15 mil.
A fúria popular crescente dos iraquianos contra o Irã, por interferir nos assuntos internos de seu país, provavelmente será compensada pelo ataque ainda mais flagrante à sua soberania nacional pelos EUA. É difícil pensar em um ato mais grosseiro de interferência de um Estado do que matar um general estrangeiro que estava aberta e legalmente no Iraque.
Também foi morto pelo drone Abu Mahdi al-Muhandis, líder do Kata’ib Hezbollah, poderoso grupo paramilitar pró-iraniano. Os EUA podem considerar que comandantes paramilitares são terroristas cruéis, mas para muitos iraquianos xiitas são as pessoas que lutaram contra Saddam Hussein e as defenderam contra Estado Islâmico (EI).
Conversei com minha amiga pessimista em Bagdá no final de setembro, naqueles que vieram a ser os últimos dias de paz antes que a violência retornasse ao Iraque. Entrevistei vários comandantes paramilitares das Forças de Mobilização Popular Hashd al-Shaabi, que afirmavam que os EUA e Israel estavam ampliando os ataques dentro do país. Perguntava-me o quanto disso era paranoia.
Conversei com Abu Alaa al-Walai, o líder do Kata’ib Sayyid al-Shuhada, um grupo dissidente do Kata’ib Hezbollah — um dos campos que foram destruídos por um ataque de drones em agosto pertencia a eles. Disse que 50 toneladas de suas armas e munições foram explodidas, culpando israelenses e norte-americanos por agirem em conjunto. Confrontado com a pergunta sobre se seus homens atacariam as forças norte-americanas no Iraque no caso de uma guerra EUA-Irã, disse: “Com toda certeza”. Em seguida, visitei o campo, chamado al-Saqr, nos arredores de Bagdá, onde uma explosão maciça destruiu galpões e queimou equipamentos.
Encontrei outros líderes paramilitares pró-iranianos nessa visita. Os ataques com drones os deixaram irritados, mas tive a impressão de que não esperavam realmente uma guerra EUA-Irã. Qais al-Khazali, chefe do Asaib Ahl al-Haq, me disse que não acreditava que haveria guerra “porque Trump não deseja”. Como evidência, apontou o fracasso do presidente norte-americano em retaliar, após o ataque de drones às instalações de petróleo da Arábia Saudita no início de setembro, cujo culpado, para Washington, era o Irã.
No entanto, os eventos se desenrolaram de maneira muito diferente do que eu e os comandantes paramilitares esperávamos. Alguns dias depois de conversar com eles, houve uma pequena manifestação no centro de Bagdá exigindo empregos, serviços públicos e o fim da corrupção. As forças de segurança e os paramilitares pró-iranianos abriram fogo, matando e ferindo muitos manifestantes pacíficos. Embora Qais al-Khazali mais tarde tenha alegado que ele e outros líderes do Hashd estavam tentando frustrar uma conspiração EUA-Israel, não havia me dito nada sobre isso. Parece que o general Soleimani suspeitava erroneamente que aquelas pequenas manifestações eram uma ameaça real, e ordenou que os paramilitares pró-iranianos abrissem fogo e tentassem suprimi-las.
Tudo isso poderia ter sido desastroso para a influência iraniana no Iraque. Soleimani cometera o erro clássico de um general de sucesso ao imaginar que o “cheiro do canhão” reprimiria rapidamente qualquer sinal de descontentamento popular. Às vezes isso funciona, mas em muitas outras, não – e o Iraque acabou pertencendo à segunda categoria.
O general Soleimani morreu na sequência de seu maior fracasso e falha de julgamento. Mas a maneira com que foi morto pode convencer muitos iraquianos xiitas de que os EUA são uma ameaça maior à independência do Iraque que o próprio Irã. Os próximos dias dirão se os protestos, que resistiram à violência com muita coragem, acabarão esvaziados pelo ataque ao aeroporto de Bagdá.
As guerras são vencidas por generais que cometem o menor número de equívocos. Soleimani cometeu erros graves nos últimos três meses, transformando manifestações modestas em algo próximo a um levante de massas. Trump pode ter cometido um erro ainda maior ao assassinar o general Soleimani e transformar o Iraque, lugar onde o Irã tem muito mais influência, em arena na qual a rivalidade entre essas duas potências será combatida.
Agora percebo que minha amiga de Bagdá devia estar certa, três meses atrás, ao sugerir que a aposentadoria na Turquia poderia ser a opção mais segura.
Patrick Cockburn é jornalista inglês do Independent e autor do livro A origem do Estado Islâmico.
Tradução Cauê Seigner Ameni, da Autonomia Literária, e publicação de Outras Palavras.