Correio da Cidadania

Mali, Burkina Faso e Níger: o quintal se revolta novamente

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Golpe no Níger vira palco de disputa geopolítica entre | Internacional
Em 26 de julho, militares reunidos em um Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP) derrubaram o presidente do Níger, Mohamed Bazoum, apenas uma semana antes de se comemorar o 63º aniversário da independência da França no país africano. Uma "nova independência" da mesma potência foi exatamente uma das consignas dos insurgentes, que imediatamente denunciaram os acordos de segurança com Paris, exigiram a retirada da base aérea e dos cerca de 1.500 soldados franceses estacionados no país, e suspenderam as exportações de urânio para a antiga metrópole colonial.

A França respondeu que desconheceria essas decisões ("somente o governo legítimo do Níger pode tomá-las", disse o Ministério da Defesa) e que manteria sua base e suas tropas. Também anunciou a suspensão da chamada ajuda ao desenvolvimento. A União Europeia como um todo fez o mesmo, assim como os Estados Unidos, que também são o outro país com bases militares e tropas (1.000 soldados) no Níger. Ao comentar a interrupção da cooperação dos Estados Unidos, o homem forte do governo militar do Níger, o general Omar Tchiani, ironizou: "Que eles fiquem com essa assistência e a entreguem aos milhões de pessoas sem-teto nos Estados Unidos, porque a solidariedade começa em casa".

Somadas, as "ajudas ao desenvolvimento" ocidentais representam, de qualquer forma, uma parcela significativa do PIB desse país, situado entre os de menor renda no mundo (1). Muitas delas eram usadas como alavanca para pressionar o governo, sendo direcionadas em grande parte para projetos que beneficiavam principalmente empresas ocidentais; outra parte se perdia na corrupção ou ia parar nas mãos das elites locais.

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Algumas cenas que se desenrolaram após o golpe foram típicas das retiradas pós-coloniais, com uma evacuação apressada e desorganizada dos nacionais da potência dominante (Paris ainda o era no Níger, como tem sido em grande parte da África desde a descolonização nas décadas de 60 e 70). E houve outras cenas: multidões reunidas em apoio à queda de Bazoum – um presidente em exercício desde o início de 2021 após eleições denunciadas na época como fraudulentas –, ataques à embaixada francesa, hasteamento de bandeiras russas. Nas capitais ocidentais europeias e nos Estados Unidos, as reações foram unânimes: seria mais um golpe de Estado daqueles que periodicamente se repetem na África tumultuada e ingovernável, estando diante de um ataque intolerável à estabilidade e à paz na região, que favoreceria o crescente jihadismo.

O presidente francês, Emmanuel Macron, destacou os tons monárquicos e até imperiais que costuma adotar: Paris, disse, "não tolerará nenhum ataque contra seus cidadãos e interesses", e, caso ocorram, a reação será "imediata e implacável". A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) dividiu-se entre a maioria dos países dispostos a intervir militarmente para reinstalar Bazoum (com Nigéria, Benin, Costa do Marfim e Senegal na liderança) e uma minoria contrária à guerra. Entre esses últimos países, Mali e Burkina Faso – ex-colônias francesas que recentemente expulsaram novamente as tropas do país europeu de seus territórios após golpes militares – afirmaram que, se houvesse intervenção contra o Níger, considerariam isso uma declaração de guerra contra eles. Guiné e, fora da CEDEAO, Chade e Argélia, antigas nações colonizadas por Paris, apoiaram a binômio. A África do Sul, não fazendo parte da comunidade, mas sendo uma das principais potências regionais, se posicionou no meio-termo, em uma espécie de "nem intervenção nem golpe".

A data do ultimato passou sem que houvesse implantação de tropas na região até agora. Na segunda-feira, dia 7, o governo de Macron havia novamente advertido o CNSP nigerino para que "leve a sério" a possibilidade de intervenção, e o Níger, que havia fechado seu espaço aéreo, denunciou que já havia uma decisão de "invadir" o país. Um dia depois, a Rádio França Internacional informou que a força de intervenção contaria com cerca de 25 mil homens, metade deles vindos da Nigéria, que comandaria a força. No entanto, ao mesmo tempo, a diplomacia estava em ação. Na terça-feira, dia 8, autoridades do governo militar nigerino receberam Victoria Nuland, subsecretária de Estado para Assuntos Políticos do Departamento de Estado dos EUA, ou seja, a número dois na diplomacia do país. "Foi uma conversa extremamente franca, mas muito difícil e com poucos avanços. Oferecemos várias opções para o retorno à ordem constitucional, embora tenha dado a impressão de que eles não as consideraram", disse a diplomata. A CEDEAO estava reunida na quinta-feira passada em Abuja, capital da Nigéria, "analisando a situação".

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As manifestações de apoio ao golpe em Niamey foram organizadas por um movimento chamado M62, que reúne várias centrais sindicais e cerca de vinte organizações da sociedade civil do Níger. Alguns meses antes do levante, essas organizações já haviam exigido o desmantelamento das bases militares estrangeiras. "Nosso movimento", afirmou Abdourahmane Ide, membro da direção do M62, ao jornal italiano Il Manifesto (1/8/23), "nasceu há alguns anos para protestar contra o governo de Mahamadou Issoufou e, depois, contra o de Bazoum, devido à sua política econômica e, sobretudo, devido à presença de soldados estrangeiros no país. Após o fim da Operação Barkhane no Mali [em 2022], vários milhares de soldados franceses chegaram ao Níger para se juntar aos que já estavam aqui, o que é inaceitável para nós”.

Ide explicou que as forças armadas nigerinas são capazes de "garantir a segurança nacional" e que, quando se trata de combater os fundamentalistas muçulmanos da Al Qaeda, do Estado Islâmico e do Boko Haram, que se espalharam por toda a região do Sahel, a Operação Barkhane francesa mostrou-se completamente ineficaz. Há pessoas que acreditam, inclusive no Níger, Burkina Faso e Mali, que as tropas francesas são cúmplices do jihadismo e que o utilizaram como pretexto para perpetuar sua presença nessas terras e saquear seus recursos. Rémi Carayol, um jornalista que publicou há alguns meses uma extensa pesquisa sobre as intervenções militares francesas em sua área africana, chamada "Le Mirage sahélien: la France en guerre en Afrique" ("A Miragem Saheliana: A França em Guerra na África"), registrou essa afirmação em março no jornal Le Monde Diplomatique.

Uma das pessoas que pensa dessa maneira é Alassane Sawadogo, coordenador da Frente de Defesa da Pátria de Burkina Faso. "Como explicar que, com os recursos de que dispõem, os franceses não conseguiram derrotar os grupos armados?", questionou o líder, referindo-se aos oito anos da Operação Barkhane. No ano passado, Mali acusou a França nas Nações Unidas de armar os jihadistas, lembrou Carayol. Embora não vá tão longe, o nigerino Ide também acredita que a luta contra o extremismo muçulmano tem sido uma excelente desculpa para franceses e estadunidenses "estabelecerem bases militares no Níger com a cumplicidade dos governos locais e saquearem os recursos subterrâneos".

Ele disse ao Il Manifesto que seu movimento pretende "colaborar com Mali e Burkina Faso, que, desde que expulsaram os franceses [no último ano] e se aliaram aos russos, têm visto suas condições de vida melhorarem. Os russos não nos exploraram como fizeram os franceses, e para combater o perigo do fundamentalismo islâmico é mais conveniente confiar neles" do que nos ocidentais.

Em Mali, Burkina Faso, Guiné e República Centro-Africana, é principalmente a Rússia, mas também a China, a substituir França e os Estados Unidos como potências hegemônicas, tanto em termos econômicos como comerciais e militares. Os paramilitares russos do Wagner operam livremente nesses países e parecem desempenhar um papel central no combate ao jihadismo. Segundo o canal de televisão árabe Al Jazeera, a junta nigerina teria solicitado formalmente ajuda ao Wagner em caso de ataque ocidental. No entanto, Carayol, assim como vários pesquisadores africanistas consultados pelo portal francês Mediapart, não acredita que Moscou esteja por trás do golpe no Níger, embora possa se beneficiar com ele.

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Parar a influência russa e garantir o controle sobre riquezas, como o urânio, muito mais do que qualquer preocupação com a "consolidação da democracia" na região, são fatores principais que incentivariam uma intervenção militar liderada e ordenada pelos países ocidentais contra o Níger, protagonizada por soldados africanos. O Níger é o sétimo maior produtor mundial de urânio, um metal fundamental para o funcionamento de usinas nucleares, essenciais para o fornecimento de energia de países como a França, onde 70% da matriz energética é nuclear.

Até muito recentemente, o Níger era o principal fornecedor de urânio para a França (em 2022, foi superado pelo Cazaquistão, o principal produtor mundial do mineral) e o quarto fornecedor da União Europeia. Uma empresa francesa (Orano, anteriormente chamada Areva) controla a produção de urânio em solo nigerino. Até 2014, devido aos acordos de "cooperação" assinados entre Paris e Niamey, a empresa pagava apenas 5,5% de royalties sobre o urânio produzido nas minas do Níger. Desde então, aumentou para 12%. Uma quantia pequena, de qualquer maneira, para uma empresa cujas receitas mais que duplicam as do Níger, um país em que menos de 20% da população tem acesso à eletricidade, mas cujo urânio contribui para acender uma em cada três lâmpadas na França.

Um detalhe adicional: quando os preços do urânio no mercado internacional caem, a Orano suspende a produção. Pouco importa a ela que "uma região inteira do Níger caia em extrema precariedade", assim como pouco importam as consequências ambientais e de saúde dessa exploração mineradora, da qual é a principal beneficiária, conforme disse à Mediapart (6/8/23) Camille Lefebvre, historiadora francesa, diretora de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris e especialista na ocupação colonial do Níger no final do século 19.

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Desde que foi eleito presidente, Mohamed Bazoum tem sido um fiel aliado do Ocidente, especialmente da França, conforme relatou o pesquisador especializado em África Philippe Leymarie no dia 2 de agosto no jornal Le Monde Diplomatique. Após a ruptura de Burkina Faso e Mali com Paris, o Níger era, até agora, junto com o Chade, o único dos dez países da região do Sahel favorável à permanência das tropas francesas. Com o fim da Operação Barkhane em novembro passado, instituída em 2014 por Paris para combater a insurgência islâmica na região, Niamey se tornou o centro de uma espécie de Barkhane 2, com sua base aérea de onde drones e caças decolam, e seus 1.500 soldados. O Níger também era um aliado econômico incondicional do Ocidente, uma condição que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu expressamente a Bazoum em dezembro passado. E para a União Europeia, é um país crucial em sua estratégia de contenção da imigração africana em direção às suas fronteiras. Atualmente, no Níger - um "país de chegada, trânsito e partida de refugiados", de acordo com um relatório recente da Organização Internacional para as Migrações - existem cerca de 300 mil refugiados, a maioria deles vindos da Nigéria. Para a União Europeia, é importante mantê-los longe de seu "jardim" e, para isso, firmou com Niamey o mesmo tipo de acordos que estabeleceu com outros países fora da fortaleza europeia.

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Após perder uma a uma as suas vinte colônias africanas entre 1958 e o final da década seguinte, Paris recompôs um sistema de relações com seu quintal que ficou conhecido como "Françáfrica", uma espécie de superestrutura neocolonial dotada de instrumentos políticos, econômicos, acordos de segurança e mecanismos monetários. A maioria de suas ex-colônias se inseriu nesse sistema, pelo qual a França se reservava o direito de intervir militarmente para garantir a "estabilidade" de seus aliados. Há pelo menos duas décadas se diz em Paris que a era da Françafrica ficou para trás e que o país tem construído um novo tipo de relação com suas ex-colônias, supostamente mais respeitoso com sua autonomia.

Mas está longe de ser essa a realidade, ressaltou nos últimos dias, entre muitos outros, o doutor em História e militante africanista Amzat Boukari-Yabara. "O atestado de óbito da Françáfrica ainda não apareceu", disse o pesquisador à Mediapart (6/8/23). "O caso do Níger é provavelmente mais significativo do que o de Mali ou Burkina Faso, já que foi apresentado como um aliado estável de Paris, uma trava de segurança no Sahel e um parceiro nas políticas migratórias da União Europeia." Devido à sua posição geográfica, o Níger desempenha um papel central no sistema de dominação da França na sub-região, e o golpe de julho serviu aos militares franceses para reforçar sua tese de um efeito dominó a ser evitado para impedir a propagação para o Chade, Costa do Marfim, Congo, Togo, Camarões, Gabão, acrescentou o historiador. A França sempre tratou a questão de suas relações com seu quintal defendendo seus próprios interesses, sejam econômicos ou militares, e pouco se importou com a realidade desses países, especialmente sua extrema pobreza, em grande parte resultado da colonização, destacou também Boukari-Yabara.

"Isso gerou ódio, ressentimento, rebeliões", controladas com intervenções militares e graças à cumplicidade das elites locais, observa Camille Lefebvre. "Há dez anos a França está em guerra neste país e nesta região sem ter feito qualquer esforço para entender o que está acontecendo lá", e piorando ainda mais as coisas, denunciou a historiadora. Em todo o Sahel, acrescentou Boukari-Yabara, "ainda se vivem as consequências da intervenção na Líbia" há mais de uma década, liderada pelos Estados Unidos e com participação de tropas francesas, britânicas e de outros países europeus, que provocou uma profunda desestabilização na região. "Existe também uma forma de arrogância profundamente colonialista exemplificada nas declarações de Macron sobre a fertilidade das mulheres nigerinas como causa da impossibilidade de desenvolver o país. São velhos clichês que reaparecem e que certamente não fazem os nigerinos amarem a França”.

Os militares franceses - mas não apenas eles, também boa parte da liderança política - ainda estão imbuídos da ideia de que, se eles saírem, os africanos caminharão direto para a catástrofe e ficarão à mercê do jihadismo. Eles nem sequer percebem - destaca Lefebvre - que a presença militar estrangeira, ou seja, a deles, "pode ser um elemento que reforça a influência dos islamistas". E o que dizer do passado colonial, destaca a historiadora, autora em 2021 de "L'Empire qui ne veut pas mourir: une histoire de la Françafrique" ("O Império que Não Quer Morrer: Uma História da Françáfrica"). Eles agem como se esse passado já não importasse, mas no Níger, como em todo o Sahel, os africanos "trazem em seus corpos, em suas memórias e passam de geração em geração os horrores dos assassinatos em massa, das violações coletivas" que marcaram os sessenta anos ou mais de domínio imperial.

A revolta contra seus próprios governos - predadores ou cúmplices da pilhagem - combinada com a rejeição ao neocolonialismo e à presença de bases militares estrangeiras, levou a essa nova realidade de rebeliões em cadeia no quintal francês, aponta Lefebvre. Apesar disso, o antigo império se recusa a enxergar isso.

Nota:

A assistência humanitária - que beneficia cerca de 4,5 milhões de pessoas, um quinto da população total do país - continua , por enquanto, sendo fornecida.

Daniel Gatti é jornalista do semanário Uruguai o Brecha, onde esta matéria foi originalmente publicada.
Tradução: Gabriel Brito, Correio da Cidadania.

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