Correio da Cidadania

O projeto constitucional do governo de Allende

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Em 1993, vinte anos depois do golpe, lançou-se um folheto em que foi divulgado pela primeira vez o projeto “carta magna” do governo da Unidade Popular – UP (1). O prólogo de Joan Garcés relata como Eduardo Novoa encontrou a penúltima versão depois de uma busca diligente; a definitiva, até hoje desconhecida, era mais polida, mas “sem qualquer alteração substancial”.

 

Para Garcés, o texto recuperado revela melhor que qualquer outro a visão que Allende teve da organização do Estado e da sociedade, incluindo políticas econômicas e culturais. Conclui afirmando: “não conheço outra proposta originada pelos protagonistas de um processo coletivo nacional, que vincula até tal nível valores de democracia participativa e representativa, política e econômica”.

 

Apesar da importância deste projeto que os chilenos não puderam conhecer nem debater – foi a primeira tentativa governamental de fornecer ao país uma Constituição gerada democraticamente – é pouco tratado pela historiografia.

 

Em agosto de 1972, no edifício Gabriela Mistral, a equipe de especialistas da UP encarregada de redigir o projeto da nova Constituição trabalha intensamente; uma comissão central coordena o trabalho de dez subcomissões temáticas.

 

Os componentes são Jorge Tapia (PR), ministro da Justiça e encarregado das atribuições Estado, governo e soberania, nacionalidade e cidadania e Administração da justiça; Sergio Insunza (PC), secretário geral de governo, a cargo de partidos políticos e pluralismo; Luis Maira (IC), deputado, cuida da Delimitação das áreas econômicas e sistema tributário e financeiro; Waldo Fortín (PS), das garantias políticas e individuais e forças armadas; Eduardo Novoa, conselheiro jurídico do presidente, fica com Direitos e deveres dos cidadãos, Constituição e legalidade e garantias sociais e econômicas; e Iván Auger se encarrega da administração territorial e sistema de planejamento. Está também Gonzalo Martner Garcia (ODEPLAN), e Joan Garcés, representante do presidente. O projeto é comunicado à CUT, presidida por Luis Figueroa (PC) (2).

 

O presidente recebeu as versões sucessivas para dirimir entre diferentes alternativas. Em 4 de setembro de 1972 entrega cópia do projeto a cada partido da UP. Seguiriam três etapas: submeter o projeto a um amplo debate nacional para juntar comentários e introduzir eventuais modificações; enviar ao Congresso, onde o governo é minoritário; e convocar um provável referendo antes do fim do mandado em 1976.

 

Mas a virulência das insurreições de direita não deixa o momento propício. Em julho/agosto de 1973, Allende propõe, de novo, negociações com a DC (Democracia Cristã) para salvar o regime democrático; oferece concessões maiores e tenta conversar com o projeto. Mas o presidente do PDC, Patrício Aylwin, apoiado por Eduardo Frei Montalva, declara que o único acordo possível é a renúncia completa do governo, ou seja, a totalidade dos ministros, subsecretários, administradores e outros postos chaves, e seu recrutamento por militares (3). Inclusive quando nos primeiros dias de setembro o ministro do Interior Carlos Briones tenta relançar negociações com a DC, Allende pede que tenha presente o projeto. Mas é evidente que Frei e Aylwin optaram pelo golpe. Acariciam, talvez, o sonho de que os militares governem por pouco tempo e, depois de reprimir a esquerda, entregassem o poder. Mas essa é outra história.

 

Diante da ausência de acordo, o presidente resolve consultar a cidadania. Ao meio dia de domingo, dia 9, anuncia sua decisão de convocar um plebiscito ao comandante em chefe do exército, Augusto Pinochet, e o general Orlando Urbina. Horas mais tarde, o primeiro resolve impedir, assinando em sua casa um documento que o coloca na cabeça da levante, cometendo assim delito de alta traição. Na segunda-feira, 10, La Moneda instrui as emissoras de rádio e canais de televisão para prepararem a cadeia nacional na terça-feira, 11...

 

Só duas décadas mais tarde, o texto sairia. Resume brilhantemente os projetos do governo de Allende.

 

Princípios, deveres e direitos

 

O Chile é definido como “um Estado unitário, de governo democrático e popular, que se apoia na força criadora dos trabalhadores. Integra a comunidade latino-americana...” “todo poder reside no povo”. O país se funda em valores de liberdade, igualdade, solidariedade e justiça, que asseguram um desenvolvimento digno ao ser humano. Isso dispõe de liberdade criativa, direito à cultura e ao esporte.

 

Os estrangeiros residentes há mais de 15 anos podem nacionalizar-se sem perder sua nacionalidade anterior. Nenhuma lei pode limitar o sufrágio; serão garantidos os direitos dos cidadãos residentes no exterior.

 

É assegurado o respeito aos direitos humanos, especificando seus deveres com os demais. Aos direitos reconhecidos, é acrescentado o “Estatuto de garantias” firmado pela UP e a DC em 1970 e que constam na Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948, como o rechaço da tortura. Garante também a igualdade entre o homem e a mulher, a proteção da infância e das mães durante a gravidez e a criança. Protege a família impedindo discriminações em razões da situação familiar.

 

Também impõe deveres: cada qual deve “aplicar sua capacidade pessoal ao bem da sociedade”, ou seja, trabalhar, participar das tarefas sociais previstas por lei, resguardar o patrimônio nacional, os recursos naturais, a propriedade social e cumprir com as obrigações militares.

 

O correspondente do Estado aplica uma política econômica, de saúde, social e cultural, que permita aproveitar as atitudes de cada pessoa, que diminua progressivamente a jornada de trabalho e supere as diferenças entre o trabalho intelectual e manual. Confirma o direito à participação na condução de seus locais de trabalho e reconhece a CUT.

 

A seguridade social é um serviço público, para todos. Inclui atendimento médico; berçário; auxílio doença, acidentes e maternidade, pensão por idade e invalidez e auxílio desemprego. Baseia-se no princípio de solidariedade financiada pelas receitas do Estado.

 

A educação é assegurada pelo Estado desde a etapa pré-escolar, buscando despertar as capacidades criativas e exaltando o trabalho humano como o mais alto valor. É reconhecida a liberdade de ensino, mas só “a educação privada gratuita e sem fins lucrativos receberá do Estado uma contribuição econômica”. As universidades estatais e as privadas reconhecidas pelo Estado terão um “adequado financiamento” e o acesso dependerá “da idoneidade dos candidatos”.

 

O povo mapuche, e outros grupos nativos, terão o direito de desenvolver sua personalidade cultural e utilizar sua língua. Além disso, o Estado se encarrega do saneamento ambiental, a fim de evitar riscos ecológicos.

 

Instituições

 

O regime presidencial permanece: o chefe de Estado é eleito por seis anos e pode dissolver o parlamento uma vez no seu mandato. O sistema eleitoral assegura a representação proporcional de todas as opiniões.

 

O sistema bicameral é conservado - à diferença do programa da UP, que propõe uma câmara única –, mas com uma peculiaridade. A Câmara dos Deputados é eleita por sufrágio universal. A inovação é que a nova câmara alta, chamada Câmara dos Trabalhadores, é eleita por votação dos trabalhadores. A definição de “trabalhador” é ampla: todo aquele que vive de seu trabalho, excluindo os que lucram com o trabalho assalariado de outros e os que vivem da especulação. Esta câmara reverte o antigo rol do Senado de cenáculo oligárquico para transformá-lo em representante da grande maioria social, mas não universal.

 

As leis podem ter sua origem no Executivo, na Câmara de Trabalhadores ou em uma iniciativa popular que reúna 5.000 empresas.

 

A controladoria é encarregada de fiscalizar a contabilidade do Estado, não o controle jurídico preventivo dos atos de administração.

 

Os membros da Suprema Corte são nomeados pela Câmara dos Deputados, três candidatos propostos pelo presidente (um deles deve ser advogado fora do Poder Judiciário), por dez anos renováveis, com aposentadoria aos 65 anos. Instauram-se tribunais de bairros eleitos pelos vizinhos, encarregados de julgar litígios que não estão entregues à lei, com eventual conselho.

 

O serviço público não pode trazer outros benefícios que as remunerações previstas por lei.

 

Cada um terá seu município eleito que deve conceber e aplicar o plano de desenvolvimento, e um de conselho de bairro composto por representantes de organizações comunitárias, empresas e sindicatos, encarregado de resolver os problemas comuns.

 

As cidades serão administradas por um conselho metropolitano, formado por seus municípios. As províncias e regiões serão dirigidas por juntas encarregadas do planejamento, dirigidas por um vice-ministro nomeado pelo presidente.

 

Estranhamente, não inclui reformas importantes das forças armadas; tem missões de defesa e de participação no desenvolvimento do país. Mas omite toda referência a sua democratização e o controle democrático da sociedade.

 

Economia

 

O principal instrumento de promoção do desenvolvimento nacional é o sistema nacional de planejamento “equilibrado entre as regiões”, dirigido pelo presidente e integrado por um Conselho de Desenvolvimento Econômico, no qual participam trabalhadores, médios e pequenos empresários, encarregado de determinar objetivos durante o mandato presidencial.

 

A economia é organizada em três setores. O social, propriedade da nação, formado por empresas estratégicas como a banca e os seguros; a grande mineração de cobre e a extração de petróleo e de gás; a produção e distribuição de eletricidade e de gás; o transporte ferroviário, aéreo e marítimo; as comunicações telefônicas e o correio; e a produção de aço, cimento, papel, armamentos, explosivos e a indústria química pesada. O setor misto é composto por empresas com participação pública e privada. Há um setor cooperativo. E um setor privado que garante a propriedade e gestão privada da média e pequena empresa.

 

Há também três setores agrícolas; o reformado, sob diferentes formas de administração camponesa; o estatal e o privado. Os prédios de menos de 40 hectares não poderão ser expropriados, salvo em caso de abandono.

 

O sistema financeiro deve prover recursos para o desenvolvimento econômico e para as necessidades culturais, sociais e sanitárias, de defesa e de segurança interior, produzindo uma quantidade crescente de bens e serviços. Dispõe do orçamento do Estado, dos excedentes das empresas sociais e mistas, dos fundos de reserva dos seguros, do sistema de seguridade social e do saldo consolidado dos créditos.

 

O sistema tributário é progressivo segundo a fortuna do contribuinte e tem a finalidade de desempenhar um rol redistribuidor da renda nacional.

 

Mas além de seus aspectos discutíveis, perfectíveis ou ultrapassados, a essência do projeto cobra uma vigência extraordinária. Coloca o Chile na América Latina. Opta por representação proporcional, por iniciativa popular, estabelece a participação das pessoas em todos os níveis e dá sufrágio para residentes estrangeiros, medidas que ampliam a democracia. Entrega imortantes recursos para a sociedade para garantir a seguridade social e educação. Reconhece os direitos ao povo mapuche e vela por um meio ambiente saudável.

 

Siglas:

PS: Partido Socialista

IC: Esquerda Cristã

PC: Partido Comunista

PR: Partido Radical

CUT: Central Única dos Trabalhadores do Chile

ODEPLAN: Escritório de Educação e Planejamento

 

Notas:

1. Salvador Allende. Um Estado democrático e soberano. Minha proposta aos chilenos (texto póstumo), 1993, Ed. Centro de Estúdios Políticos Simón Bolívar e Fundação Presidente Allende (España). Acessível em: www.salvador-allende.cl/Documentos/1970-73/proyecto_constitucion.pdf, entre outros.

2. Descrição tomada do prólogo de Garcés e de Martner Gonzalo, 1988, O Governo do Presidente Salvador Allende, 1970-1973. Uma avaliação, Ed. Prog. de Estudios del Des. Nac. e Edições literatura americana, 101.

3. Qué Pasa 121, 9-8-73; La Estrella (de Valparaíso), 2-8-73.

 

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Jorge Masasich é historiador chileno e leciona em Bruxelas. Série de artigos originalmente publicada pelo Le Monde Diplomatique francês e espanhol.

 

Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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