O que se passa no Uruguai, como e por quê?
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- Fernando Moyano, de Montevidéu para o Correio da Cidadania
- 06/12/2014
Há dez anos, um partido de esquerda, a Frente Ampla, chegou pela primeira vez ao governo, com Tabaré Vázquez. Há cinco, voltou a ganhar com José Mujica, ambas as vezes com maioria parlamentar. Agora, a Frente postulou outra vez Tabaré, para um terceiro mandato frenteamplista. Todas as pesquisas davam a Frente perdendo a maioria parlamentar em outubro, com um incerto segundo turno em novembro.
Mas a Frente conseguiu a maioria outra vez e ganhar o segundo turno foi mera formalidade. Com os 53% colocou 12 pontos de vantagem sobre o candidato do Partido Nacional, cujo aliado menor, o Partido Colorado, não se repõe do colapso de 2004, após ter sido partido de governo, quase sem interrupções, por quase 170 anos; muitos de seus votantes não acataram a “recomendação” de votar em outro partido burguês tradicional.
O Partido Colorado protagonizou os dois ciclos batlistas do século 20; José Batlle y Ordoñez, no início, e Luis Batlle, no meio, construíram o Estado de Bem Estar de periferia, próprio ao Uruguai. Nos anos 80, houve o giro neoliberal que culminou com Jorge Batlle nos anos 90 e depois a queda. Pedro Bordaberry, filho do presidente colorado que deu o golpe com os militares em 1973, tentou renovar o partido pela direita com tintura populista e liderança firme; se deu mal.
Na Frente, depois do governo de Mujica, os setores a seu redor são maioria, à custa dos social-liberais afinados com Tabaré. A Unidade Popular, pequeno partido de esquerda radical fora da Frente, obteve uma bancada pela primeira vez. O eleitorado correu um pouco para a esquerda, com 3% de espaço para o novo vizinho.
Os comentaristas destacam a alta votação da Frente, a maioria parlamentar por três períodos, o terceiro caso em nossa história em que alguém chega duas vezes à presidência. Sou dos que pensam que a política é expressão da luta de classes, as classes sociais atuam em limites da conjuntura nacional e internacional, os partidos são expressão orgânica das estratégias classistas de longe prazo e os dirigentes – exceto um em um milhão – são figuras de circunstância. Mas outros pensam o contrário, que são os políticos que criam a política. Cientistas políticos afins ao governo assinalam que o triunfo das urnas poderia incentivar Tabaré a atuar como “monarca eleito”, tal como em seu primeiro governo, há dez anos, agregando que “seria um erro”. No dia seguinte, Tabaré faz exatamente isso ao anunciar o próximo gabinete ministerial.
Descartou uma solução equilibrada e consensual, que envolvesse e comprometesse no longo prazo todas as partes do heterogêneo partido governista. Inclina o barco para a direita, recorre a seu pequeno círculo de acólitos, tira da geladeira cadáveres políticos já fora do parlamento e sem votos, ignora setores importantes e, sendo um ponto de debilidade a falta de renovação, enche o gabinete de velhos. Ele resolve tudo sozinho. Planeja cinco anos em cinco minutos. E, com estupidez de criança de 75 anos, deixa fora o Partido Socialista, ao qual pertenceu até o choque – em seu mandato anterior – por seu veto à lei descriminalização do aborto, impulsionada pela própria Frente. Para explicar tudo isso, recuperamos a análise de uma visão histórica mais ampla, aportada por nossa esquecida tradição intelectual.
Em 1973, em; “Uruguai: uma sociedade amortecedora”, Carlos Real Azúa via na história uruguaia a “continuidade e permanência de certas características... muito estável configuração de um ‘limitado número de variáveis’... ‘constantes’ ou ‘invariáveis’... por sua força acumulada. O processo histórico engoliu mais de uma vez essas linhas de continuidade que depois emergiram novamente de outra forma, reconvertidas em sua concatenação geral. Uma delas é “um sistema bipartidarista estável, equipe ou pessoal unificado, compromisso partidário e social... E legitimidade de ‘governo de partido’”.
Neste século, o papel de “partido do Estado” passou do Partido Colorado à Frente Ampla. Vejamos como, e por que, se dão as contradições internas, limites, adaptação e perspectivas.
Enumeramos as linhas desse sistema: 1) Estado tampão, ponte ou correia de transmissão inter-estatal regional e mundial; 2) laços de dependência mais frouxos, por recursos exploráveis que permitem certa margem de manobra, mas necessita ser compensado; 3) debilidade relativa da classe dominante, fraqueza de sua base econômica e da implantação capitalista nacional; 4) amortização do dissenso social de setores deserdados com as meias “conquistas” e as meias “concessões”, tirando intensidade das demandas sociais e gerando conformismos; 5) o sistema de elenco político estável e sua estrutura; 6) linha ideológica modernizante “ilustrada” de tipo racional-legal, em sentido weberiano, que midiatiza as expressões políticas radicais.
A burocracia frentista é a versão século 21 da burocracia estatal de gestão (com precedentes no século 19 do “patriciado” e no século 20 batllista), com um papel social, político e cultural relevante por suas características de nossa formação social. Chegou ao governo em 2004 pela janela da oportunidade da crise do ciclo neoliberal de 2002 e teve sua prova final quando conseguiu depositar a rebeldia popular na ilusão de um iminente governo de esquerda.
Formou-se por cooptação estatal da burocracia política de esquerda, intelectualidade pequeno-burguesa, burocracia sindical e modernização da burocracia estatal pelo avanço do papel social do Estado. Havia se preparado na reconversão social-liberal da esquerda reformista depois da ditadura militar e a queda da União Soviética, internalizando essas derrotas. Para o papel de contenção do dissenso, aportou seu sindicalismo oficialista, o que é sua vantagem sobre a direita tradicional.
A década frenteamplista é de recuperação a cavalo da onda expansiva pós-crise. Uma expansão retrógrada, voltada à economia exportadora de bens primários, contrapartida da crise financeira central e à emergência industrial chinesa, com a qual se complementa. Mas a expansão, ao final, permitiu a recuperação do salário real e um relançamento, mediano, do Estado de Bem Estar. Agora virão os anos de desaceleração.
O verticalismo autoritário da primeira presidência de Tabaré foi o modo de disciplinar, pela tornozeleira eletrônica, essa burocracia recém-formada. Mas a expansão pela conquista do aparato de Estado e a gestão de recursos foi erodindo essa base material do verticalismo.
Mujica introduziu um estilo negociador mais apropriado à nova configuração, com as dificuldades lógicas. O resultado eleitoral é um possível equilíbrio. Seria simplista reduzi-lo ao clientelismo do Estado, ainda que exista. O principal é a relação ambivalente da classe trabalhadora com o governo frentista. Primeiro, a expectativa foi muito grande, seguida pelo período de luto. E depois aos empurrões, a classe foi voltando à atividade, e encontrando sua própria janela de oportunidade na briga pelo espaço que se abriu, aproveitando as fraquezas do oponente.
Uma luta complexa, mas a classe, sem direção política nem teoria, encontra ali a melhor das opções estratégicas possíveis na conjuntura. Para uma política classista consciente falta muito. E de direção política melhor nem falar.
Como encarará o governo frentista o “alto lá” às políticas de concessões parciais? O retorno a um verticalismo cerrado é sintoma de debilidade. Ante as dificuldades que se apresentam, Tabaré foge para frente, sobe a aposta e joga sua cartada presidencial. Mas mostra que é a única que possui.
Aos 75 anos, é difícil mudar. Porém, a causa verdadeira é o predomínio persistente do círculo social-liberal na cúpula frentista, que por sua vez vai se estreitando. Aumentará a construção de um enclave “casa de vigilância” imperial na região. É outra linha de longo incentivo, a burguesia local compensa sua debilidade relativa recostando-se no império de turno e oferecendo seu serviço político de mercenário democrático.
Entrincheirar-se na torre facilita que os rivais interiores ocupem posições e se preparem. As divergências na Frente são a prévia concentrada das contradições em desenvolvimento na sociedade. Em sua hora, explodirão, e se ocorre a Ley de Murphy será a pior.
Fernando Moyano, uruguaio, é membro da revista marxista Alfaguara; fundador da "Coordenação pela retirada das tropas do Haiti".
Traduzido por Gabriel Brito, Correio da Cidadania.