Venezuela: 'Assumir a crise construindo o socialismo possível'
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- Notitimes.com
- 20/02/2015
O professor Jorge Giordani, ex-ministro de planificação e finanças da Venezuela, considera que para sair da crise econômica o primeiro a fazer é o governo assumi-la e falar claro ao país, e logo implantar uma lei draconiana contra a corrupção.
Em uma entrevista exclusiva com a equipe de repórteres do portal de notícias Notitimes.com, o ex-ministro de economia do presidente Chávez, e por poucos meses, até junho de 2014, do primeiro mandato nacional de Nicolas Maduro, sai do silêncio midiático (esclarece que é anti-comunicacional), e na entrevista decide aportar ideias sobre como superar a crise, ainda que formule fortes críticas contra a corrupção, o burocratismo e o que tem chamado de incompetência, indicando que lhe dá vergonha por aqueles que lhe chamaram de traidor.
Jorge Giordani é reconhecido dentro do setor revolucionário como um dos principais assessores do presidente Hugo Chávez, homem de planificação, coautor junto ao comandante Chávez e ao professor Héctor Navarro da Agenda Alternativa Bolivariana, publicada em julho de 1996, documento essencial, histórico, para edificar as bases revolucionárias e os primeiros passos para falar de socialismo, ademais conhecedor de economia política.
Giordani, que aos 74 anos diz que ocupa 24 horas do dia trabalhando pela revolução bolivariana, acaba de lançar um livro e espera não ser fuzilado (metaforicamente), já que a carta publicada, quando substituído como ministro, rompeu recordes de leitura. Entre risadas, crê que o portal "Aporrea" lhe deveria enviar ainda que seja uma cesta básica, por boa conduta e humanidade – já que recebeu diversos ataques, incluindo o de traidor. Hoje escreve outro livro que até o momento já possui mais de 800 páginas e seu título será "Do colapso Rentístico à crise de Hegemonia".
Nessa entrevista, o ex-ministro Giordani fala sobre o desenvolvimento da crise econômica que impacta o povo venezuelano, marcado por uma guerra econômica, fala também sobre as recomendações e pormenores de sua polêmica carta, assim como de seu último livro, do qual o comandante Chávez conheceu alguns documentos, e que, nas páginas 42 e 43, expõe pela primeira vez a necessidade de assumir a crise de 2009 e como o comandante Chávez a assumiu, apesar da caída dos preços do petróleo de 140 dólares por barril em junho de 2008 a 40 dólares no final desse mesmo ano.
Notitimes.com: Estamos atrasados, professor Giordani, para assumir a crise econômica?
Jorge Giordani: Veja, felizmente o presidente Nicolas Maduro disse que já leu o livro completo ("Encontros e Desencontros em uma Construção Bolivariana"); que bom, me alegra que ele conheça esses documentos, pois nós temos sempre trabalhado de uma maneira muito transparente. Sobre assumir a crise, havia que tomar medidas excepcionais, quase draconianas, já desde o mesmo 07 de outubro de 2012, e quando este cavaleiro (referindo-se a um quadro do comandante Chávez) ganhou as eleições - em que condições de sua saúde ganhou o presidente Chávez as eleições? Recordem de como se desenrolava a situação de sua saúde em princípio de 2011, com o uso de muletas; depois de 30 de junho de 2011, apareceu magro em Cuba, dizendo que havia feito duas operações; depois, no começo de 2012, estava em Barinas em uma inauguração de uma planta, e anunciou que teriam de operá-lo de novo - a terceira operação; e com esses antecedentes, havia de ser jogado a Rosalinda. Por isso, parto do princípio em assumir minha responsabilidade, como creio que assumimos todos, mas havia que tomar algumas medidas duras logo após o evento eleitoral – então, estamos atrasados desde 07 de outubro de 2012, quase três anos de atraso.
Notitimes.com: Não se tomaram as medidas talvez por temor?
Jorge Giordani: Não sei, mas havia que tomar medidas a partir de 07 de outubro de 2012, e ele (Chávez) fez uma reunião em 20 de outubro de 2012; foi a única reunião que tivemos com ele no Conselho de Ministros, o chamado "O Golpe de Timón" . Por certo, devem estar recolhendo esse folheto ou transformando o conteúdo seguramente, porque faz algumas referências a minha pessoa e, na segunda edição, talvez apagaram meu nome e o de quem não lhes convém, mas não vão poder borrar a história e, sobretudo, não vão poder apagar a responsabilidade que cada qual tem na história, enquanto responsabilidade e consciência.
Notitimes.com: Até que ponto é saudável a crítica?
Jorge Giordani: Eu aprendi que alguém tem que ser crítico, mas argumentando sempre com uma crítica construtiva, porque, senão, pode-se converter em uma espécie de disparador de lança chamas, uma espécie de franco atirador intelectual; quando fazes uma crítica, tem que tratar de dar uma solução e, se a solução que tu estás dando é a melhor que se propõe, tem que se tirar o chapéu, e dizer: que bom amigo, algo novo aprendi. Ser ignorante é bom porque se tem a oportunidade de aprender, mas há alguns senhores ou senhoras que sabem de tudo, estão equivocados, estão enrolados, para dizer a verdadeira palavra em castelhano, porque esses não irão aprender nada. É a partir de suas limitações que então se busca ajuda. Necessita-se um tanto de modéstia na hora de conhecer e mais quando se quer transformar a realidade; aprendamos dos verdadeiros mestres, deixemos que esses prepotentes se cozinhem em sua própria salsa.
Notitimes.com: Nos últimos anos a estrutura do Estado foi incrementada; a burocracia também?
Jorge Giordani: Nós não podemos fazer um carinho na Burocracia e na Tecnocracia venezuelana, nós não a enfrentamos; lamentavelmente isso é uma estrutura amorfa, sem rosto, acomodada, e agora criamos vice-presidências a granel, ministérios e vice-ministérios; estes por certo não existem, são puras invenções, dado que o ministério é único; mas se há monastérios, mistérios, esperemos que não se transformem em cemitérios; há uma larga carga burocrática, ao final são dois milhões e meio ou três milhões de funcionários e funcionárias, já não temos recursos para manter todo esse aparato do Estado; isso igual que a justa política social, porque tudo custa, nada é grátis; a moradia, a saúde, a educação, as prestações sociais, tudo isso custa e parece que atribuímos recursos e...
Então, sim, existe muita burocracia! Em seguida vem a crise, e ela começa a ver se adquirimos consciência dos limites; que bom para nossa consciência; e nós ajustamos os cintos, porque não há dólar, nem bolívares, e não se pode seguir sacando bolívares com a maquininha do senhoril Banco Central de Venezuela, nem tampouco os dólares, dado que não se aumenta a produção petroleira. Todos nós queremos viver de uma renda que nada produz, mas todos nós pensamos que é nossa desde o ponto de vista individual. Sofremos uma espécie de ninfomania fiscal e poucos querem pagar impostos. Ao presidente Chávez lhe disse uma vez: Presidente, os "presente" devem acabar. O que tivemos que fazer a partir do 7 de outubro de 2012.
Notitimes.com: A dívida social na Agenda Alternativa Bolivariana, como se definia?
Jorge Giordani: O que se passa é que o comandante Chávez tinha uma angústia existencial. Em uma reunião em março ou maio do ano de 2012, o comandante Chávez foi muito duro nas abordagens; nessa noite eu não dormi e escrevi uma larga carta ao comandante, isso estará nas memórias; eu dizia que, a par da cultura rentista, recordasse que a dívida era de 100 bilhões de dólares em 1996, sendo que nós investimos mais de 650 bilhões de dólares em saúde, educação, moradia, prestações sociais. Estávamos equivocados? E ele dizia (Chávez): trazemos uma dívida não da Quarta República, senão de 200 anos, ademais é uma dívida da Pátria Grande, o Haiti nos deu tudo no momento em que Bolívar necessitou e depois dizem que estamos premiando, não estamos premiando, estamos compartilhando com a Pátria Grande - então a dívida era da Pátria Grande, não só da Venezuela.
Notitimes.com: Existe uma insatisfação apesar da inversão social?
Jorge Giordani: O que ocorre é que nestes últimos anos são 650 bilhões de dólares dedicados ao social. Desde 2004 até 2012, tem saído da Venezuela, por algumas estimativas, entre 215 e 250 bilhões de dólares, porque é um sistema financeiro que funciona como uma peneira. Então eu dizia ao Comandante Chávez, veja quanto esforço inédito e inaudito feito na Venezuela, de distribuição de renda, e, todavia, há insatisfação; quando um satisfaz uma necessidade, surgem outras, e assim é o ser humano; se estou bem, quero outras coisas, e isso é infinito, mas os recursos são escassos. O principal problema político da Venezuela é a distribuição da renda petroleira. Como então vamos construir uma sociedade socialista com esses perfuradores da renda enraizados no sistema financeiro?
Notitimes.com: Existe uma crise e o setor privado acusa a revolução?
Jorge Giordani: O setor privado não investe, mas quer seu capital de reposição para manter-se e manter o negócio que tem - os ganhos são outra coisa. Quem tem suprido os investimentos é o Estado, e isso vem desde a sexta feira negra de fevereiro de 1983. Sobretudo nos últimos anos, depois de 1998, o setor público tem mantido um nível de investimento entre 10% e 15% do produto interno bruto, basta observar as cifras do BCV. Isso temos publicado muitas vezes. Se não se investe, não cresce, já temos dois anos de redução da economia, acompanhada de uma taxa de inflação como a que temos agora...
Notitimes.com: Quais são as causas?
Jorge Giordani: Ao povo venezuelano não há que mostrar uma equação econométrica para entender as causas e os componentes da inflação, porque se sente diretamente na pele, nas filas, que não são menos que um sinal de ineficiência.
Notitimes.com: Como se explica essa questão?
Jorge Giordani: Explico: não havíamos tido uma inflação de mais de 25 ou 30 por cento, num par de oportunidades. No ano de 1999, quase rompemos em seguida o piso de 10%; agora parece que há um senhor que disse por aí que estávamos recompondo o que fizemos mal - será que não leem ou não entenderam? Será que não se entenderam? Aí estão os dados do Banco Central de Venezuela, mas já nem sequer os publicam, fracasso político grave, esconder o sofá! Quando era o comandante Chávez, nós dizíamos: presidente, esta é a informação; imediatamente, ele ordenava publicá-la.
Notitimes.com: Professor Giordani, você recomenda assumir a crise - como assumi-la?
Jorge Giordani: Na verdade, já somos quase a chacota da América Latina! Se a situação está mal, se o termômetro te diz 40, há que assumir. Há quem diz que o problema é que o termômetro não serve, mas, se te dá 40, é porque mede 40, isso temos que dizer. Nas páginas 42 e 43 do livro "Encontros e Desencontros na Constituição Bolivariana" estão as sugestões que se formularam ao presidente; eu disse ao Comandante Chávez, "assuma a crise", e ele assumiu, tomando medidas corretivas no ano de 2009, dado que os preços do petróleo em junho de 2008 estavam 140 dólares por barril e, no final do ano, já chegavam aos 40 dólares por barril, e a economia venezuelana estava desacelerando. O que sugere um gênio da economia ao presidente Chávez quando a economia estava desacelerando era frear a economia, e como consequência o carro parou no ano de 2008 e veio a crise. Mas o presidente Chávez "assumiu a crise" a partir de 2009, e ali estão os resultados à vista de todos. O ser humano deve sempre aprender e tirar lições da experiência...
Notitimes.com: Mas a crise de 2009 foi impactante?
Jorge Giordani: Foi feita uma quantidade de leis no ano de 2009 trabalhando com Ricardo Sanguino desde a Assembleia Nacional, aprovaram-se Leis contra as famosas Casas de Bolsas, o setor de Seguro, os Bancos. Houve um senhor que quis vender um dos bancos por um bolívar para libertar-se de sua responsabilidade; “coloque-o preso” , disse o Comandante Chávez, e não tenho que dar nomes, isso é público e notório. Então o que fizemos foi apertar os cintos e eu questionei ao presidente por que continuar fazendo orçamentos em dólares, se a moeda venezuelana é o Bolívar, e nós o tínhamos entre 20 e 25 dólares, e o colocaram em 60, e o presidente Chávez me disse, Jorge, queriam colocar em 80 dólares o barril, esta sociedade sofre uma doença de cultura rentista, mostrando-se insaciável aos bolívares e às divisas...
Notitimes.com: As relações com o presidente Chávez foram fáceis?
Jorge Giordani: As relações com Chávez nunca foram fáceis, como dizia o professor Hector Navarro, mas havia o respeito e, quando se perde o respeito, se perde tudo, porque uma coisa é o calor e o clímax da batalha no político e na defesa de ideias, o debate, a dialética argumental...
Notitimes.com: Você fala de suas memórias e de sua história, como assim?
Jorge Giordani: Há tempo para fazê-las, digo, escrever as memórias sempre com o máximo de respeito ao ser humano. Com o máximo respeito e não como qualquer moedinha de ouro na hora do combate político. Recordo que, em fevereiro do ano de 2002, Nicolas Maduro, Cilia Flores e o resto dos companheiros sugeriram que eu continuasse com o direito da palavra, e neste momento havia um senhor, vestido de militar e que, ao que parece, já tinha uma reunião fixada na noite e queria a CNN para vê-lo ali na Assembleia declarando com seu uniforme; Nicolas e Cilia me diziam, segue, segue, estive como oito horas argumentando, isso deve estar gravado ali na Assembleia Nacional; o militar queria declarar à CNN, e depois apareceu nas jornadas do Golpe de Estado muito ativo; cada qual que assuma suas responsabilidades ante a história, ali estão os fatos e é somente com a consciência que a gente se deita todos os dias, e com ela, no dia seguinte, você pode levantar em paz e com tranquilidade...
Notitimes.com: Como isso é expresso em valores, em principio?
Jorge Giordani: Veja, os valores e os princípios não se negociam. E isto se aprende desde casa; eu creio que uma das coisas que cometem alguns companheiros jovens é crer que a história começa quando eles nasceram, começam a apagar o resto, e se perguntam: de onde vieram? Quem são seus pais? Que fizeram? E quando se tem a consciência tranquila, como eu tenho, e creio que a temos, a grande maioria dos venezuelanos, então vamos seguir lutando, porque o que fizemos, sonhando toda a vida, pelo socialismo, assim seguiremos dando o melhor de cada um...
Notitimes.com: Socialismo e revolução existem?
Jorge Giordani: Olhe, creio que na Venezuela já se fala menos de socialismo e a palavra revolução provavelmente irá desaparecer novamente do dicionário dentro de pouco tempo.
Notitimes.com: Tem que defender o governo?
Jorge Giordani: Por certo que tem que defender o governo revolucionário! A quem vamos defender? A Capriles, a Lopez, aos fascistas, aos Estados Unidos, à CIA...? Temos que defender a revolução e a construção de um socialismo possível para a Venezuela, para América Latina, o Caribe e, por que não, no resto do mundo...
Notitimes.com: Como se perdem os princípios, os valores...?
Jorge Giordani: A corrupção que vale; a moral, a ética, é a corrupção que corrói, é um câncer social.
Notitimes.com: Como se dá a crise na Venezuela?
Jorge Giordani: Você tem que dizer a verdade e isso dói - o professor Navarro disse no prólogo que a crise se dá quando tu não tens a capacidade de dominar o adversário, e não convence seu aliado. A personalidade, a liderança de Chávez e a distribuição da renda petroleira aplacaram a situação social, e o que passou depois? Agora, com a luta entre múltiplos centros de poder, não se tomam decisões, então aflorou essa doença e, veja, estamos nas portas do fascismo, porque nem os Estados Unidos irão ficar silenciosos neste cerco, nem os fascistas daqui irão ficar quietos; já nos fizeram com as guarimbas, tentando o que fizeram com o Presidente Maduro e contra os venezuelanos, e vão tentar novamente. Por isso temos que falar claro ao país. Éramos ricos, verdade; já não somos, devemos atuar com consequência!
Notitimes.com: Como podemos superar esta crise?
Jorge Giordani: Há que fazer uma Lei dacroniana contra a corrupção; porque não aprovamos essa Lei como uma primeira medida? O povo da Venezuela irá aplaudir, quem não irá permitir? Só os que estão neste processo submetidos ao fenômeno da corrupção!
Notitimes.com: Então uma das causas da crise é a corrupção?
Jorge Giordani: O burocratismo, a ignorância, a incompetência, a existência de um sistema capitalista e uma burguesia a quem se lhes dá 30 a 40 bilhões de dólares/ano, quando o que exportam são 3 bilhões. Aí há um certo desequilíbrio, uma dolorosa assimetria. A PDVSA entrega ao Banco Central de Venezuela, ao ano, 40 ou 45 bilhões de dólares, mas tiram da conta rapidinho, 10 bilhões de dólares para alimentos, 5 bilhões para remédios, o pagamento da dívida externa, e segue...
Hoje é preciso deixar de importar alimentos, vamos produzi-los! Não te metas no que está funcionando; parece que fomos o rei Midas ao revés. Pondo a funcionar PDVSA, o SENIAT, o BCV, o comércio Exterior, o sistema financeiro; colocamos a funcionar a eletricidade, as empresas de Guayana, as telecomunicações, os serviços públicos, pois as pessoas precisam de medicamentos e alimentos; e as pequenas e médias empresas que funcionam.
Bem, deixe-os, a todos, tranquilos...
Entrevista publicada pelo portal de noticias Notitimes.com e pelo site Carta Maior - http://cartamaior.com.br/ -, de onde foi retirada.
Tradução: João Victor Moré Ramos, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina.