Uruguai e acordos comerciais com a UE: acomodando o traseiro na poltrona “em duas velocidades”
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- Fernando Moyano
- 12/06/2015
Walter Cancela, embaixador uruguaio na União Europeia, disse na segunda-feira, primeiro de junho, que o Mercosul não planejou um acordo “em duas velocidades” com a União Europeia ((UE), ou, seja, deixando de lado a Argentina por dois anos), senão um acordo “dos quatro sócios, porque a UE tem mandato para negociar com o bloco do Mercosul, não em separado”.
No dia seguinte, foi anunciado que ele seria removido de seu cargo porque suas declarações haviam incomodado o presidente Tabaré Vázquez, ao mesmo tempo em que não o incomodaram os insultos do ministro da Defesa aos organismos de Direitos Humanos.
“Da política exterior cuida o presidente”, disse o chanceler da República, e acrescentou que buscariam rapidamente um substituto porque as negociações começam já. “Se a Argentina decidir não participar, o resto do bloco seguirá adiante”, disse o ministro da Economia, há alguns dias, e que isso foi acordado com Dilma Rousseff na recente visita de Tabaré a Brasília. (parece decidir também sobre a política internacional do Brasil).
Vinte e quatro horas depois, os mesmos hierarcas dizem que não demitiram Cancela, mas apenas o “colocaram sob observação”. Ao mesmo tempo, o ex-presidente José Mujica disse que a solução para a América Latina não virá do comércio com a Europa, que está em “situação complexa e cheia de incertezas”.
Para entender alguma coisa, vamos à raiz do problema.
A debilidade relativa congênita da classe dominante uruguaia a aproxima periodicamente do poder imperial. Desde a incipiente burguesia colonial de Montevidéu, “a muito fiel e conquistadora”, que em 1806 recuperou para a coroa espanhola a Buenos Aires invadida. Ou a “independência” do Uruguai em 1825-28, de costas para o projeto federal artiguista, por decisão de Sua Majestade Britânica. E a infame Tríplice Aliança de 1865 para invadir e destroçar o Paraguai, acabando com sua resistência contra a penetração imperialista. De brinde, esta guerra nos deixou um exército uruguaio formado com um rejunte de mercenários e essa condição se prolonga até as “missões de paz” de hoje.
Nossa única redenção possível é a integração latino-americana. “O Uruguai não pode seguir marcha somente pelos trilhos uruguaios. Os do Uruguai insular. O Uruguai que está morto. Que não tem possibilidades de desenvolvimento autônomo... Esse caminho está condenado à frustração. o Uruguai não pode, por si só, adquirir sua independência”, afirmava o jornalista e político Carlos Quijano, fundador e diretor do Marcha (antigo semanário).
Mas qual integração? “A integração dos desenvolvimentistas não é a nossa”, acrescentava Quijano. O capitalismo periférico dependente define uma competência especial entre as burguesias coloniais da região, uma disputa por um melhor lugar na vassalagem da estrutura colonial. O espaço que ganha uma, perde a outra, e essa competência servil degrada a todas em benefício do centro imperial.
A cenoura é buscar um desenvolvimento por via capitalista para “alcançar o Primeiro Mundo” em uns trinta anos, aproveitando as possíveis oportunidades no comércio mundial (agora o chamam de “país inteligente”). Essa integração seria coordenar as ofertas para esse mercado e aceitar por igual os capitais e os produtos externos. Mas sem interação produtiva sempre há o limite da competência em chegar aos mesmos objetivos por vias particularistas.
O suposto desenvolvimento por imitação do caminho dos países europeus e EUA nos últimos trezentos ou quatrocentos anos, é impossível. Isso foi claramente demonstrado, faz tempo, por autores como o marxista uruguaio Vivian Trías.
Já não é mais possível uma acumulação primitiva pela exploração das colônias e superexploração do trabalho, como na revolução industrial. Reformar a atual distribuição da terra já não significa uma remoção do feudalismo, um modo de produção inferior; agora é preciso quebrar a concentração de terras em mãos do agronegócio transnacional, impossível por pura e simples competição capitalista.
Hoje o excedente econômico é levado pelo imperialismo, que conta com o monopólio financeiro, potência militar, acesso aos recursos naturais, meios de comunicação e tecnologia. Em vez de uma burguesia autônoma como na decolagem capitalista na Europa, as nossas são subsidiárias do capitalismo globalizado, vivem em seu interstício e não podem, nem buscam, ser outra coisa.
O que faz um governo como o da Frente Ampla? Se o que busca é gerir o capitalismo, assuma a lógica capitalista. Sentado na poltrona, traseiro e cérebro se moldam.
O que pode fazer um pequeno país capitalista, periferia da periferia, como o Uruguai? Se saltar da panela, cai no fogo.
Cada vez que alguma crise cria dificuldades, o governo proclama que os capitais podem vir para cá porque o Uruguai baixa os panos; cada vez que algum outro governo da região tenta sequer uma pequena negociação ou resistência, aqui se prestam ao papel de fura-greves para mostrar “responsabilidade”. E anunciam que o Uruguai está “blindado” e, mais ainda, sairá beneficiado pelas dificuldades dos vizinhos. Com o gorro em mãos, pedindo moedas.
Mas acaba passando o que é previsível para qualquer um, menos para essa equipe econômica. As dificuldades da região pendem sobre o Uruguai, porque esses países são mercados do Uruguai. Deles, vêm muitos investimentos de capital, divisas e são sócios em obras de infraestrutura. É o dilema do prisioneiro. Se mandar em cana o teu cúmplice, é possível que vás antes dele.
Entre servir ao império ou ao sub-império, para alguns é preciso “se abrir ao mundo” para ver se assim se vendem serviços aos países centrais, e para outros é melhor vender na região a ideia de um porto de águas profundas entre todos. Todas as opções dentro do capitalismo, porque por algo estão sentados na poltrona.
Deslocar-se entre Argentina e Brasil, no Uruguai, é como vir a reinventar a roda. Armar intrigas entre eles para ver se pescamos algo, talvez dê um pão para hoje. Mas com certeza traz fome para amanhã. Porque qualquer império proferirá sempre resolver com os maiores, por mais que possa tirar desta “terra sem nenhum proveito”.
Um país inteligente não merece um governo estúpido. Não é de estranhar que em tantas voltas pelo labirinto, alguém se incomode que outro diga uma verdade simples e modesta.
Nestas condições, nesse contexto inabalável do capitalismo, quais dessas “duas velocidades” é a solução? Simples, não há solução.
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Fernando Moyano, uruguaio, é membro da revista Alfaguara e fundador da Coordenação pela Retirada das Tropas do Haiti.
Tradução de Raphael Sanz, do Correio da Cidadania