Haiti: sobre farsas e tragédias
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- Daniel Gatti
- 27/11/2015
Se alguém duvidou daquela famosa frase de Marx de que a história se repete uma vez como tragédia e outra como farsa, o caso do Haiti o convenceria de que é assim mesmo. A história política recente do Haiti é mais uma contínua sucessão de tragédias e farsas combinadas; de ditaduras, fraudes, massacres e violações. A título de exemplo: o surgimento, ascensão e evolução do atual presidente, Michel Martelly, eleito no segundo turno após ser o terceiro mais votado no primeiro turno, em uma eleição com participação liliputiana, que governa por decreto porque o parlamento que devia ter sido eleito três anos antes “não pôde” ser renovado durante todo esse período e os legisladores chegaram à caducidade de seus mandatos...
Em agosto último, houve o primeiro turno das postergadíssimas eleições legislativas. Houve relativamente mais candidatos a deputados (acima de 1500, para 119 cadeiras) do que eleitores que participaram do pleito (cerca de 18% dos 6 milhões habilitados), e foi tal o nível de fraude promovido desde o princípio pelo oficialismo que a eleição foi anulada em um quarto dos colégios eleitorais. Apareceram urnas queimadas; outras, ao serem abertas, tinham mais votos do que inscritos no colégio; também foram atacadas a tiros as sedes de grupos opositores... “A violência” deixou mortos e feridos.
A Polícia Nacional do Haiti (PNH), supostamente reformulada com a ajuda das Nações Unidas, brilhou por sua ausência. Agentes da PNH, em particular seu corpo de elite, o Boid, denunciado como um tipo de esquadrão da morte por setores da oposição, foram identificados entre os agressores. No dia 25 de outubro, há um par de semanas, foi o segundo turno das legislativas e primeiro das presidenciais. Voltaram a apresentar-se a infinidade de candidatos (54 para a presidência), e voltaram a ser pouquíssimos os votantes. Os quase 30% de participação oficialmente registrada foram o bastante para o governo falar em “êxito” e as Nações Unidas festejarem. É certo que para muitos dos que não votaram foram encontrados substitutos entre as vítimas mortais do terremoto de 2010, que seguiram figurando no sistema eleitoral, além de outros eleitores que se subdividiram e por obra de arte de vudu votaram várias vezes.
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Desde 2004 estão instaladas no país, por decisão do Conselho de Segurança da ONU, as tropas da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah). Seus vários milhares de soldados e policiais foram despachados para, entre outras coisas, “estabelecer um entorno seguro e estável”; “prestar assistência no restabelecimento e manutenção do Estado de direito, da segurança e da ordem pública”; “ajudar na supervisão, restruturação e reforma da PNH”; “ajudar na tarefa de organizar, supervisionar e levar a cabo as eleições municipais, legislativas e presidenciais livres e limpas”; “vigiar a situação dos direitos humanos” etc.
O mandato da Minustah foi renovado várias vezes. Desde 2009, ano após ano, e sempre mais ou menos com os mesmos objetivos. O prazo limite de permanência das tropas era 2014, mas nesse ano foi estendido até 2016. As tropas uruguaias vão se reduzindo por lá, ainda que sigam sendo mais de 4400 oficiais. Vários países com governos de distinta roupagem progressista fazem parte da coalizão no Haiti (Brasil, Argentina, Chile, Equador, Bolívia) e aprovaram as sucessivas renovações com o argumento, inverificável, de que sem a Minustah as coisas estariam “ainda pior”, ou de que os governos locais, de legitimidade duvidosa, têm reclamado da presença de soldados e policiais estrangeiros no país caribenho.
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“Onze anos não bastaram para que a Minustah cumprisse com uma só linha do que em princípio era seu mandato. Suas tropas participaram, em troca, na repressão de movimentos populares”, disse ao semanário Brecha Henry Boisrolin, representante na Argentina e no Uruguai do Comitê Democrático do Haiti. Os capacetes azuis foram denunciados também por casos de violações e por terem contribuído com a reaparição do cólera, uma doença que fora erradicada do Haiti, mas que nas condições de pobreza extrema em que vive o país se propagou facilmente: em apenas alguns meses, mais de 9 mil pessoas morreram e umas 800 mil foram contaminadas.
A epidemia foi declarada em 2010 na pequena cidade de Mirebelais, onde montaram acampamento os capacetes azuis provenientes do Nepal, um país onde o cólera acampa. Os soldados da Minustah drenavam sua água para o mesmo rio utilizado pela população local para abastecer-se. A ONU a princípio negou e logo não pôde mais: dois estudos, um a cargo do francês Renaud Piarroux – um dos maiores especialistas mundiais em cólera – e outro do Centro para Controle e Prevenção de Enfermidades, dos Estados Unidos, determinaram que havia uma “correlação exata” entre a aparição da doença e a instalação dos capacetes azuis nepaleses. Doentes e familiares dos falecidos fizeram esta demanda à Minustah, mas a ONU invocou os “privilégios e imunidades” que protegem seus soldados, o mesmo estatuto que os põe a salvo de acusações por outros crimes. Em 2012, as Nações Unidas lançaram uma “iniciativa para erradicar a cólera do Haiti”. Não era uma piada.
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Henry Boisrolin vive há anos em Córdoba (Argentina) e cruza periodicamente a fronteira para tentar “abrir os olhos das pessoas, dos governantes e legisladores uruguaios”, como trata de fazê-lo também na Argentina, de que estão contribuindo com a manutenção de tropas de ocupação em seu país. Brecha o entrevistou várias vezes. Não se importa em ser repetitivo, diz, porque o que tem para denunciar ainda não mudou e “os exemplos das aberrações que estão sucedendo no Haiti se reiteram periodicamente, fazendo-se cada vez mais evidentes para quem observa o que acontece”.
As eleições presidenciais de 25 de outubro, diz, são só um exemplo. “Se extremaram as medidas de segurança – inclusive com sobrevoos de drones – porque não se podia dar novamente espetáculo de mortos e feridos a bala no mesmo dia da consulta, mas a fraude foi tão massiva e descarada como nas vezes anteriores. Observadores internacionais viram como às 14h do domingo começaram a aparecer ambulâncias que transportavam urnas de um lado a outro, cheias de votos que favoreciam candidatos oficialistas. Foi constatada fraude nos dez departamentos. Quanto à participação, oficialmente se fala em 30%.
Sabemos que nem o 20% participaram, mas admitamos os números oficiais: quer dizer que sete de cada dez haitianos não foram sequer votar. Em qualquer outro país diriam que um governo forjado em uma consulta assim seria ilegítimo; a Minustah, ao contrário, olha para o outro lado. O que explica a baixa votação é, por um lado, a desconfiança da população no valor das eleições, que mais uma vez parecem garfadas. E por outro que os conselhos eleitorais provisórios que foram montados para organizá-las dão muito poucas garantias. Sabe-se ainda que tudo é ditado de fora: como e quando se fazem as eleições, quem participa, como se organizam, como se financiam. Até as cédulas são trazidas de fora, quando no Haiti há um desemprego monstruoso e gráficas capazes de produzi-las”.
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Os resultados preliminares foram divulgados na noite de sexta-feira, dia 6 de novembro, quase duas semanas depois dos comícios. Pouco antes da votação, dois dos grandes candidatos decidiram não apresentar-se porque consideraram que não existiam garantias mínimas de transparência.
A Brecha falou com Boisrolin no dia 5 de novembro, quinta-feira, um dia antes que se conhecessem os primeiros dados das eleições presidenciais. “É obvio – prognosticou então – que como em todas as eleições anteriores haverá fraude. Não vai ter uma eleição, vai haver uma seleção. O que importa saber é como, neste marco de farsa, vão nos vender as coisas: se são tão caras de pau para fazer vencer logo no primeiro turno o oficialista Jovenel Moise, um tipo tirado da manga de algum articulador político que ninguém conhecia antes da convocatória da eleição, ou se cuidam das aparências e colocam Jovenel detrás de algum dos dois maiores opositores, Jude Celestin, do partido Lapeh, ou o senador Moise Jean Charles, da esquerdista Plataforma Pitit Dessalines (os filhos de Dessalines, em idioma crioulo). Se Jovenel ganha no primeiro turno, o Haiti arderá e não terá bombeiro que apague o incêndio. Se tentarem ser mais moderados, de toda forma ainda vai acontecer algo”.
As aparências foram mantidas e Jovenel Moise, um grande empresário bananeiro, a quem se conhece por “homem-banana”, superou Celestin por sete pontos (32 a 25 por cento). O segundo turno deveria acontecer no próximo dia 27 de dezembro. Tanto Celestin quanto Moise Jean Charles mostraram provas de manipulações e impugnaram os resultados. “Não deixaremos que se aprove o projeto ditatorial do governo”, declarou Celestin na sexta-feira, 6 de novembro.
Na quarta-feira, dia 11, explodiu uma bomba: somou-se às denúncias Antoine Bien Aimé, legislador eleito pelo partido oficialista PHTK. Bien Aimé acusou Sylvain Cotté – funcionário canadense da Unops (uma ramificação da ONU) e ex-conselheiro do anterior primeiro ministro Laurent Lamothe – de haver “orquestrado logisticamente a fraude eleitoral”. A Unops foi a encarregada de organizar as eleições presidenciais, com o bom visto da Minustah, cuja chefa, Sandra Honoré, recomendou a Cotté para incorporar-se ao serviço das Nações Unidas logo depois de ter sido funcionário da OEA. As denúncias de fraude de Bien Aimé são as primeiras realizadas por um legislador oficialista.
E “aconteceram coisas”, como previu Boisrolin. Se no dia da eleição não houve mortos, eles vieram um pouco depois: um dos militantes da Plataforma de esquerda foi assassinado a tiros por para-policiais na quinta-feira, dia 5, e outra pessoa no dia seguinte. Houve ainda mais assassinatos na repressão desatada nos bairros populares de Porto Príncipe durante as manifestação que pediam a renúncia imediata do presidente Martelly. Entre os dias 9 e 10 houve greves, manifestações e barricadas nas principais cidades do país, segundo a agência haitiana Alterpresse.
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Organizações sociais haitianas afirmaram que em dias passados os Estados Unidos enviaram a Porto Príncipe dois aviões com tropas que “por ora” foram postadas no entorno da embaixada. “Os Estados Unidos têm como um reflexo intervir militarmente. Depois do terremoto de 2010, Cuba mandou médicos, Venezuela petróleo a preços bem baixos e eles, soldados”, reiterou Boisrolin. “Pouco antes das eleições presidenciais o secretário de Estado John Kerry esteve no Haiti por algumas horas. Foi uma visita de médico. Pisou no aeroporto e marchou para o palácio presidencial. Falou com Martelly e o primeiro-ministro, e se foi. Não sabemos sobre o quê falaram. Temos que ter em conta que os estadunidenses são os verdadeiros donos do país. As fabulosas minas de ouro do norte de Haiti são do irmão de Hillary Clinton, a ex-secretária de Estado e pré-candidata democrata à presidência”.
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A maioria dos países latino-americanos que integra as tropas da Minustah não decide nada. Mas justifica e avalia, aponta Boisronin. Os que decidem são parte do dito “Core Group”, integrado pelos embaixadores do Brasil, Canadá, França, Espanha, Estados Unidos, União Europeia e os representantes especiais da OEA e do secretaria geral da ONU. O Core Group se apresenta como a voz da “comunidade internacional” no Haiti.
“São os que mandam politicamente”, insiste Boisrolin. “São eles os responsáveis de que se mantenha esta situação, que nos tratam como crianças que precisam de ajuda e não podem caminhar sozinhas. Claro que precisamos de ajuda, mas entre iguais. Ninguém pergunta aos haitianos o que é que querem. Fazem o simulacro com governantes de legitimidade duvidosa, colocados e mantidos por eles. Dos países latino-americanos, sobretudo os que têm governos progressistas, esperamos outra coisa. Não uma atitude imperialista, não pedimos tanto. Apenas respeito pela dignidade do outro”.
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Há “laços culturais muito débeis com o resto da América Latina que talvez impeçam uma maior empatia”, admite Boisrolin. Houve um tempo em que as coisas eram algo distintas. “Na época de Bolívar, por exemplo, muitos haitianos ajudaram na independência de países do sul da América. O Haiti havia protagonizado, com a condução de Jean-Jacques Dessalines, a primeira revolução antiescravista do mundo. Mas logo predominou uma atitude de menosprezo pelo Haiti nesta parte da América, acaso pelas raízes africanas tão marcadas da nossa cultura”.
Boisrolin se surpreendeu quando, ao assistir há pouco um congresso sobre culturas negras, em Buenos Aires, constatou que décadas atrás intelectuais do sul trocavam informações e conhecimentos com seus pares haitianos. “A intelectualidade haitiana soube brilhar. Muita gente se lembra do movimento da negritude, impulsionado pelo senegalês Leopold Sedar Senghor e pelo martinicano Aimé Cesaire, dois poetas, mas quem pariu primeiro este movimento foi a Revolução Haitiana e logo as obras de pensadores haitianos como René Depestre. O erro do inimigo foi subestimá-los, como os escravocratas subestimaram os escravizados. Quando Napoleão mandou suas tropas ao Haiti, a princípios do século 19, nunca imaginou que iria haver resistência. Os franceses não foram, então, vencidos só no campo de batalha, senão também no campo das ideias, da filosofia e até da epistemologia. Quando eles falavam de ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, as reservavam para seus cidadãos. Nós, ao contrário, falávamos de liberdade ou morte. A filosofia da liberdade plena de Dessalines dizia que uma pessoa não pode ser livre se não tem bem-estar. Enquanto aqui na Argentina, no Uruguai e inclusive no Brasil, ainda hoje muitos sentem-se envergonhados de chamarem-se negros, Dessalines já proclamara, em 1805, que qualquer haitiano, não importa a cor da pele, seria conhecido sob a denominação de negro. Entendeu que o negro era uma categoria colonial, a do africano escravizado, assim como o branco ou o índio eram categorias coloniais”.
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Mas passou o tempo e ao Haiti foi outorgado o pagamento de preço das antigas rebeliões. “Nosso esforço principal é conseguir com que os descendentes daqueles escravizados voltem a acender essa chama – aponta Boisrolin – e isso não será fácil. Foram décadas de apatia e na cabeça de muitos haitianos estão as algemas do colonialismo. Somos um país rico, brutalmente empobrecido e espoliado; não mais um país pobre. É duro fazer projetos de algum tipo quando o sujeito com quem vais trabalhar não comeu ontem, hoje comeu muito pouco e não sabe se amanhã comerá e vê como seus filhos morrem diante dele de doenças curáveis sem que possa fazer nada. Esse é o Haiti de hoje. Um país não à beira do abismo, mas dentro do abismo.
Nota da tradução
As Forças Armadas Brasileiras lideram a composição militar internacional que forma a Minustah, há diversos soldados brasileiros também no Haiti.
Daniel Gatti é jornalista uruguaio e editor do semanário Brecha, de onde este artigo foi retirado.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.