Fim de ciclo petista: um golpe no coração da esquerda latino-americana
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- Raul Zibechi
- 24/03/2016
A crise que afeta o Partido dos Trabalhadores terá repercussão em toda a região latino-americana, já que as forças de esquerda e progressistas sempre se referenciaram em um tipo de “irmão mais velho”, que agora enfrenta o que pode ser sua fase terminal.
Tarso Genro, um dos quadros históricos do PT, e Ministro da Justiça no segundo mandato de Lula, sustenta que o “ciclo que levou o PT ao governo está esgotado”. E adiciona que é muito difícil que tenha chances de permanecer no poder no próximo período, porque estamos diante do “fim de um ciclo econômico, social e político no Brasil”.
Em dias de profunda incerteza e de forte ofensiva mediática e judicial contra o principal partido da esquerda latino-americana, está difícil fazer análises que superem o curtíssimo prazo para vislumbrar o futuro desta força política. Genro defende que o juiz Sérgio Moro, que foi quem ordenou a detenção do ex-presidente Lula no início do mês, se inspira em Carl Schmitt (1888-1985), jurista e filósofo alemão que colaborou com o regime nazista. A lógica com que operou a justiça nesse caso consistiu em “apontar primeiro uma pessoa e depois tentar produzir provas contra ela, o que é um procedimento de exceção às margens da legalidade constitucional, que gera um direito paralelo, uma Constituição paralela”. Todo o sistema judicial está distorcido, disse Genro, incluindo as famosas delações premiadas.
O PT e a América Latina
Em julho de 1990 se reuniram no hotel Danúbio de São Paulo 48 partidos e organizações da América Latina, à convite do PT, com o objetivo de “debater a nova conjuntura internacional pós-queda do muro de Berlim e as consequências da implantação de políticas neoliberais por parte da maioria dos governos da região” (http://forodesaopaulo.org/). A proposta principal girou em torno da construção de uma alternativa popular e democrática ao neoliberalismo. Na mesa daquele primeiro encontro reluzia um brasão do PT e a maioria dos assistentes militava nesse partido. Nesses anos de neoliberalismo feroz, o Partido dos Trabalhadores se converteu no principal referência das esquerdas latino-americanas, o que se acentuaria nos anos seguintes.
Em 1988 foi realizado em Porto Alegre, cidade governada pelo petista Olívio Dutra, a primeira experiência de orçamento participativo não apenas da região, mas do mundo. O processo foi tão impactante que prontamente foi irradiado a outras cidades, entre elas Montevidéu e Rosário (ARG), ao mesmo tempo em que uma dezena de cidades brasileira adotavam a experiência, que também tiveram traduções em outros continentes.
Mas a maior criação do PT foram os fóruns sociais. Com eles a estrela começou a iluminar não só a região, mas o mundo. O primeiro fórum foi convocado pela Associação para a Taxação de Transações Financeiras para Ajuda do Cidadão (Attac) e pelo PT, realizando-se de 25 de dezembro de 2000 a 30 de janeiro de 2001, em Porto Alegre, uma vitrine do que o podia ser um governo dessa força política.
Os seguintes fóruns foram um êxito completo. O terceiro, em 2003, ano em que Lula debutava como presidente, recebeu mais de 100 mil pessoas provenientes de 156 países, organizou 1300 seminários e oficinas e acolheu aos mais importantes pensadores da esquerda mundial: Noam Chomsky, Antonio Negri, John Holloway, Eduardo Galeano, entre muitos outros. Pouco repararam que uma das siglas que apareciam entre os apoiadores era a da Petrobrás.
Em um clima de euforia coletiva, Lula improvisou um discurso: “tenho a nítida noção do quanto nossa vitória representa de esperança não só para o Brasil, mas para toda a esquerda do mundo e sobretudo para a esquerda em nossa América Latina”. Disse estar consciente da “esperança que os socialistas do mundo inteiro depositam no êxito do nosso governo” e adiantou que esperava contribuir “para que outros companheiros ganhem as eleições em outros países do mundo”.
As três experiências que confluíram há apenas uma década em Porto Alegre murcharam: o orçamento participativo se converteu em uma secura burocrática, os fóruns sociais se esvaziaram cooptados pelas grandes ONGs e o governo do PT naufraga na incerteza. Deve recordar-se de que essas três experiências mereceram teses e livros, foram motivo de extensas reflexões no seio de uma esquerda que, uma década e pouco depois da queda do socialismo real, acariciava o retorno aos bons tempos. Apenas o zapatismo se manteve à margem.
Esquerda e Estado de exceção
“Se o Estado de direito já vinha sofrendo das vicissitudes da atual crise política pela inegável conduta parcial da justiça contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres e outras minorias, com a operação Lava Jato a violação do Estado de direito se eleva ao estatuto de estado de exceção judicial. Esse estado se configura pela violação sistemática e politicamente orientada de direitos e garantias individuais garantidos pela Constituição e pelas leis”, escreve o sociólogo Aldo Fornazieri (Jornal GGN, 7 de março de 2016).
Assim como Giorgio Agambem e Hannah Arendt, que defendem que o nazismo foi um ponto de inflexão na utilização da legalidade estatal de exceção para a construção de um regime autoritário, Fornazieri sustenta que no Brasil se instalou uma “ditadura judicial”.
De toda forma, aqueles que defendem Lula e o PT não levaram em consideração pelo menos três questões.
A primeira é que as décadas durante as quais os negros, os pobres e de modo muito particular os habitantes das favelas foram sistematicamente castigados, assassinados e desaparecidos pela Polícia Militar, e tratados como ninguém pela justiça, os dirigentes do PT olharam para o outro lado ou foram cúmplices destes feitos. Um só exemplo. Em fevereiro de 2015, a Polícia Militar de Salvador matou 15 jovens negros e pobres, sendo muito questionada pelos organismos de direitos humanos. O governador Rui Costa, do PT, declarou aos meios de comunicação: “a polícia tem que decidir em cada momento, ter a frieza e a calma necessárias para tomar a decisão acertada. É como o artilheiro na frente do gol que tenta decidir em segundos como vai finalizar. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores vão aplaudir” (Carta Capital, 9-02-15).
Nestes anos de Lula e Dilma a morte violenta de negros disparou quase 40%.
A segunda questão é o que defende Luciana Genro, filha de Tarso e membro da Direção Nacional do PSOL, com base na delação premiada de Delcídio Amaral (senador e ex-chefe da bancada do PT): “É lamentável que um líder político como Lula tenha deixado de ser do povo para se aliar às elites, governar com elas e receber por isso inúmeras comissões e brindes” (Viento Sur, 5 de março).
Ninguém pode negar que Lula e o PT estabeleceram relações carnais com o grande empresariado brasileiro, em particular com as construtoras a quem abriram mercados e defenderam cada vez que enfrentaram problemas, como sucedeu quando a Odebrecht foi expulsa do Equador pelo presidente Rafael Correa.
Finalmente, o PT e o conjunto da esquerda brasileira não aparentam condições de afrontar nem enfrentar o “estado de exceção permanente” que denunciam. Segundo Agambem, “o totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, através do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão resultem não integráveis no sistema político”.*
Este é o calcanhar de Aquiles do lulismo: não tem a força moral necessária para enfrentar a ofensiva das direitas porque não defendeu, quando deveria fazê-lo, as vítimas do mesmo sistema que agora condena.
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Raúl Zibechi é jornalista e cientista político Uruguaio
Traduzido por Raphael Sanz, da Redação
Comentários
Tanto aqui no Brasil quanto em outras paragens a esquerda está sofrendo um sério revés que nao é irreversível a médio e longo prazo.
Temos que aprender a lição: 1) partido político é uma organização coletiva, democrática, não pode ser apropriada pelo projeto político pessoal de um ou mais líderes; 2) partido de esquerda deve buscar a soberania popular, do povo, pelo povo e para o povo; 3) manter o povo fora do partido e confiar em sua adesão pelo mérito de políticas sociais decididas de cima para baixo pela força e carisma do líder máximo, vira populismo alienante, quando o que se quer é participação esclarecida; 4) uma estrutura partidária mais democrática certamente teria buscado realizar mais reformas que hoje fariam obstáculos à sanha golpista da direita, etc.
Tem-se que recomeçar, talvez sem o PT, visto que não há no partido qualquer apetite para auto-crítica e democratização interna. O céo é o limite, mas teremos que querer.
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