Peru: o fujimorismo social
- Detalhes
- Raúl Zibechi
- 01/07/2016
Foram as eleições presidenciais mais acirradas da história recente peruana. Um punhado de votos, e muito menos de um ponto percentual (50,1% a 49,9%) separam os candidatos em pouco menos de 20 milhões de eleitores. Os resultados, acrescentados aos de cinco anos atrás, quando Keiko Fujimori perdeu no segundo turno para Ollanta Humala por menos de três pontos, indicam que o fujimorismo está solidamente assentado na sociedade peruana, em particular nos setores populares. Assim, é provável que, cedo ou tarde, a filha do ditador ocupe a cadeira da Casa de Pizarro.
Nas eleições de 2011, o partido fujimorista Fuerza 2011 havia obtido no primeiro turno apenas 23% dos votos e 37 mandatos, oito pontos a menos que o atual presidente. Nestas eleições logrou, sob o rótulo de Fuerza Popular, quase 40% de votos e 73 mandatos dos 130 que compõem o parlamento, situando-se bem acima das demais forças políticas. A esquerdista Frente Ampla, que levou Veronika Mendoza como candidata, ficou com 20 deputados, e o partido de Pedro Pablo Kuczynski (PPK) com 18. O crescimento do fujimorismo no quinquênio o apresenta como uma força avassalante.
Não será fácil para Kuczynski governar frente à folgada maioria que o fujimorismo conseguiu. Salvo que, como boa parte dos analistas especulam, se registre uma divisão em filas do partido hoje dirigido pela “chinesa”. Algo a mais ainda pode estar acontecendo no fujimorismo se colocada a lupa sobre a atitude de Kenji Fujimori, irmão de Keiko, que ostensivamente não se inclinou a votar pela irmã no segundo turno.
Uma sociedade dividida
Kenji forma parte do setor duro do fujimorismo, alinhado com o patriarca encarcerado. Segundo o analista Nelson Manrique, Fujimori pai mantém tensas relações com sua filha, ao não compartilhar sua estratégia eleitoral moderada, e enviou uma carta exigindo a reincorporação de velhas e inapresentáveis figuras do movimento, ponto que foi rechaçado por Keiko, que se esforça por tomar distância das pesadas heranças familiares.
“Ela teve que recorrer a uma enérgica resposta, alinhando o comando de seu partido, negando-se a por na lista do parlamento os escudeiros de Alberto Fujimori e deixando bastante claro que a persistência de Kenji em autoproclamar-se candidato presidencial para 2021 poderia terminar com sua exclusão do movimento”, destacou Manrique no último dia 7 de junho.
Além dos erros e acertos, foi a própria história do fujimorismo que impediu que a filha pródiga se alçasse com a vitória. Se a candidata pôde, mal ou bem, desgarrar-se midiaticamente de seu pai, se viu envolta em um escândalo ainda maior. O secretário geral do seu partido, Joaquín Ramirez, é investigado por lavagem de dinheiro pelas autoridades peruanas e pela DEA, a agência antinarcóticos dos Estados Unidos.
A casa onde está instalado o quartel-general de sua campanha eleitoral e até mesmo a camionete que Keiko usa para seus deslocamentos são de propriedade de Ramírez, um dos principais financiadores da campanha. Tudo indica que as acusações contra ele golpearam a candidatura de Keiko na semana prévia do segundo turno, durante a qual perdeu a eleição. Outro analista, Mirko Lauer, aponta que “as graves revelações dos meios de comunicação obrigaram Keiko Fujimori a passar para a defensiva” (La República, 7 de junho de 2016).
Houve forças sociais que jogaram forte contra Keiko. Por um lado, o sul do país, que votou massivamente na esquerda. Nessa região (que abarca Cusco, Arequipa, Apurímac, Puno, Moquena e Tacna) Kuczynski não superou os 10% dos votos no primeiro turno, mas a Frente Ampla teve uma boa votação. A opção implícita da maioria da FA peruana por Kuczynski para frear Fujimori fez com que o empresário de sotaque inglês superasse ali os 70% no domingo de eleição. A segunda razão é a votação em Lima, onde Kuczynski triunfou por estreita margem. Keiko havia ganhado no primeiro turno com grande amplitude e se esperava que a capital fosse, uma vez mais, um de seus bastiões. De toda forma, a forte irrupção dos movimentos sociais e da esquerda na capital, com uma enorme marcha de 100 mil pessoas sob o lema “Keiko no va” (Keiko não dá), mostrou que o antifujimorismo tem capacidade de mobilização e de influir nos resultados.
Trata-se de dois setores sociais diferentes. Enquanto o voto do sul é camponês, popular e de esquerda, de gente que rechaça o fujimorismo e vota pela Frente Ampla, em Lima há um voto massivo dividido das classes média e média-alta. É um voto que desconfia do fujimorismo porque teme que uma nova gestão dessa tendência desestabilize o país e abra as portas a governos mais ou menos radicais de esquerda.
Futuro imediato
Uma vez ratificada a vitória de Kuzcynski, começará a dança de acordos e nomes para integrar o gabinete comandado por uma força política que não tem maioria no parlamento, é a segunda em votos e a terceira em mandatos. O novo presidente deverá formar necessariamente um gabinete pluripartidário, mas terá de eleger entre uma aliança com a Frente Ampla ou tentar acordos com o fujimorismo.
A intervenção de Veronika Mendoza dias antes das eleições, chamando a votar por Kuczynski – a título pessoal, já que a Frente Ampla decidiu não se pronunciar – com o argumento de fechar as portas ao fujimorismo teve um efeito que certamente pode induzir o presidente eleito a outorgar a essa força algum ministério. Isso caso a esquerda aceite queimar-se em um governo que será neoliberal e instável.
Em qualquer caso, o futuro imediato do Peru augura mais do mesmo. O quinquênio de Humalla, que se apresentou em seus inícios como uma “mudança popular”, caracterizou-se finalmente por manejar uma política muito similar às dos governos anteriores, por exemplo, fortalecendo a expansão da mineração, o que gerou resistência das comunidades andinas e amazônicas. A resposta do Executivo a essa resistência foi a sistemática declaração do Estado de Exceção e a militarização das regiões conflitivas, com um saldo de dezenas de mortos, centenas de feridos e encarcerados. Só na população de Celerín (Cajamarca) há 300 juízos pendentes e setores da população que rechaçam a multinacional Newmont e seu projeto aurífero Conga.
Muitas comunidades conseguiram frear os empreendimentos transnacionais em uma conjuntura em que baixou o ritmo dos investimentos em mineração pela queda dos preços internacionais. O problema é que não se vislumbra nenhuma alternativa à mineração e à exploração de hidrocarbonetos, já que ninguém propõe modos de desenvolvimento não extrativistas, mas apenas aumento ou redução.
O economista Humberto Campodónico enfatiza os traços peculiares de seu país. “No Peru o Consenso de Washington segue vivo, à diferença de outros países que adotaram políticas distintas do neoliberalismo, ou de Chile e Colômbia, que foram mais pragmáticos. Kuczynski e Keiko Fujimori garantem a continuidade deste modelo econômico. Têm algumas diferenças, mas compartilham a mesma raiz econômica neoliberal”.
Como aponta a diretora da Cooper Acción, Ana Leyva, o empresário mineiro passou à ofensiva contra a regulação ambiental: “desde 2013 os mineradores fazem campanha contra a legislação ambiental porque seria um obstáculo para os investimentos”. O setor conseguiu modificar alguns decretos e então mudaram os padrões de qualidade ambiental para a água destinada ao consumo humano e simplificaram os trâmites para conseguir licenças ambientais.
Enquanto países dependentes da exportação de commodities como a Arábia Saudita e a Argélia se propõem a acender outras velas diante da queda dos preços internacionais, no Peru parece não haver mais ideias além de aprofundar o modelo de mineração. Apesar de que inclusive o Banco Mundial e o Bid recomendam que a economia se oriente no sentido de uma diversificação produtiva, os dois candidatos não mostraram a menor inflexão em perpetuar as políticas econômicas tradicionais e só concebem o país como exportador de matérias primas.
Mais repressão?
Tudo indica que prepara-se um aumento da repressão. Mirtha Vázquez de Grufides, que acompanha a resistência antimineradora, destaca que há uma tendência a considerar o protesto social como ato criminoso. “Antes o bloqueio de vias era um delito menor que correspondia a seis anos, mas agora se considera extorsão e corresponde a 25 anos de prisão”. Vázquez explicou que cada vez se utilizam figuras penais mais severas, como sequestro e associação ilícita para delinquir, para enfrentar as ações dos movimentos sociais.
Na próxima gestão governamental, disse, é mais que provável uma tentativa de “destravar os megaprojetos”, enquanto se propiciaria a “participação das forças armadas no controle da ordem social, ou seja, militarizar os conflitos”. Tratar-se-ia de uma espécie de “Estado de Emergência permanente”, no qual os direitos dos cidadãos se veriam recortados e submetidos à força pública.
Diante de semelhante panorama, um governo com apoios parlamentares raquíticos pode se converter em refém do fujimorismo, que conta desde sempre com excelentes relações com militares e policiais, cujas hierarquias muitas vezes se identificam com o ex-presidente. O continuísmo econômico está garantido. A grande incógnita é se o tecnocrata Kuczynski aprofundará a repressão, abrindo espaços para uma radicalização da esquerda, ou buscará algum tipo de consenso que alivie as pressões sociais.
A poetisa Rocío Silva Santisteban disse sem delongas: “Qualquer dos dois candidatos poderia dar ordens de fogo sobre aquela gente que resista ao extrativismo bloqueando estradas. Além disso o atual presidente Humala deixou pronto todo um arcabouço de normativas que permitem, por um lado, a flexibilidade no uso da força e o gatilho fácil com impunidade, e por outro lado a criminalização do protesto com essas normas de flagrância e sentenças de dois dias a oito anos, assim como a perseguição aos líderes ambientalistas através de fiscais que convertem as Frentes de Defesa locais em associações ilícitas para delinquir (A República, 7 de junho de 2016).
Silva assegura que “teremos mortos durante os próximos cinco anos de protestos sociais, teremos órfãos e viúvas(os)”. Essa certeza, que parece compartilhar uma parte dos peruanos, em particular os camponeses do sul, pode ser a explicação pela amplitude dos movimentos para frear o retorno do fujimorismo, assim como a atitude da candidata da Frente Ampla. Com Fujimori, retorna a obscuridade. Com Kuczynski há, pelo menos, uma mínima esperança que deve ser regada com paciência e firmeza.
Todos contra a “Chinesa”
O movimento Keiko no va teve a virtude de convocar a maior mobilização desde a célebre Marcha de los Cuatro Suyos, em 2000, que contribuiu com o enterro do regime autoritário do Fujimori pai. Algo similar aconteceu na semana anterior ao segundo turno. Um movimento heterogêneo, juvenil, carregado de criatividade e sujeito da denúncia de um dos períodos mais autoritários da história do país, mudou uma vez mais o destino que parecia feito sob medida para a filha do autocrata.
O movimento Keiko no va nasceu nas redes sociais e ali “viralizou”. Foi a forma de denunciar o “narco-Estado” e a corrupção, de forma tão potente que até a imprensa conservadora teve de falar sobre o assunto.
Um dos líderes do movimento, Jayson Day, escreveu em março passado, prévio ao primeiro turno: “a candidata Keiko estava bem, ninguém se metia com ela, os meios de comunicação nunca a mencionavam, e ela se mantinha com uma sólida porcentagem de eleitores nostálgicos das conquistas de seu pai (aqueles que por miopia seletiva nem por um segundo prestam atenção aos crimes que este cometeu nem no dano quase irreparável – seguimos hoje vendo sequelas, tão vivas como antes – que a institucionalidade produziu). E, de pronto, hoje, o antifujimorismo despertou com a mesma intensidade do segundo turno de 2011: para Keiko, o ataque de nervos se adiantou” (La República, 19 de março de 2016).
É o outro Peru. O que deve recordar a sociedade que Alberto Fujimori foi condenado por delitos de lesa humanidade e que sua filha se propõe a colocá-lo em liberdade, ainda que formalmente haja negado esta eventualidade. Nas marchas que se sucederam em todo o país, os grupos defensores dos direitos humanos jogaram um papel importante na recuperação da memória. Também as feministas tiveram uma participação muito ativa durante a campanha, recordando as esterilizações forçadas de indígenas praticadas durante o regime de Fujimori. “Somos filhas das mulheres que você não conseguiu esterilizar”, avisavam ao mundo.
Leia também:
Raúl Zibechi é jornalista e cientista político uruguaio.
Texto originalmente publicado no jornal La Brecha, de Montevideo.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.
Comentários
Assine o RSS dos comentários