Colômbia: as violências silenciadas das grandes cidades
- Detalhes
- Iván García, de Medellín
- 23/08/2016
Desde 1988, cerca de 5 mil pessoas foram assassinadas pelos esquadrões da morte na Colômbia. “Aqui, de vez em quando alguém rouba algo. Então nós chamamos os vizinhos e a nossa turma para discutimos. ‘Bom, temos de caçar este rato’. Decidimos a hora e o dia. Sempre de noite, quando não há ninguém. Colocamos os capuzes e começamos a limpar”.
Este trecho é de um dos testemunhos do informe Limpeza Social: uma violência mal nomeada, do Centro Nacional de Memória Histórica da Colômbia. O documento aponta que desde 1988 ao menos 4.928 pessoas foram assassinadas ou desaparecidas por esquadrões da morte nos bairros populares das principais cidades.
“Precisamos dizer que é extermínio social, e não limpeza. Chamar de limpeza seria, de algum modo, legitimar esse fato tão perverso”, critica Carlos Mario Perea, autor da pesquisa. As vítimas são em sua maioria indigentes, prostitutas, homossexuais e jovens cujo delito havia sido fumar maconha ou realizar algum pequeno furto. São os famigerados “gamines”, ou gente de mal (o antagonista do cidadão de bem), como rezam os panfletos ameaçantes que aparecem dia sim, dia também, nas ruas das comunidades.
O documento assinala diferentes vitimáveis. Os grupos e “combos” de delinquentes que repartem o domínio das vizinhanças mais humildes. Os atores armados, sobretudo os paramilitares e, agora, os grupos criminais (“bacrim, corruptela de bandas criminales”) herdeiros de suas práticas. Também os corpos estatais de segurança e, por último, os próprios vizinhos e comerciantes do bairro. “É comum a combinação de atores. Ou seja, os vizinhos decidem que se deve desaparecer um grupo de rapazes que se mantêm fumando maconha em uma praça, por exemplo, e a polícia executa”, assegura Perea. “Ou se arma uma operação conjunta de esquadrões de vizinhos e da polícia”.
A causa desta violência vai mais além do conflito que golpeia a Colômbia há décadas. “Não é um motivo político, mas social. Regular a convivência. Introduzir uma ordem nos bairros populares. Tampouco se metem na vida privada: por exemplo se um marido bate na esposa. A vida privada não é o alvo desta prática, mas o espaço público e local”, explica o autor da pesquisa.
Assim, como explicar a participação de atores armados nestas operações de extermínio? “Trata-se de demonstrar o domínio sobre o território”, afirma Luis Guillermo Guerrero, diretor geral do Centro de Pesquisa e Educação Popular (Cinep), que apoiou a pesquisa. “Eles estão dizendo: a rua é minha, e é tão minha que olha o que eu faço. Isso cria um ambiente de terror e medo que é efetivo. Paramilitares e guerrilha fizeram o mesmo”.
As operações de extermínio foram ofuscadas, segundo o informe, pelos anos de guerra, massacres e assassinatos. “Há muita literatura sobre a violência, mas nela a cidade fica ausente por haver ficado de fora dos cenários de guerra”, afirma Perea.
O autor da pesquisa censura o governo que “não está fazendo absolutamente nada” para resolver o problema. Segundo ele, é necessário que o Estado se pronuncie sobre esta violência e crie uma política pública com medidas de proteção especial para a população afetada. Uma delas: tipificar o delito de extermínio social no Código Penal. Até agora isso não ocorreu.
“E precisamos de pedagogia” – conclui Perea. “Esta violência põe sobre a mesa um problema ético que está acima da paz. Nesta violência social não participam essas grandes esferas que financiaram os paramilitares, mas as pessoas humildes, dos bairros. É um problema ético muito profundo”.
Outras mortes silenciadas
No último dia 6 de abril o Ministro do Interior, Juan Fernando Cristo, alertou publicamente que as estatísticas indicavam que nos 12 meses que antecederam a data um defensor dos direitos humanos era assassinado por semana no país.
“Foi um gesto significativo. Pela primeira vez o governo usou a cifra correta, dada a gravidade da situação”, sustenta Carlos Guevara, porta-voz de Somos Defensores, plataforma que agrega diversos grupos de defensores dos direitos humanos colombianos.
Segundo dados desta plataforma de associações, em 2015 foram produzidas 682 agressões contra ativistas, 63 delas culminadas em assassinatos. Já o primeiro trimestre deste ano registrou 113 agressões, das quais 19 terminaram em homicídios.
No contexto dos atuais diálogos de paz com as FARC, diminuíram os atentados, as ameaças e também as prisões. “Mas se mantêm os homicídios de defensores de direitos humanos, que foram os primeiros a vestir a camiseta da paz e pedir uma saída diplomática do conflito. São eles que começaram a trabalhar pela paz nas regiões e a fazer as primeiras pedagogias pela paz. E por isso também começaram a ser estigmatizados, perseguidos e mortos”, disse Guevara.
Como em muitos outros conflitos, na Colômbia a violência mudou. Já não há grandes massacres, nem grandes operações militares. Mas existe, sim, uma violência cada vez mais focalizada, especialmente a que chega dos grupos herdeiros dos antigos paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC).
“A reta final dos acordos de paz propiciou um reordenamento territorial. A expectativa de que as FARC se desmobilizem, e também que não estejam ativas, faz com que esses grupos se posicionem, ocupem territórios e zonas disputadas onde há rotas de tráfico de cocaína e plantações de coca. E também projetos ilegais de mineração, sobretudo de ouro”, explica Camilo González, presidente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz).
A ocupação de novos espaços por esses grupos, acaba levando também a inevitáveis choques com as comunidades que ali habitam, que resistem a remoções e à espoliação de seus territórios. Choques que se traduzem em assassinatos, principalmente de líderes ambientalistas que lutam contra a extração ilegal de recursos e contra as violações dos direitos humanos.
Segundo o estudo Situação de direitos humanos e direito internacional humanitário na Colômbia, do Cinep, os principais responsáveis pelas violações em 2015 foram os grupos paramilitares, com 1064 atentados; seguidos pela polícia, com 572; o exército com 292; e a força pública com 24. A gravidade dos números levou o Executivo, tal e como reconhece Carlos Guevara, a se apropriar mais do assunto. “O governo se assustou e se deu conta de que o risco existe. E esse risco pode fazer cambalear o processo de paz”, disse.
Entre as medidas adotadas está a criação de equipamentos públicos de alto nível integrados pela fiscalização e pela polícia. “E nesses equipamentos também contam conosco. Pela primeira vez se deram conta de que os dados que comprovamos não são especulação da sociedade civil”.
Neoparamilitares
O aumento dos assassinatos, as ameaças constantes em zonas de mineração e episódios como o “paro armado” – espécie de toque de recolher - decretado no mês passado pelo clã Úsuga ou Urabeños, um dos grupos criminosos surgidos na desmobilização das AUC, levaram muitos meios de comunicação e analistas a falar de um fortalecimento do paramilitarismo na Colômbia.
Segundo Luis Guillermo Guerrero, diretor do Cinep, estaríamos falando de um “neoparamilitarismo”. Guerrero explica que a desmobilização das AUC levada a cabo sob o governo de Álvaro Uribe Vélez requereu um trabalho “muito mais profundo” do que foi feito. “Foi produzida uma evolução do paramilitarismo até outro tipo, chegou a um nível de expressões confusas. Saiu do controle, como um Franskstein”, sustenta. Essas “expressões confusas” são as chamadas “bacrim”, grupos delinquentes cujo primeiro objetivo não é político, como foi o das AUC, mas o enriquecimento ilícito através do narcotráfico, da extorsão e da extração de recursos naturais, entre outros.
Continuam tendo vínculos com poderes políticos, mas a nível regional, e não em âmbito nacional. Além de não dependerem do poder político para sua existência.
Carlos Guevara não crê que esses novos grupos sejam agora especialmente mais fortes do que há uns anos. “Só estão mostrando os dentes para fazer sua força ser notada durante o processo de paz, ocupar novos territórios ou buscar uma negociação que lhes permita ter certa impunidade”. Guerrero pensa que o governo deveria ocupar “o lugar onde estes sujeitos estão se entrincheirando. É um espaço importante, com muito dinheiro da mineração ilegal, de plantações de coca e produção de droga”.
Toques finais e dúvidas
Em 15 de agosto, domingo, delegados das FARC e do governo de Juan Manuel Santos concluíram o desenho das zonas onde se concentrarão os guerrilheiros antes de sua desmobilização definitiva, uma vez firmada a paz.
Uns 150 delegados do governo e 33 guerrilheiros, vindos diretamente de Havana, onde as negociações ocorrem desde 2012, visitaram 22 zonas de 15 departamentos do país. “Nas visitas realizadas, as equipes técnicas compostas por engenheiros, cartógrafos e topógrafos, com o apoio de tecnologia via satélite, coletaram mais de 800 imagens e aerofotografias, assim como informações necessárias para que a Mesa de Conversações em Havana tome as decisões finais” sobre a criação de zonas de desmobilização.
Paralelamente, seguem ajustando as medidas de segurança exigidas pelas FARC para evitar que uma vez desmobilizados fiquem à mercê dos grupos paramilitares e sejam massacrados, como sucedeu anos atrás. Também está sendo dado o toque final aos acordos que estabelecem a forma pela qual as FARC se transformarão em partido político.
As duas partes estão conscientes de que o processo se resolve no período posterior às assinaturas do armistício, e fundamentalmente em como se encara o problema da terra – que deu início ao conflito há mais de meio século. Um primeiro obstáculo a superar será o plebiscito que o presidente Santos convocará para que a população se pronuncie sobre os acordos.
Duas sondagens estabelecem que o “Não”, promovido entre outros pelo ex-presidente Álvaro Uribe, poderia terminar ganhador da consulta. Outras duas sondagens preveem o triunfo do “Sim”, mas uma delas foi encomendada pelo governo. Uribe se opõe, entre outros pontos contidos no acordo, a que a anistia beneficie boa parte dos guerrilheiros e a que as FARC se incorporem à vida política colombiana.
Leia também:
Iván García é jornalista independente espanhol.
Publicado em espanhol no jornal La Brecha, de Montevideo.
Traduzido por Raphael Sanz, da Redação.