O extrativismo como projeto de sociedade
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- Raúl Zibechi
- 25/10/2016
À medida que o extrativismo e os processos políticos assentados neste modelo começam a mostrar rachaduras, pela abrupta queda dos preços das commodities, estamos em melhores condições para compreender suas características profundas e as limitações das análises anteriores. Uma delas, e devemos assumir a autocrítica em primeira pessoa, consiste em ter mirado primordialmente o aspecto ambiental e depredador da natureza deste modelo de conversão de bens comuns em mercadorias.
Agora, podemos dar um passo a mais, algo que já fizeram os zapatistas há mais de uma década, quando definiram este modelo como quarta guerra mundial. O outro erro de vulto foi considerar o extrativismo como modelo econômico, seguindo o conceito de acumulação por desapropriação de David Harvey. Em suma, ao erro de ter centrado as críticas – de modo quase exclusivo – na questão ambiental, somou-se o do economicismo, de que adoecemos muitos dos formados no marxismo.
O capitalismo não é uma economia, mas um tipo de sociedade (ou formação social), apesar de existir, evidentemente, uma economia capitalista. Com o extrativismo sucede algo similar. Se a economia capitalista é acumulação por extração de mais-valia (reprodução ampliada do capital), a sociedade capitalista produziu a separação da esfera econômica da política. A economia extrativista – de conquista, roubo e pilhagem – é apenas um aspecto de uma sociedade extrativista, ou uma formação social extrativista, que é a característica do capitalismo na fase em que o capital financeiro é dominante.
Para além dos termos, interessa sublinhar que vivemos numa sociedade cuja cultura dominante é de apropriação e roubo. Por que enfatizar a existência, hoje, de uma cultura extrativista – diferente da que foi hegemônica em outros períodos do capitalismo? Porque nos ajuda a compreender em que tipo de mundo vivemos e as características do modelo contra o qual nos rebelamos.
Para compreender melhor em que consiste essa cultura, seria necessário compará-la com a cultura hegemônica nos períodos anteriores. Por exemplo, durante o predomínio da indústria e do Estado desenvolvimentista. Naquela época, os trabalhadores manuais da indústria sentiam orgulho de seu oficio por serem produtores de riqueza social (embora uma parte substancial fosse apropriada pelo patrão). Este orgulho tomava forma de consciência de classe quando se identificavam os interesses próprios por meio da resistência aos exploradores. Não era o orgulho tolo de quem acredita ser superior, mas o produto do lugar que os operários ocupavam na sociedade; lugar que não haviam herdado, mas construído por meio de uma luta longa e paciente.
Entre meados do século 19 e as primeiras décadas do 20, os operários – e às vezes as operárias – formavam a si mesmos à luz de velas, logo após rígidas jornadas de 12 horas de trabalho, criando espaços próprios de encontro e ócio (escolas, teatros, bibliotecas, cooperativas, sindicatos). Instituíram formas de vida com base na ajuda mútua, criaram maravilhas como a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro, além de uma larga série de insurreições urbanas. Tinham motivos para ter a autoestima elevada.
Na vida cotidiana, a cultura operária girava em torno do trabalho, da austeridade por convicção, da poupança como norma da vida e da solidariedade como religião. O macacão de trabalho e o capacete eram sinais de identidade que circulavam em seus bairros, uma vez que não queriam vestir-se como os patrões. Tudo em suas vidas, desde a moradia até os hábitos, diferenciava-os dos exploradores. Essa cultura tinha traços opressores, como bem sabem as mulheres e os filhos dos operários industriais. Mas era uma cultura própria, baseada no autocultivo de si mesmos, não na imitação de cima.
Esta longa explanação busca chegar a um ponto central: a cultura operária podia conectar com a emancipação. A cultura extrativista vai a contrapelo. Embora portasse elementos opressivos, aquela cultura continha aspectos valiosos, potencialmente anticapitalistas.
A cultura extrativista é o resultado da mutação gerada pelo neoliberalismo, montado no capital financeiro. O trabalho não tem o menor valor positivo; este lugar é ocupado agora pela pilhagem e suas faces auxiliares, o consumismo e a ostentação. Onde antes havia o orgulho por fazer, a cultura gira agora em torno da ostentação de marcas e modas. Enquanto os operários condenavam o roubo, por razões estritamente éticas, hoje se festeja a rapina, mesmo que as vítimas sejam vizinhos, amigos e até a família.
Nem toda a sociedade nutre esta forma de viver, é claro. Mas são maneiras de viver que ganharam terreno em sociedades onde os jovens não têm emprego digno nem lugar, nem a possibilidade de construir um ofício trabalhando, nem de conseguir uma mínima ascensão social após anos de esforço. Não há nem memória daquele passado, o que é mais pernicioso, por violar a dignidade.
O extrativismo evaporou os sujeitos, porque na chamada “produção” eles já não estão presentes. Inclusive na esfera da reprodução da vida, o sistema esforça-se por mercantilizar tudo — do nascimento à alimentação, arremetendo contra o papel central das mulheres nesses espaços. Aí está a importância das microrresistências: os bairros, os territórios populares, as praças, as feiras de troca, as festas de rua, os espaços coletivos de qualquer tipo. Elas alimentam as grandes rebeliões.
Se é certo que a cultura hegemônica do extrativismo obstrui os processos emancipatórios, a organização e as resistências, estamos diante da necessidade imperiosa de trabalhar o contrapeso dessa cultura. O cimento do novo mundo está aí, na vida cotidiana. Por isso, o empenho nos trabalhos coletivos, em todas as resistências. Esses trabalhos moldam uma cultura nova, que resgata o melhor da cultura operária e tenta aplacar as opressões.
Raul Zibechi é jornalista uruguaio.
Traduzido por Cauê Seignemartin Ameni, do Outras Palavras.