Venezuela: esta impossível coabitação
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- Pablo Pozzolo
- 01/11/2016
Na semana passada, o parlamento unicameral venezuelano, controlado pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), núcleo da oposição, decidiu dar início ao juízo político de Nicolás Maduro. Seu objetivo, diz em resolução, é determinar se o presidente “tem responsabilidade nas graves violações à Constituição e aos direitos humanos” que haviam se seguido à suspensão do referendo revocatório de seu mandato, que a oposição estava tentando convocar. Maduro foi intimado a, na terça-feira, 25 de outubro, dar explicações e defender-se.
O que se seguirá já se sabe: a Assembleia Nacional vai declarar o presidente culpado de tudo o que é acusado e Maduro não assistirá à sessão parlamentar. O Tribunal Supremo de Justiça anulará o que a Assembleia Nacional resolva. Já em agosto, a Sala Constitucional do TSJ havia anunciado que toda decisão emanada do parlamento seria declarada “inconstitucional” enquanto conservarem os três deputados cuja eleição havia sido declarada nula.
Em paralelo, Maduro recorreu ao Conselho de Defesa da Nação (Codena), um órgão de consulta do Executivo em “assuntos relativos à defesa integral da nação, sua soberania e a integridade de seu espaço geográfico”, e que reúne representantes da vice-presidência Executiva, do Tribunal Supremo de Justiça, do Conselho Moral, Ministério de Defesa e Assembleia Nacional. A reunião, que se concretizou na quarta-feira (26 de outubro) estava convocada para debater sobre o “golpe parlamentar da Assembleia Nacional e o plano de diálogo para a paz” apresentado pelo governo. Como também era previsível, foram todos, menos um: Henry Ramos Allup, único porta-voz da atual oposição nesse organismo. Maduro aproveitou para fustigá-lo: “lamento muito que o presidente da Assembleia Nacional continue em desacato à Constituição e não queira dialogar”, disse. Ramos Allup respondeu que não iria “atrapalhar com sua presença” o “teatro montado por Maduro”.
As escaramuças da semana passada devem seguir nesta e nas próximas, enquanto se desenha mais que timidamente a possibilidade de que se iniciem negociações. Do lado das escaramuças: a greve nacional de 12 horas convocada pela oposição para a última sexta-feira, a fim de seguir pressionando pela convocação do referendo revocatório. Dois dias antes houve massivas marchas em Caracas e outras cidades com o mesmo objetivo, e haverá outra ao Palácio Miraflores, a sede do Executivo, na próxima quinta-feira, 3 de novembro.
“Estão bêbados, desesperados e receberam a instrução do norte de acabar com a revolução bolivariana a qualquer custo. Barack Obama se vai da Casa Branca e quer destruir a Venezuela antes disso”, disse Maduro na última quarta, durante uma contramanifestação convocada pelo Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV). “Querem tomar a Venezuela. Chamo ao trabalho, e com o trabalho a derrotar aqueles que querem causar dano a nossa pátria, aqueles que querem nos encher de violência, aqueles que querem levar a pátria a uma desestabilização”, acrescentou.
Pela TV?
Do lado das negociações, a única que aparece no horizonte é a possibilidade de um encontro convocado pelo mediador designado pelo papa Francisco, o arcebispo argentino Emil Paul Tscherrig. A convocatória, também apoiada pela Unasul e prevista para ser realizada na Ilha Margarita, divide a oposição. O ex-candidato presidencial Henrique Capriles e Ramos Allup anunciaram na semana passada que não irão, que a oposição não foi consultada por ninguém para saber se estava ou não de acordo em reunir-se com representantes do governo e que se inteiraram da conversa em Ilha Margarita “pela TV”.
“Não estão dadas as condições para o diálogo”, se pronunciou também o Voluntad Popular, partido do ultradireitista preso Leopoldo López. Jesús Torrealba, secretário executivo da MUD, foi muito menos taxativo. As conversas convocadas pelo representante do Papa Francisco, mediador acordado pelas duas partes, apontam para “definir uma saída pacífica da crise política que vive o país, e a todas elas devem ir os representantes da oposição”, disse.
Torrealba, o único dirigente da Mesa que se reuniu até agora com o arcebispo de Buenos Aires, declarou também que a MUD estava ao passo de se projetar um diálogo com o governo na Ilha Margarita, desmentindo que seus dirigentes tivessem sabido das conversações “pela TV”. “Ir ao diálogo não significa concordar”, afirmou também. Ramos Allup e Capriles pensam, por seu lado, que se o “encontro de diálogo” acontecer, terá de fixar condições “inegociáveis” ao governo. A primeira, disse o ex-candidato presidencial, é a realização do referendo revocatório. Em uma declaração anterior, a MUD havia fixado seus objetivos em caso de que se iniciasse um processo de diálogo. Eram quatro: “respeito ao direito ao voto, liberdade para os presos políticos e retorno dos exilados, atenção às vítimas da crise humanitária e respeito à autonomia dos poderes”.
Divisões
Em uma análise no que considera as divergências exibidas pela oposição venezuelana, o cientista político argentino Juan Manuel Karg apontou que há nela “duas tendências nítidas, em uma situação similar à vivida em 2014: um setor dialoguista e outro abertamente rupturista, que exige ‘esquentar as ruas novamente’”.
A diferença em relação a dois anos atrás, diz, é que Capriles se situa agora na última opção, depois de ter feito parte do setor “dialoguista”. O ex-candidato presidencial parece atualmente “apontar a uma linha mais próxima do confronto, como a que comandou em 2013, após o triunfo de Maduro” nas eleições.
A proposta “interopositora”, escreve o analista, “longe de ficar enterrada com a vitória da MUD em dezembro, segue sobre a mesa e se ampliou. Uns culpam os outros de que Maduro siga em Miraflores”. Karg estima que “os setores mais radicais”, à cabeça dos quais se situa Lilian Tintori (esposa de Leopoldo López) e a deputada Corina Machado, “buscam uma insurreição antichavista”. Ainda que o novo contexto regional – com a chegada ao poder de Mauricio Macri na Argentina e Michel Temer no Brasil, a guinada conservadora que se advertiria em outros países e a pressão da OEA – poderia em parte favorecer essa estratégia, a situação interna na Venezuela a descartaria, aponta Karg. E em seu apoio cita vários fatores.
O primeiro seria o peso que continua tendo o “imaginário chavista na identidade de grande parte do povo venezuelano, ainda em condições de adversidade”. A Datanálisis, uma consultoria vinculada à oposição, “mostra que ao menos cinco de cada dez venezuelanos seguem reivindicando o legado de Chávez”.
O segundo fator seria uma certa recuperação econômica. “A progressiva subida dos preços internacionais do petróleo e uma melhora em indicadores como o risco país parecem demonstrar que é possível uma recuperação, logo após meses de profundas complexidades. Sobre o primeiro ponto, o recente giro de Maduro por países da OPEP, e fora dela, deixa um piso de acordos que faria prever o crescimento de expectativas para o próximo ano”, estima Karg.
Outra agência de pesquisas citada pelo argentino, Hinterlaces, a qual se vê ligada ao governo, observou certo efeito positivo de algumas das medidas decididas pelo Executivo. Entre elas estaria a ação dos Conselhos Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), criados em abril passado, “que se constituíram em um by-pass – tal como fazia Hugo Chávez com as Misiones no que diz respeito ao próprio Estado – frente à distribuição privada de alimentos, onde ainda hoje segue trilhando o açambarcamento”, diz Karg.
O terceiro fator que impediria qualquer possibilidade de êxito de uma opção violenta seria a hegemonia chavista sobre as forças armadas.
Mas outro é o ponto de vista de analistas atrelados à oposição, que ainda sem apostar numa “insurreição antichavista” alentam a saída de Maduro. Margarita López Maya, doutora em ciências sociais pela Universidade Central da Venezuela e integrante do Comitê Diretor de Clacso, sustenta que do que mais adoece o governo atualmente é da “falta de povo. Esse é seu calcanhar de Aquiles”, diz. (“Para o chavismo é tudo ou nada”, Prodavinci, 22 de outubro de 2016).
“Governar sem povo é possível”, aponto, mas “em sua deriva autoritária”, que o levou a transitar pelo caminho de “um regime híbrido a uma ditadura franca”. O governismo está ficando cada vez mais sem respaldo no plano nacional e internacional, ao passo que a crise econômica e social se agudiza, apesar dos anúncios do governo.
Se Maduro ainda não foi retirado é, sobretudo, porque não houve uma aproximação entre a MUD e o “chavismo dissidente”, e porque a própria MUD não resolveu suas divisões, pensa. E menciona igualmente certa anomia social e política. “A cidadania, por sua parte, está avassalada por tantos problemas cotidianos que parecem se agravar dia após dia. Também está reduzida a seus espaços privados por uma violência social que transborda nas ruas e não permite uma participação massiva nos assuntos públicos. Também é certo que a cultura rentista nos individualizou ao extremo e cada qual se atrincheira nessa bolsa CLAP, nesse diplominha do filho, nesse emprego público, dos que o ministro Ricardo Molina (de Transporte e Obras Públicas) ameaça despojar-nos se exteriorizamos nossos desejos de uma mudança política de modelo e elite”.
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Pablo Pozzolo escreve para o jornal La Brecha, de Montevideo, onde o artigo foi publicado em espanhol.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.