Existe ou não perigo real e imediato de golpe reacionário na Venezuela?
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- Valério Arcary
- 07/08/2017
É possível que estas linhas cheguem com atraso, pois os acontecimentos desenvolvem-se com uma velocidade por vezes vertiginosa. Escrevo isto na quarta-feira, 30 de agosto, e os destinatários não lerão isto antes de sexta-feira, 2 de setembro. Apesar deste risco, considero meu dever escrever o que se segue. A insurreição de Kornílov representa uma viragem totalmente inesperada (inesperada pelo momento e pela forma) e incrivelmente brusca dos acontecimentos. Como qualquer viragem brusca ela exige uma revisão e uma modificação da tática. E, como em qualquer revisão, é preciso ser arquiprudente para não cair em falta de princípios (…) Em que consiste então a modificação da nossa táctica depois da insurreição de Kornílov? Em que modificamos a forma da nossa luta contra Kerenski? Sem debilitar em nada a hostilidade para com ele, sem retirar uma só palavra dita contra ele, sem renunciar à tarefa do derrubamento de Kerenski, dizemos: é preciso ter em conta o momento; não vamos derrubar Kerenski agora; nós agora abordamos de outra maneira a tarefa da luta contra ele, a saber: explicando ao povo (que luta contra Kornílov), a fraqueza e as hesitações de Kerenski. Também anteriormente fazíamos isto. Mas, agora isto tornou-se o principal: nisto consiste a mudança. A mudança consiste além disto em que agora o principal é o reforço da agitação por uma espécie de “reivindicações parciais” a Kerenski – prende Miliukov, arma os operários de Petrogrado, chama as tropas de Cronstadt, de Víborg e de Helsingfors a Petrogrado, dissolve a Duma de Estado, prende Rodzianko, legaliza a entrega das terras dos latifundiários aos camponeses, introduz o controle operário sobre o pão e sobre as fábricas etc. etc. E devemos apresentar estas reivindicações não apenas a Kerenski, não tanto a Kerenski como aos operários, soldados e camponeses, entusiasmados pelo curso da luta contra Kornílov (1).
Vladimir Ilitch Ulianov, aliás, Lenin
Dois esclarecimentos prudentes sobre a Venezuela. Primeiro: a questão central da análise sobre a Venezuela parece ser o reconhecimento do perigo real e iminente de um golpe ou não. A política tem sempre os seus tempos. Quem está de verdade na ofensiva, e quem está na defensiva? Todas as informações disponíveis confirmam que o governo Maduro estava na defensiva e, por isso, convocou as eleições para a Constituinte. Não há razões para concluir que já conseguiu inverter a relação social de forças.
A estratégia “nem/nem” permanece válida, evidentemente, porque significa a luta pela construção de um terceiro campo: o campo da revolução social. Mas a tática “nem/nem” parece ter perdido o prazo de validade com a iminência do perigo do um cerco imperialista que cria condições para uma tentativa de golpe. Um posicionamento estratégico em uma linha “Nem Maduro, nem MUD”, ou seja, “nem, nem”, não deveria se desdobrar em uma tática “nem/nem” permanente e indefinida.
Sobretudo tendo ocorrido um giro na situação como me parece que aconteceu, observando de longe e sem conhecer muito a realidade no terreno, Maduro não merece apoio político algum. Mas a luta contra o golpe passou a ser central. Denunciar o golpe como o maior perigo não é o mesmo que apoiar Maduro.
A situação seria muito melhor, evidentemente, se uma oposição de esquerda tivesse conquistado maior peso na classe trabalhadora. A tendência que prevaleceu de, no mínimo, insuficiente delimitação com o chavismo teve consequências.
Segundo: governos são definidos, coloquialmente, como de esquerda, centro-esquerda, centro-direita, ou direita, mas estas caracterizações são ligeiras, portanto, superficiais. Têm sentido limitado, quase instrumental, porque são didáticos.
Em linguagem marxista devem ser definidos a partir do lugar que ocupam no sistema internacional de Estados, considerando uma análise de classe do bloco político-social que sustenta o seu projeto, e a forma institucional do regime em que estão inseridos.
O conceito de “governo independente”, em um sistema internacional de Estados que merece mais do que nunca o nome de ordem imperialista, tem utilidade para compreender o tipo de relação que mantém com os centros de poder no mundo. Governos independentes são raros, excepcionais e, portanto, instáveis.
Dizendo as coisas como são: o governo de Maduro é um governo burguês, apoiado em uma fração burguesa minoritária em formação, a “boliburguesia”. Não me parece muito polêmico, a não ser para alguém que tenha excessivas ilusões na retórica sobre o “socialismo do século 21” que, depois de quase vinte anos no poder, os herdeiros do chavismo no poder já demonstraram que não têm qualquer pretensão de ir além do capitalismo, ainda que com forte regulação estatal.
Maduro se apoia em um regime bonapartista sui generis (ou especial, porque em um país dependente na periferia) sustentado, crescentemente, pelas Forças Armadas. Mas não vejo razões para haver muitas dúvidas de que é um governo independente. Independente de quem? De Washington, Londres, Paris, Berlim e Tóquio. Dos imperialismos que governam. Pode não ser tão independente quanto seria um governo socialista dos trabalhadores, mas não é um vassalo semicolonial como o governo no poder em Brasília e Buenos Aires. Não sou otimista agora, e nunca tive expectativas com o chavismo.
Todavia, sua derrubada pela oposição ultrarreacionária seria uma catástrofe política e social para os trabalhadores e o povo da Venezuela. Uma catástrofe ainda maior que a permanência de Maduro? Sim, exatamente. Muito maior. Uma vitória da contrarrevolução exigiria, provavelmente, o intervalo de pelo menos uma geração para se poder voltar a pensar em uma revolução na Venezuela.
Os golpes na atual situação internacional não têm a mesma forma que nos anos 60 e 70. Não precisam ser regados com banhos de sangue como o de Pinochet no Chile em 1973. Porque na Venezuela, ou no Brasil no ano passado, não existe perigo real e imediato de uma revolução social anticapitalista.
O capital não está ameaçado. A propriedade privada não está ameaçada. Mas há boas razões para pensar que o que viria depois de um golpe na Venezuela faria o governo Temer parecer um governo moderado de contrarreformas. E, não nos enganemos, Temer é o governo mais reacionário desde o fim da ditadura.
Nota:
1) Escrito em 30 de agosto (12 de setembro) de 1917. Publicado pela primeira vez em 7 de novembro de 1920, no nº 250 do Pravda. Obras Completas de V. I. Lenine, 5ª ed. em russo, t. 34, pp. 119-121.
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Valério Arcary é professor aposentado do IF-SP e militante do Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista (MAIS).
Retirado de Esquerda Online.