Honduras, de golpe em golpe
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- 06/12/2017
Nasralla conclama a população a continuar lutando. Policiais recusam reprimir protestos.
O ano de 2002 foi decisivo para a América Latina. Naquele então, os Estados Unidos decidiram usar a velha receita que reiteradamente vinham aplicando no continente sempre que alguma coisa saía do seu controle: o golpe armado. O país escolhido foi a Venezuela, onde Hugo Chávez empreendia uma luta popular e anticapitalista. Tudo aconteceu como sempre, a mídia comercial preparou as massas, parte do exército sublevou, a igreja abençoou e meia dúzia de empresários tomou o poder. Mas, ao contrário dos resultados esperados, os venezuelanos saíram do script. Soldados e jovens oficiais do exército ficaram ao lado de Chávez, a população desceu, armada, de todos os cantos do país, rumo a Miraflores, as emissoras comunitárias informaram o povo e o golpe foi debelado. Chávez voltou pela mão do exército leal e seguiu sua jornada anticapitalista. Virou uma ameaça constante e um inimigo a ser destruído a qualquer custo.
O império começou a se mover nas beiradas, buscando conter o avanço chavista, que se dava a partir de ações concretas de unificação da Pátria Grande. O primeiro passo foi tomar o Haiti, onde um líder aliado ao movimento popular estava no poder. Usando os velhos métodos de desestabilização os EUA foram minando o governo até que em fevereiro de 2004 militares estadunidenses sequestram o presidente Jean Aristide e entregam o país às forças da ONU, desgraçadamente comandadas pelo Brasil. Quebrava-se uma perna do Caribe, visto que Aristide se acercava de Chávez. Assim, com a tomada da ilha pelos soldados aliados dos EUA, o império assumia o controle de um espaço estratégico, bem na frente da Venezuela, ao alcance dos mísseis.
Ainda assim, o bolivarianismo ia tomando espaços, levando longe o sonho de Bolívar e Artigas de uma pátria unida. Foi a vez de intervir na América Central. Lá, na pequena Honduras, um tradicional representante da elite local girava seu leme para as propostas de Chávez. Mel Zelaya, então presidente, finalmente preocupava-se com a população e aliava-se à Chávez para garantir melhorias na vida das gentes. Os EUA sabiam que um golpe às antigas podia não vingar, como já havia passado na Venezuela.
Assim, decidiu mudar a tática e passou a aplicar o chamado “golpe brando”, no qual não usava o recurso dos tanques, mas os mecanismos da própria “democracia”. Zelaya queria fazer um plebiscito para que o povo decidisse sobre as normas das novas eleições. Foi aí que entrou o poder judiciário. E, alegando a quebra de normas constitucionais, emitiu ordem de prisão contra Zelaya. Este foi preso em casa, em julho de 2009, e levado para fora do país, ainda de pijama. Ficou conhecido como um “golpe judiciário”.
O presidente foi deposto, sem choro nem vela, e a partir daí, mesmo com o mundo inteiro se colocando contra o golpe, abriu-se a porteira da nova forma de intervenção. Veríamos um golpe similar no Paraguai em 2012, com o parlamento nacional destituindo o presidente em um processo que durou menos de cinco horas, sem qualquer direito à defesa, e depois em 2016, no Brasil, quando um Congresso de maioria comprovadamente corrupta impediu a presidenta Dilma Rousseff de seguir governando. Tudo dentro da “lei e da ordem”, em processo que seriam considerados surreais até por Kafka.
O golpe judiciário efetivado em Honduras devolveu o poder às forças conservadoras de sempre, aliadas dos Estados Unidos, que passaram a destruir, fisicamente, todos os possíveis empecilhos. Os assassinatos de jornalistas e de lideranças sociais e populares passaram a fazer parte do cotidiano do país. Pouco tempo depois os golpistas chamaram eleições presidenciais, mas a esquerda e as forças progressistas se recusaram a participar do processo, visivelmente fraudulento. Ninguém iria respaldar os golpistas. As eleições aconteceram e o mundo todo reconheceu o novo governo, apesar da ausência de oposição numa eleição marcadamente viciada. O governo que se seguiu aprofundou a repressão e o país seguiu vivendo sob a bota do golpe.
Em 2013 nova eleição presidencial contaria com as forças de esquerda e progressistas mais organizadas. Elas participam do processo. A candidata de oposição com mais chance de vencer era Xiomara Castro, esposa de Mel, o presidente que fora deposto em 2009. A campanha é massiva e forte. Mas, a vitória fica com o candidato do golpe, Juan Orlando Hernández, numa votação fortemente militarizada, onde os casos de coação e as irregularidades foram visíveis. Xiomara denuncia fraude, mas os governos mundiais mais uma vez respaldam o golpe. Nova onda de protestos percorreu o país, com assassinatos e desaparições. A oposição é esmagada outra vez.
Ainda assim, o pequeno país da América Central não sucumbiu. Ao longo de todo o mandato de Hernández, as forças populares seguiram lutando, ainda que submetidas a uma profunda e impiedosa repressão.
Agora, em 2017, no processo eleitoral, a Aliança Contra o Golpe visivelmente ancorava a preferência popular. Depois de oito anos de extrema violência contra a população, o governo golpista já não conseguia mais esconder sua cara. A vitória de Salvador Nasralla era dada como certa, ainda que a população soubesse muito bem o quanto seria difícil quebrar a estrutura do Estado golpista. E os hondurenhos foram às urnas sabendo que a fraude era um fantasma bem visível.
Quando se apuraram as urnas dos principais colégios eleitorais, onde se concentravam os votos, a votação de Nasralla foi avassaladora. O TSE chegou a se manifestar dizendo que as urnas restantes não poderiam virar o jogo. Mas, a partir daí a apuração começou a ficar muito lenta e misteriosamente os votos para Hernández começaram a cair. O candidato do golpe passou à frente e a população saiu às ruas denunciando fraude. A repressão recrudesceu. O governo declarou Estado de Exceção e baixou toque de recolher. Ninguém atendeu. De novo, as ruas foram tomadas, com marchas pacíficas misturadas a protestos violentos. Saques às lojas foram registrados e tudo foi atribuído aos “opositores”. O país entrou em convulsão outra vez.
Ontem o TSE deu por encerrada as eleições, com a vitória de Juan Hernández. Mas os observadores internacionais se manifestaram dizendo que o processo de contagem dos votos foi muito irregular, frágil e bastante obscuro, com urnas chegando aos locais de contagem abertas e incompletas. O fato é que as tais urnas que acabaram dando a vitória à Hernández podem ter sido fraudadas, visto que as irregularidades eram visíveis. Os olheiros da ONU recomendam a recontagem dos votos com as respectivas atas.
A população insiste em não aceitar o resultado e ontem até mesmo a força de repressão da polícia nacional, o Grupo de Comandos Especiais (COBRA), divulgou que não irá para a rua lutar contra o povo, se declarou em greve, e ainda conclamou a todos os policiais que se unam e não permitam a morte dos irmãos hondurenhos.
A incerteza sobre o que vai passar é grande. Caso o TSE insista em manter o resultado, mesmo em meio a todas essas denúncias, as ruas não devem se acalmar. São oito anos sob golpe, violência e assassinatos. E, para os hondurenhos, já basta. A esperança é de que o mundo se levante em defesa da democracia. Mas, como sempre, isso pode não acontecer. Afinal, quem governa Honduras agora, com braço forte, é aliado dos EUA, e com aliado dos EUA ninguém se mete.
Agora, imaginem se isso fosse na Venezuela? Ah, aí viriam os porta-aviões dos valentes mariners norte-americanos salvaguardar a “democracia”.
Honduras vive um golpe, desde 2009. Mas, Honduras não se rende. A luta segue.
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Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos, de onde o artigo foi retirado.
Elaine Tavares