Correio da Cidadania

A fissura de um novo Alianza PAIS no Equador

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“Quero inaugurar o governo mais limpo da história do Equador! Quero erradicar completamente a corrupção”. Com esta declaração, logo após a confirmação de sua vitória com 51% dos votos válidos no segundo turno, Lenin Moreno, ex-vice-presidente de Rafael Correa, já tentava amenizar os ânimos do lado derrotado e afastar sua imagem à de seu antecessor. Horas antes, o banqueiro e tradicional opositor Guillermo Lasso, da aliança CREO-SUMA, discursava como novo governante em rede nacional, baseado nos resultados de pesquisas de boca de urna.

A expectativa das forças conservadoras em todo o continente era grande. Após um grande sucesso em 2016, com a vitória de Maurício Macri na Argentina, a primeira derrota de Evo Morales, na Bolívia, em referendo que recusou sua recandidatura – hoje já contornada por seu partido através de meios jurídicos -, a tomada do poder à força no Brasil, além da vitória da oposição na Assembleia Nacional venezuelana, ainda em dezembro de 2015, naquele momento parecia ter chegado a vez dos equatorianos também seguirem os rumos guiados pela direita.

A pequena margem da derrota no início de abril, porém, levou Lasso a falar em fraude e pedir recontagem de votos, causando protestos violentos por todo o país. Por duas semanas, o ex-candidato liderou uma campanha para deslegitimar as instituições locais até a recontagem de cerca de um milhão de votos, transmitida ao vivo, que ratificou o resultado e ainda lhe tirou 439 votos, enquanto o candidato governista ganhou mais 1594, em um total de quase 10 milhões.

No dia seguinte, o banqueiro assume o papel de opositor, mas ainda sem reconhecer a derrota. “Será um mandatário sem autêntico mandato... que quer exercer o poder sem legitimidade”, afirmou, aumentando a instabilidade em um país que antes dos 10 anos de correísmo teve oito presidentes em 13 anos. O próprio Correa superou uma fracassada tentativa de golpe em 2010, sendo resgatado pelo exército em uma intensa troca de tiros com a polícia grevista. O cenário, então, parecia propício para uma queda, com contornos ainda mais evidentes devido às semelhanças com o processo vivido no Brasil após as eleições de 2014.

Em maio, Moreno assumiu o poder, eleito com o discurso de levar adiante a “Revolução Cidadã”, apoiado por Rafael Correa durante toda a campanha, mas prometendo aumentar o diálogo com as diversas oposições do país, inclusive de esquerda. “Era tanta polarização, que as esquerdas se juntaram com as direitas e com o centro votando com Lasso”, comenta Santiago Basape, cientista político da FLACSO (Faculdade Latino-Americana em Ciências Sociais). “Mas não era como posição ideológica, e sim pelo valor que pensaram estar acima, de terminar com o correísmo ao custo que fosse”.

Os apoios em período eleitoral, entretanto, foram bastante controversos nestes setores e tema de muito debate. “Uma esquerda que se alia com a direita para fazer oposição a Correa, saindo em espaços públicos com as caras mais tradicionais e conservadoras do Equador, que sempre estiveram no poder, é uma esquerda que não sabe como reagir e não tem nível para ser oposição”, opina o ativista socioambiental Eduardo Pichilingue, participante dos primeiros anos de governo Correa. “Mas essa polarização é responsabilidade do Correa como pessoa, quem traduz tudo a branco e preto. ‘Ou está comigo ou é absolutamente contra, ou está de acordo com essa medida ou é um atrasa-povo’. Isso gerou enorme polarização e não há meio termo mais”, completa.

Para se livrar do problema, Moreno apostou em uma recomposição de suas bases e se aproximou de diversos adversários históricos de Correa, em uma campanha chamada de “Diálogo Nacional”. No início, o ex-presidente foi viver na Bélgica com a família, de onde passou a atacar seu sucessor por Twitter e Facebook, se tornando a principal oposição ao novo governo, a que atribui a pecha de “traidor da Revolução Cidadã”. Com o chamado de seus fiéis seguidores, tanto nas redes sociais como na Assembleia Nacional (74 dos 137 parlamentares são governistas, divididos no meio do fogo amigo), voltou ao país, onde pretende requentar todo seu capital político.

“Todas as grandes conquistas da última década não só estão ameaçadas, como também desqualificadas constantemente pelo governo. Lamentavelmente, ele impôs uma ruptura em relação ao projeto político vencedor nas eleições”, reclama a parlamentar Gabriela Rivadeneira, atual secretária executiva do PAIS. “Quer apresentar este grande acordo com os adversários históricos da Revolução Cidadã, com o establishment, com a imprensa corporativa, as câmaras empresariais e a direita derrotada nas urnas com o disfarce de uma grande aliança com a sociedade”, completa.

A briga aumentou quando Moreno destituiu seu então vice-presidente Jorge Glass, grande aliado de Correa, acusado na Lava Jato de envolvimento com a Odebrecht, o que o levou à prisão em outubro. “O setor dominante da coalizão ao redor de Correa era de empresários dependentes de contratos com o Estado, sobretudo de infraestrutura. Fizeram obras caríssimas, aeroportos, estradas, hidrelétricas, universidades, edifícios governamentais... E o cabeça dessa turma toda era Glass. Por isso é ele quem está na mira”, explica Pablo Ospina, docente de Estudos Sociais e Globais na Universidade Andina Simón Bolívar, de Quito. Apesar disso, o ex-presidente e seus aliados mantêm constante defesa a Glass, que seria responsável pelo alto desenvolvimento do país na última década.

Apesar da crítica e suspeitas de corrupção neste movimento que encabeçou o desenvolvimentismo equatoriano, Ospina também se preocupa com a nova coalizão, ainda incerta, que poderá reger o governo de Moreno. “Agora, pode ser que voltem os banqueiros e os exportadores, que eram a coalizão do neoliberalismo, mas que no correísmo já não eram dominantes”, explica, exemplificando a sinuca em que se encontra a esquerda local.

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No Equador, como na vizinhança, o fim de ciclo dos governos progressistas deixa um rastro de confusão política. Foto: Divulgação.

Consulta Popular

O conflito direto com Correa ficou ainda mais evidente com a convocação de uma Consulta Popular, marcada para o dia 4 de fevereiro e divulgada como um pacto democrático com a sociedade, dando satisfações às demandas de vários setores críticos ao governo. Todos os partidos oposicionistas manifestaram amplo apoio e garantiram fazer campanha pela vitória do ‘Sim’ em todas as perguntas, enquanto o correísmo marcou a maior oposição. “Esta consulta é nossa e vamos defendê-la, porque são os mesmos temas que prometemos consultar durante a campanha”, declarou o derrotado Guillermo Lasso.

São sete perguntas que pretendem: acabar com a possibilidade de reeleição indefinida (enterrando a candidatura de Rafael Correa em 2021); revogar o mandato dos atuais membros do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS); revogar a Lei de Mais-Valia, de 2016, que taxa lucros extraordinários do mercado imobiliário; proibir de forma vitalícia a relação com a vida pública de qualquer político, funcionário ou empresa condenado por corrupção; proibir incondicionalmente atividades mineiras em zonas intangíveis ou urbanas e áreas protegidas; aumentar em 50 mil hectares a área intangível do Parque Nacional Yasuní-ITT, na Amazônia, e diminuir a área de exploração petroleira na região dos atuais 1,3 mil hectares para 300 hectares; e acabar com a prescrição de crimes sexuais contra a infância e adolescência.

A tendência é de uma só resposta entre ‘Sim’ e ‘Não’, sem muito debate em cada questão. Assim, a oposição correísta vê alta possibilidade de derrota. “A consulta na realidade busca legitimar a virada do governo, sua adoção da agenda e discurso da direita neoliberal. O objetivo central, pactuado com os grupos de poder, é de impedir um retorno de Rafael Correa à presidência”, garante Rivadeneira. “Tirando as perguntas da reeleição, do CPCCS e do combate à especulação, exigência do setor imobiliário, todo o resto é recheio, um gancho para passar o que na verdade lhes importam”.

Com uma base política cada vez mais rachada, Moreno se apoia em uma aprovação nacional de 70%, divulgada em dezembro pela CEDATOS, para seguir suas políticas. “É pouco provável que quem não votou por ele tenha mudado tão rapidamente suas preferências políticas. Creio que apoiam o que está fazendo se opondo a Correa, que nem em seus melhores momentos chegou a tanto”, acredita Basape. “Mas isso se dilui com o tempo. Após a consulta, os partidos de oposição seguramente vão se distanciar, pois não terão mais compromisso com ele”.

Além do fim da reeleição, a intervenção no CPCCS também era uma cobrança opositora. O órgão de sete conselheiros foi criado na constituinte de 2008 com a função de indicar os representantes dos principais órgãos judiciais de controle e regulação do Estado. O intuito era acabar com as negociatas políticas antes praticadas, mas a pouca transparência e a relação de alguns integrantes com o governo levantou acusações de cooptação do Estado em grande parte da população.

Com a revogação dos cargos atuais, Moreno pretende indicar nomes para eleição da Assembleia Nacional a um período de transição em que julgarão as ações dos atuais fiscais, propondo eleições gerais em dois anos. A ideia, porém, pode não deixar o órgão afastado da política, como propagado, mas apenas trocar seu poder. “Por votação popular vai ter que eleger sete pessoas em nível nacional. Implica recursos para fazer campanha em todo o país. Quem tem esses recursos? Os partidos”, diz Basape.

No campo econômico, o governo se alinha ao mercado imobiliário e tenta revogar a Lei de Mais-valia. Criada com a ideia de conter a especulação imobiliária, ela aplica um imposto de 75% sobre o lucro extraordinário, ou seja, todo o lucro acima de 7,52% anual, do qual subtrai o valor de 24 salários mínimos (atualmente US$ 9 mil) para o cálculo. A ideia gerou muitos protestos em amplos setores. “Muitos não sabem bem o que é uma política de distribuição de renda. Às vezes as coisas têm que ser combatidas só porque vieram do Correa. Ela precisa de ajustes, mas a revogação é total alinhamento à direita”, opina Pichilingue.

O governo se apoia no argumento do setor imobiliário que alega diminuição nas obras e aumento do desemprego, há anos mantendo uma média de 5%. “Não me oponho à Lei. O problema é que ela é paga por compradores dispersos na sociedade, inclusive de setores populares, que constroem e reformam muitas casas com gastos informais não declarados (que seriam descontados do contabilizado como lucro)”, explica Ospina. “Portanto, é uma medida que afeta um setor social muito amplo”. A CUT (Central Unitária dos Trabalhadores) apoiou a criação da Lei em 2015 e agora também apoia a revogação.

A única atitude de Moreno apoiada por seus dissidentes neste chamado à Consulta Popular é o fato de ter segurado a pressão oposicionista e não ter pedido a revogação da Lei de Comunicação de 2013, que diminuiu a força de veículos privados e pluralizou o setor, embora tenha deixado rastros de censura à liberdade de imprensa e forte espionagem ao jornalismo investigativo, com altas multas e impedimento de vários conteúdos críticos ao governo. Moreno diz ser a favor da regulação, mas pretende torná-la “menos punitiva” através de um Projeto de Lei futuro.

Outro setor atendido foi o dos movimentos sociais atacados na era de Correa, com a inclusão das duas questões ambientais, embora ambas sejam vistas com ressalvas, sem resolver o problema de fato. Enquanto a exploração de minério avança em áreas não protegidas, a pergunta do Parque Yasuni-ITT não atende à exigência de acabar com toda e qualquer exploração petroleira nesta área.

“Já há cerca de 800 hectares afetados. Vai parar a exploração? Ou querem diminuir o aumento dos projetos futuros, já focados na zona intangível onde há comunidades indígenas isoladas?”, questiona Pedro Bermeo, porta-voz da organização Yasunidos. “Dá a impressão de ser uma pergunta maliciosa e demagógica, sem resolver o problema, destas práticas que se vendem como governo verde, mas que acabam caindo nas mesmas lógicas capitalistas e extrativistas”.

O mesmo acontece no tema da exploração mineira, uma das principais alternativas econômicas do país para compensar a queda do preço do petróleo, gerando um avanço incontrolável da exploração em diversas áreas não protegidas. “Para que uma área seja declarada protegida, há vários aspectos técnicos requeridos pelo Ministério do Ambiente e aí entram conflitos de interesse”, explica Diana Mocoso, ativista socioambiental de Cuenca e integrante do Projeto Sayman, em Canoa, litoral norte. “São vários os casos em que não valorizam a questão técnica, mas sim alguma ordem ‘superior’”, completa.

Esquerdas anticorreístas

Durante o governo correísta, baseado na exploração de petróleo e minério como principais fontes de financiamento, os movimentos socioambientais foram os que causaram os principais conflitos com o Estado que questionam seu espectro político. “Esquerda é um termo que muda muito com o tempo. Nos últimos 25 anos ela é representada pela oposição ao neoliberalismo e Correa de fato entra nesse campo. Ele é um democrata cristão que considera que o mercado tem falhas muito graves ao não considerar investimentos humanos de desenvolvimento”, conta Ospina.

Apesar disso, suas posições sempre enérgicas nem sempre coincidiram com as ideias de suas bases, conflitando não só no tema desenvolvimentista, como também em seus princípios religiosos. Em 2013, por exemplo, ameaçou renunciar ao cargo se a proposta de flexibilização do aborto, levantada por parlamentares do PAIS, fosse aprovada pelo legislativo. "Eu jamais aprovarei a descriminalização do aborto, além do que já consta nas leis atuais. A Constituição defende a vida desde a concepção”, disse à época. Ao final, o tema foi arquivado e três parlamentares do PAIS foram punidas.

Em outro caso emblemático, Correa desafiou publicamente o grupo Yasunidos a recolher um milhão de assinaturas para sustentar a reivindicação de defesa integral do Parque Yasuní-ITT, contra a exploração de petróleo, o que passou a ser mobilizado em todo o país, enfrentando diversos obstáculos criados pelo oficialismo. “O papel tinha que ter formato e peso específico, a caneta ser azul, não podia ter manchas, dobras ou rasgos e as assinaturas não podiam passar o espaço delimitado, tinham que estar impecáveis. Imagina que se coletam assinaturas comunidades adentro, era uma missão quase impossível”, diz Pichilingue. “Depois, ainda houve momentos que chegaram militares e levaram caixas, sem dizer para onde iam”.

Deslegitimados pela militância pró-governo e sendo alvos de constantes ataques pelas redes sociais, mais tarde os ativistas provariam suas acusações, quando vazaram documentos secretos da Senain (Secretaria Nacional de Inteligência), mostrando um alto nível de vigilância estatal, com foco principal nestes movimentos socioambientais. Os informes incluem nomes completos de dezenas de ativistas e seus familiares, números de telefone, relações com organizações sociais e políticas, datas, horários e locais de encontros etc. Durante a campanha, detalharam precisamente locais de coleta de assinaturas, pessoas responsáveis, conteúdos de ligações telefônicas, fontes e valores de financiamento, entre outras informações.

“Ligaram algumas vezes no meu celular dizendo que estavam nos vigiando, que iam ganhar da gente, entre outras coisas”, diz Mayah Franco, uma das ativistas do grupo. “Nas redes, então, as ameaças eram muito violentas, de robôs ou militantes pagos”, completa. Quando as ações saíam das redes e iam às ruas, o conflito aumentava. “Chegamos a um nível em que alguns militantes do Alianza PAIS iam atrás e batiam em quem era visto fazendo pichação contra o governo”, diz Pichilingue.

Em 2013, os informes sugeriam cancelamento de vistos de estrangeiros ativistas ambientais para diminuir os protestos durante um leilão de petróleo. No mesmo ano, um decreto presidencial impôs restrições às organizações sociais no país e, em dezembro, o Ministério do Ambiente cancelou os registros da Fundação Pachamama, uma das mais fortes organizações nas ruas à época, baseado nas novas regras.

“Representantes desta entidade protagonizaram um protesto violento, atentando contra a ordem pública e a integridade física dos participantes da abertura de ofertas para 13 blocos petroleiros”, afirmou comunicado oficial. Nesta época, alguns estrangeiros foram deportados, inclusive a franco-brasileira Manuela Picq, esposa de Carlos Pérez Guartambel, presidente da confederação indígena Ecuarunari.

Estes e outros casos podem ter sido um os principais motivos para a queda da popularidade do ex-presidente nos últimos anos, embora o balanço geral possa explicar sua vitória eleitoral. “Não se pode simplesmente anular tudo o que fez Correa. Há que reconhecer que muitas coisas foram positivas para grande parte da população. Antes dele, tudo era Quito e Guayaquil e o resto do país não existia”, diz Pichilingue. “O problema é o fato de ele não reconhecer que há outras esquerdas, com o discurso de que qualquer um que não esteja de acordo com o governo é de direita”.

De olho nesse campo, em seu primeiro ano de mandato, o novo governo tenta elevar sua imagem democrática. Em outubro, Moreno revogou os decretos de Correa contestados pelos movimentos sociais e criou uma nova regulação, facilitando seus processos burocráticos. Ainda, de forma simbólica, as manifestações em Quito hoje chegam à Praça Grande, em frente ao Palácio de Carandolet, o que era impensável anteriormente, quando a Polícia bloqueava o acesso a quarteirões de distância, com incontáveis casos de forte repressão.

A expectativa de flexibilizações estatais é importante para um país que, apesar de quase eleger um presidente banqueiro, mostra manter forte tendência progressista na sociedade. “É positivo o que está passando”, acredita Ospina. “Não porque o governo vá à esquerda, porque não vai, mas vai perseguir menos, com menos ferramentas para ser autoritário. Não só por caráter, mas poder real. É um governo de centro, em que normalmente grupos organizados têm mais margem para avançar pautas”, completa, apesar dos riscos gerados pelas possíveis novas alianças que só o tempo vai demonstrar.


Fernando Moura é jornalista.

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