Os avatares do reformismo em Cuba
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- Haroldo Dilla Alfonso
- 23/02/2018
Até os anos 90, o decorrer pós-revolucionário de Cuba era lento e pastoso. Era excessivamente oficialista para ser interessante, exceto quando, desde o próprio oficialismo, se produzia alguma purga política que enchesse a ilha de rumores e a elite de temores. A política era representada desde uma ótica binária, como a luta prometeica de dois campos irreconciliáveis. Por um lado, estava o bando “bom” – revolucionário, socialista – composto por patriotas virtuosos e alinhado sem fissuras com o Estado, o Partido Comunista e o que se costumava chamar de “liderança histórica”. Do outro lado estava o bando “mal” – contrarrevolucionário e pecaminoso – e a “máfia de Miami”. Para os primeiros se destinava o privilégio de participar em um projeto histórico estrategicamente irrefutável, ainda que taticamente aperfeiçoável. Para os segundos, só havia dois destinos possíveis: o cárcere ou o exílio.
Isso começou a mudar quando a queda do Muro de Berlim levou com ela não só a base econômica do modelo cubano – uma enorme afluência de subsídios soviéticos – mas também as referencias ideológicas de um mundo melhor. Buscando a superação de uma espantosa crise que eufemisticamente se denominou “Período Especial”, o governo se viu obrigado a limitar seus controles no campo da economia e permitir a entrada no cassino de três jogadores incômodos: o mercado como provedor de recursos, internet como canal informativo e comunicacional e os emigrados sustentadores das economias familiares e do sempre malfadado setor externo.
Depois, iniciado o século 21, a biologia tirou do cenário político quem tinha sido durante meio século seu ator mais importante: Fidel Castro. Finalmente, em 2015, um presidente liberal norte-americano, Barack Obama, decidiu que a confrontação era estéril e iniciou uma aproximação diplomática de dois anos que mostrou à sociedade cubana a outra cara de uma relação e colocou a elite em uma posição particularmente incômoda.
Obviamente, este processo implicou numa redistribuição de cotas de poder. E, consequentemente, a sociedade começou a incubar um processo de diversificação ideológica e cultural com a emergência de novos campos e tendências políticas. O limitado espaço público cubano é agora transitado por numerosas identidades existenciais que advogam se constituir como identidades políticas (étnico-culturais, de gênero, locais etc.), ao mesmo tempo que se torcem os campos prexistentes para dar lugar a manifestações da topografia clássica de esquerdas e direitas.
Mas estes campos larvados se desenvolvem no meio de um sistema totalitário em debandada – que cada vez pede menos o coração e mais a obediência aos súditos – e são reféns da mesquinharia binária lealdade/deslealdade política a respeito do governo. Em consequência, estes campos políticos tendem a se manifestar de maneira errática, sem capacidades para articular discursos estruturantes da própria realidade que querem modificar. As ideologias não se distinguem pela sistematicidade de suas ideias acumuladas mas por sua capacidade de interpelar a sociedade e de conformar subjetividades. Se esta última capacidade não existe, as ideologias permanecem larvadas e sujeitas a evoluções narcisistas. E isso as impede de amadurecer como interpelações ideológicas – acerca do existente, o bom, o possível – que informem a sociedade cubana e permitam escolher democraticamente as pautas de seu futuro.
Os novos atores
Podemos dizer que o signo mais interessante da sociologia política cubana atual é o surgimento de novos campos e atores políticos mais complexos e sofisticados. Tais atores podem ser compreendidos de muitas maneiras, por exemplo por seus posicionamentos ideológicas sistêmicos (direita, esquerda...) ou setoriais (feminista, etnicista, ambientalista...), mas é indubitável que o que orienta todos – não poderia ser diferente em um sistema com forte vocação totalitária – o grau de alinhamento com o Partido/Estado. Seguindo essa lógica, de maneira muito esquemática, podem se identificar três grandes campos definidos pelos seus posicionamentos frente ao governo: o oficialismo, a oposição e o reformismo.
O campo oficialista, por exemplo, experimentou um notável sangramento e em seu interior são distinguíveis posições diferentes que de alguma forma recordam sua reestruturação de 2009, quando militares, tecnocratas e burocratas partidários cerraram fileiras para conservar a unidade da elite em uma convivência cheia de sobressaltos. Em um sistema político fechado como o cubano, tais discrepâncias não afloram ao público, mas se manifestam nos contínuos ziguezagues da política sob o comando de Raúl Castro, cujo lema “sem pressa, mas sem pausa” revela o acordo da elite em temas gerais, assim como as dificuldades crescentes em conseguir consensos naqueles detalhes que animam as políticas em curso.
O campo opositor também experimentou uma diversificação em vários sentidos. Por exemplo, no plano ideológico, dando guarida a grupos socialdemocratas progressistas, tanto como a franjas direitistas que assumem o “trumpismo” como virtude política. Mas também em seus métodos, de maneira que se nos anos 90 grupos adotavam formas organizativas partidárias, na atualidade se reúnem ativistas culturais, blogueiros, esboços de partidos, redes associativas identitárias etc.
Mas provavelmente o dado mais novidadeiro do cenário político insular é a emergência de um campo reformista que em outros lugares denominou “crítico consentido” para explicar duas características. A primeira que, diferentemente da oposição radical, esses são grupos que não questionam a legitimidade da ordem estabelecida e tratam sempre de encontrar espaços para mostrar sua concordância com o governismo em todos os temas possíveis. Porém, ao contrário deste último, o reformismo é critico a respeito da realidade sistêmica em aspectos diversos, em ocasiões com uma lucidez intelectual que não alcança nenhum outro campo. Esta ambiguidade o coloca em um dilema ético permanente, ao mesmo tempo em que cria um dilema operativo para o governo sobre como controlar o diapasão crítico sem recorrer a atos repressivos politicamente custosos.
Este tipo de espaço político/intelectual foi muito comum dos anos 90 pra cá. Quando, entre 1990 e 96, o país viveu um período de tolerância por omissão, emergiram numerosos grupos e organizações desta natureza, a mais relevante das quais foi o Centro de Estudos sobre a América, vítima de repressão do Partido Comunista em 1996. Mas o que se distingue tais organizações das atuais é que, nos anos 90, a imensa maioria delas emergiu como instâncias estatais ou partidárias controladas. Do outro lado, as atuais são plataformas autônomas, limitadas pela repressão simbólica (que seus dirigentes assumem), mas sem filiações instituições. Dado que tampouco há espaços civis para elas, operam num limbo legal.
Atualmente, o espaço crítico consentido mais relevante é a plataforma Cuba Possível. Esta teve como antecedente o Espaço Laical, uma revista crítica emergente da Igreja Católica, em uma conjuntura em que esta ensaiava um novo pacto de convivência com o governo cubano. Após a ruptura com a hierarquia eclesiástica, Cuba possível começou a articular uma sorte de rede que atraiu algumas figuras intelectuais mais proeminentes no país, em uns casos veteranos reciclados dos distantes tempos da revista Pensamento Crítico e do Centro de Estudos da América, em outros, jovens que ainda acreditavam nos reis magos quando os primeiros discutiam a necessidade de renovar o socialismo.
Cuba Possível resume a tragédia maior da política cubana. Ainda que esta plataforma nunca tenha sido reprimida diretamente – como ocorre com os opositores – sempre vive sob a sombra da repressão simbólica. A classe política faz o possível por mantê-la distante e calada, mesmo quando nada indique haver um afã subversivo nela. Em muitas questões, seus integrantes concordam com o Estado, e quando o fazem tratam por todos os meios de ressaltar tais concordâncias.
Entre eles há intelectuais de calibre que vale a pena escutar, que não aspiram uma mudança política radical, mas um aggiornamento sistêmico. Não gritam, sussurram. Assumi-los e abrir-lhes espaço de comunicação seria uma vantagem desde muitos pontos de vista para o próprio governo, incluindo o toque de estética política que sem dúvida necessita. Mas o sistema é duro, ainda que ao mesmo tempo frágil, e tem tanto horror à crítica como desprezo pelos intelectuais.
Um exemplo desta repressão simbólica foi a recente ofensiva política de um grupo de apparátchiks tornados escribas oficiosos no espaço blogueiro. Eles confeccionaram uma argumentação acusatória contra Cuba Possível, a qual acusam de “centrista”, um recurso metonímico renitente, que permite ao governo identificar-se com a esquerda e lê toda posição política como uma guinada à direita. Confeccionaram um folheto denominado “Centrismo em Cuba: outro contorcionismo rumo ao capitalismo”, e que constitui uma das peças políticas mais proativas em uma ilha onde a política não se caracteriza pela elegância. Permitam-me citar – pela eloquência – um parágrafo da blogosfera oficial. Ali se definem o centrismo em Cuba como uma autêntica “contrarrevolução”, “organizada com recursos materiais e humanos, (que) tem fortalezas, dinâmicas fluidas e funcionamento articulado, assim como amplas conexões diplomáticas.
Seus integrantes se repetem e retratam entre os convidados de importantes visitantes a Cuba sempre provenientes de países aliados dos Estados Unidos ou mesmo Washington. Diferencia-se da contrarrevolução tradicional, porque segundo a política obamista precisa que seus empregados interatuem com a institucionalidade revolucionária, seus meios de comunicação e sistemas acadêmicos. Para isso se declaram de “esquerda” e nacionalistas, mas sempre apartados e contra o Estado Cubano, o Partido Comunista e sua tradição “anti-imperialista”.
Sem dúvidas, este campo reformista consentido é – na presente conjuntura – a variável mais interessante do sistema político cubano. Se o Estado cubano não pode conviver com ela não é porque Cuba Possível seja sediciosa, mas porque a elite cubana só admite o assentimento e alinhamento sem fissuras. Esta requer paz social imprescindível para reproduzir seu projeto de poder autoritário e sua própria metamorfose burguesa. Enfrentada com uma sociedade que busca seu lugar sob o sol, esta elite se revolve numa crise orgânica que parece sem fim. “Um terreno – recordando uma frase de Gramsci – onde se verificam os fenômenos mórbidos mais diversos”.
Haroldo Dilla Alfonso é sociólogo e historiador cubano.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania, e retirado da revista Nueva Sociedad.