Correio da Cidadania

Bolívia vive conflito regional por reserva de gás

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Manifestação na cidade de Sucre, capital constitucional da Bolívia. Foto: Solange Leonor Zalles.

A Bolívia passou durante os últimos quinze dias por intensas manifestações pela disputa do campo de gás Incahuasi. No departamento de Chuquisaca, por exemplo, além de grandes marchas, as mobilizações incluíram greve geral e mesmo greve de fome promovida por alguns professores da Universidad Mayor, Real y Pontificia San Francisco Xavier de Chuquisaca (USFX), a segunda mais antiga da América do Sul. Os manifestantes também foram em caravana até a região de Machareti, próximo à divisa com o departamento de Santa Cruz, onde foram duramente reprimidos pela polícia.

As principais reservas de gás do país andino se localizam na divisa entre os departamentos de Santa Cruz, Tarija e Chuquisaca. No entanto, as fronteiras interdepartamentais são ainda imprecisas e frequentemente geram disputas. Um estudo internacional realizado recentemente definiu aproximadamente 24% dos royalties do campo Margarita ao departamento de Chuquisaca. Já outro estudo similar determinou que 100% do campo Incahuasi está no território do rico departamento de Santa Cruz.

A divulgação deste resultado foi o estopim para o conflito mais recente, pois em Chuquisaca defende-se que este estudo se baseia em limites históricos que nunca foram consenso entre os departamentos. Esta medida afetaria decididamente o departamento de Chuquisaca, que apesar de abrigar a histórica cidade de Sucre, capital constitucional da Bolívia, segue sendo um dos mais pobres da Bolívia. De maneira que os royalties sobre a extração de gás são decisivos para a economia regional.

Para contrapor-se ao estudo internacional, o Coordenador do Curso de História da USFX, professor Guillermo Calvo, organizará em atendimento ao comitê de mobilização da universidade, uma equipe de pesquisadores do curso para realizar um estudo detalhado com dados históricos e geográficos que comprovem os limites territoriais de Chuquisaca. A professora Solange Leonor Zalles, também do curso de História, destaca, por exemplo, a origem etimológica do nome Incahuasi (Casa do Inca), para destacar a relação histórica da região com Chuquisaca, território de fronteira do Império Inca, em detrimento de Santa Cruz, região ocupada pelos indígenas guarani.

De fato, uma vez mais o sentimento regionalista levanta massas que abarcam todas as classes e as contrapõem a outras regiões da Bolívia e ao Estado central. Este regionalismo tem uma longa tradição na Bolívia e se apoia em aspectos que vão desde a geografia, a história colonial e a própria exploração dos recursos naturais.

Enquanto isto, o governo plurinacional de Evo Morales tem buscado compensar o departamento com uma proposta de milionários investimentos na exploração de hidrocarbonetos, sem conseguir convencer efetivamente a população. A hipótese de futuros e eventuais royalties é de fato muito menos atrativa que a participação na segunda reserva de gás mais importante da América do Sul, como é o campo de Incahuasi. O governo calcula qual solução diminuiria um custo político inevitável.

Nesta terça-feira (15/05), em Cabildo aberto (assembleia comunitária), a população de Chuquisaca aprovou dez encaminhamentos, decidindo suspender a greve geral, as marchas, bloqueios e greve de fome depois de duas semanas de intensas mobilizações. Entre as principais decisões estão: a defesa de um processo de negociação fronteiriço que respeite um consenso entre Chuquisaca e Santa Cruz, a criação de um Conselho Departamental de Hidrocarbonetos e Fronteiras, a exigência da renúncia imediata de autoridades consideradas traidoras pelos manifestantes, como o governador Esteban Urquizu, o prefeito Iván Arciénega, dentre outros e, sobretudo, a defesa de uma nacionalização efetiva sobre o controle dos recursos hidrocarboníferos da Bolívia. Ainda assim, o povo se considera em “estado de emergência e vigília permanente até que se consiga a efetivação das exigências do Cabildo”.

Para além das mobilizações e disputas interdepartamentais, a pergunta que fica é: de quem é o campo Incahuasi? A resposta: das multinacionais. A reserva de gás, como dito, segunda mais importante da América do Sul, tem 50% de sua capacidade explorada pela multinacional francesa TOTAL, seguida pela russa Gazprom e outras empresas estrangeiras. A estatal YPFB controla apenas 10% do total. E os 30 milhões de bolivianos mensais (aproximadamente 15 milhões de reais) pagos em royalties para os departamentos não são nada perto do volume de negócio que fazem as multinacionais.

Neste sentido, a decisão popular em exigir a nacionalização dos recursos hidrocarboníferos é extremamente lúcida. De fato, o documento final aprovado pelo Cabildo Aberto diz expressamente: “o problema de Incahuasi desvelou que no país não existe uma verdadeira nacionalização dos hidrocarbonetos, pois as grandes empresas transnacionais continuam saqueando nossos recursos naturais (hidrocarbonetos e minerais) para enriquecer-se à custa da pobreza e subdesenvolvimento de nosso país”.
 

Professores da Universidad San Francisco Xavier em greve de fome. Foto: Solange Leonor Zalles.

Maicon Claudio da Silva é cientista social. Retirado do site do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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