Nicarágua: “Se Ortega não renunciar, o país não volta à normalidade”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 27/07/2018
A Nicarágua vive desde abril um conflito político e social intenso, marcado por amplas manifestações populares contra o presidente Daniel Ortega, respondidas pelo governo com a mobilização de forças oficiais e extraoficiais para reprimi-las. Este quadro está gerando uma escalada de violência que não era vista desde a ditadura de Anastasio Somoza há 40 anos, ultrapassando neste mês de julho a cifra dos 400 mortos em protestos. Sobre a conjuntura do país centro-americano, entrevistamos Humberto Meza, jornalista e pesquisador nicaraguense residente no Brasil.
“O governo não só mantém a polícia reprimindo, como também forças paramilitares – que não são um braço policial, mas grupos armados pagos com recursos públicos para que reprimam manifestações. Vemos um estado de terror que se aprofunda de noite, depois das seis da tarde. Em Manágua, por exemplo, a partir das cinco e meia os supermercados fecham, as pessoas precisam correr pra voltar pra casa e fechar os negócios. Isso porque começam a percorrer as ruas vários veículos Hilux carregando esses paramilitares que matam quem encontrarem na rua. A cidade está vivendo um estado de sítio forçado”, denunciou.
Esta onda de protestos começou em abril por conta de um incêndio em área florestal (Indio-Maiz, causado por desmatamento e invasões ilegais) e seguiu contra uma reforma do sistema de seguridade social proposto pelo governo que impunha sérios cortes nas pensões. A população chegou a armar barricadas em 70% das ruas do país, segundo dados da AFP de 11 de junho, mas desde então as forças policiais já retomaram quase a totalidade destas vias. Meza afirma que se por um lado o nível da escalada de violência estatal lembra os momentos de agonia de Somoza, também a mobilização popular viaja no tempo para o mesmo ‘quando’, repetindo números e intensidades da aclamada revolução que derrubou aquela ditadura.
“Eu estava participando ontem de um encontro aqui no Rio de Janeiro e uma das coisas que surgiram sobre a Nicarágua foi justamente o quanto esses protestos atuais também estão repetindo algumas dimensões que foram aprendidas há 40 anos. Isso é interessante, pois os atores não são os mesmos. São jovens que não eram nascidos na época da revolução, mas muitos provavelmente filhos e netos de guerrilheiros”, contou logo no começo da entrevista.
Doutor em ciência política pela UNICAMP, Meza pesquisou a fundo os movimentos sociais e políticos de seu país. Ao longo desta entrevista foi descrevendo cada momento do processo sandinista, bem como a ascensão de Ortega e sua posterior guinada autoritária. Para o pesquisador, é necessário que a figura do presidente seja desvinculada da trajetória sandinista, pois esta carrega ideais contrários ao que Ortega colocou em prática. Em relação aos desdobramentos que possam vir desta crise, com ou sem a queda de Ortega, Meza se mostra preocupado com os rumos do seu país – ainda que, como muitos outros nicaraguenses, acredite ser mais difícil uma volta à normalidade sem a renúncia do mandatário.
“Uma das coisas que me assusta como um possível desdobramento é justamente o papel que o exército possa assumir nesse cenário de falência da força policial. Isso assusta porque é algo que está dividindo muito as pessoas. Outra coisa que me assusta é a possibilidade do crescimento de agrupamentos de direita e extrema-direita por conta da falência da imagem da FSLN através da figura de Ortega. E, por fim, a última preocupação é de que toda essa crise caminhe para uma saída institucional ‘mais do mesmo’ e seja incapaz de responder aos desafios que as ruas estão colocando, que é o de construir um país novo”, resumiu.
Leia, abaixo, a entrevista completa com Humberto Meza.
Correio da Cidadania: Como você avalia a atual conjuntura nicaraguense?
Humberto Meza: É uma situação grave, bastante delicada e muito séria. Para muitas pessoas, que têm conhecimento a respeito da Revolução de 1979, remete ao processo de insurreição popular que ocorreu há 40 anos. Participei de um encontro aqui no Rio de Janeiro e uma das coisas que surgiram sobre a Nicarágua foi justamente sobre o quanto esses protestos atuais também estão repetindo algumas dimensões que foram aprendidas há 40 anos. Isso é interessante, pois os atores não são os mesmos. São jovens que não eram nascidos na época da revolução, mas muitos provavelmente filhos e netos de guerrilheiros.
A sociedade tem uma questão de memória revolucionária, que de alguma forma Ortega estava se apropriando e distorcendo. Mas também vimos nos últimos meses que a sociedade não comprou completamente esse pacote e foi pras ruas contra o presidente, retomando muitas lições que foram aprendidas na revolução.
Por outro lado, vejo os últimos acontecimentos como algo muito sério, muito grave, porque o que estamos vendo é uma repressão de Estado muito forte, que agora nas últimas semanas se complementa com terrorismo de Estado. O governo não só mantém a polícia reprimindo, como também forças paramilitares – que não são um braço policial, mas grupos de pessoas, especialmente jovens pobres – que o governo paga, sobretudo a prefeitura de Manágua e algumas do interior, com recursos públicos para que reprimam manifestações. Isso já acontecia antes, só que agora, além da repressão, também estão armados, formando um grupo paramilitar que atua de maneira aberta contra qualquer dissidência em particular e a população como um todo.
Vemos um Estado de terror que se aprofunda de noite, depois das seis da tarde. Em Manágua, por exemplo, que é a capital e maior cidade do país, a partir das cinco e meia da tarde os supermercados fecham, as pessoas precisam correr pra voltar pra casa e fechar os negócios. Isso porque começam a percorrer as ruas de Managua vários veículos Hilux carregando paramilitares e policiais que matam quem encontrarem na rua. A cidade está vivendo um estado de sítio forçado. A vida noturna praticamente acabou em Manágua. E nós sabemos que é o Estado por trás de tais atos. Claro, não utilizam veículos oficiais e nem viaturas da polícia. Usam carros que não têm nem placas ou placas frias.
Nas últimas semanas, pessoas sobretudo do interior falam que pequenos aviões sobrevoam as cidades de madrugada, e não sabem o porquê disto. A situação gera muito medo e temor na cidadania que não sabe como reagir, mas apesar do medo ser um fator que está jogando pesado no conflito a população não quer ceder.
A principal arma que a população tem – e a população não está literalmente armada – são barricadas, pedras e bombas caseiras, uma coisa bem artesanal, feita com tubos metálicos. Eu estava lendo um dado divulgado em junho pela AFP de que pelo menos 70% das ruas do país têm barricadas. As vias estavam completamente bloqueadas naquele momento e hoje, com a forte repressão, mortes e violações dos Direitos Humanos, quase todas já foram desfeitas. Mas essa ainda é uma arma que a população tem e ninguém quer ceder nem um passo. É uma situação delicada.
De qualquer forma, não se pode falar em guerra, pois apenas o Estado e os paramilitares têm as armas, de fato – inclusive com franco-atiradores, uma questão que nos preocupa muito, pois são pessoas bem treinadas.
Correio da Cidadania: Desde 14 de junho, quando houve uma grande paralisação, vêm tendo muitas mobilizações pedindo a saída do presidente Daniel Ortega. Quais setores foram ouvidos na paralisação e o que mudou a conjuntura?
Humberto Meza: A paralisação do dia 14 de junho é muito interessante pra ser analisada como um evento. A última paralisação de mesmo nível foi há 40 anos atrás. O país nunca parou como nessa ocasião. Ninguém trabalhou, com exceção do Estado que obrigou os funcionários públicos a trabalharem e ameaçou de demissão quem parasse.
Na Revolução de 1979, a paralisação foi um instrumento fundamental para a queda de Somoza. As pessoas aprenderam e utilizaram novamente para pedir a saída do presidente Daniel Ortega. Mas acabou sendo fácil para o governo chegar a um acordo, pois as patronais estavam envolvidas na greve.
As empresas privadas, os patrões, obviamente não queriam convocar a paralisação. Foi uma pressão social muito grande que fez com que os empregadores aceitassem. No final foi muito curta, apenas 24 horas, e não conseguiu empregar uma pressão muito forte ao governo. É claro que o governo sentiu alguma pressão, reclamou e condenou a paralisação em comunicados oficiais dizendo que afetaria a economia.
Agora, que setores pararam? Os movimentos sociais, estudantes, jovens, as Mães de Abril (um movimento novo), todos queriam a paralisação já há algum tempo. Mas só foi possível graças a duas instâncias patronais que cederam às pressões populares e que pra mim são as mais importantes: bancos e setor financeiro de um lado, e de outro o COSEP (Conselho Superior de Empresas Privadas), órgão que reúne os empresários de setores produtivos, do comércio, logística e serviços. A desculpa era de que não iam trabalhar por conta da segurança dos clientes, mas de qualquer maneira foi uma paralisação.
É importante lembrar também que a Nicarágua tem uma economia muito informal e as pessoas podem paralisar quando quiserem, e que a paralisação dos setores de comércio e bancário-financeiro também influência em outros setores. Se fechar um banco, ninguém faz transações bancárias, se fechar o supermercado as pequenas lanchonetes não fazem suas compras, e assim por diante.
Tem um mercado muito grande em Manágua, maior que a 25 de março, muito popular. Ele nunca, jamais, ficou fechado desde que eu nasci. E naquele 14 de junho ele fechou. O evento em si, de parar tudo, é uma pressão interessante. Serviu em 79 contra Somoza e a aposta era de que serviria agora com Ortega. Esse que foi o sentido da paralisação de fato. Mas ainda é pouco.
Correio da Cidadania: Pensando em perspectiva histórica, pode nos contar um pouco sobre a importância do sandinismo na sociedade nicaraguense hoje e como contribuiu com a reconstrução de uma identidade nacional na Nicarágua pós-Somoza?
Humberto Meza: O sandinismo foi um movimento que surgiu em 1961, completamente influenciado pela revolução cubana de 1959 e é claro que esse movimento tinha dois pontos principais a serem desenvolvidos. Um deles a criação de um movimento guerrilheiro como o da experiência cubana, contra a ditadura de Somoza, se apropriando de ideais nacionalistas, uma vez que a ditadura era totalmente vinculada aos interesses estadunidenses. Somoza era o ‘cachorro fiel’ dos EUA que evitaria qualquer espécie de comunismo na região, principalmente depois da revolução cubana.
O sandinismo surge nutrido de alguns intelectuais vinculados a partidos políticos, como o Partido Comunista, que foi a principal fonte, mas também figuras de outros partidos nacionais, incluindo conservadores. A orientação ideológica adotada foi a de Sandino, um personagem que estava sendo esquecido naquela época, e era muito importante que voltasse a se falar dele, pois foi um precursor, nos anos 20 e 30, dos movimentos guerrilheiros na América Latina.
O primeiro oficial do exército a desertar porque estava contra a ideia de ocupação norte-americana que a Nicarágua teve no início do século 20. E depois de vários conflitos em zonas rurais, Sandino consegue negociar uma trégua com o governo daquela época e retorna a Manágua para assiná-la. Mas quando saiu do evento de assinatura é assassinado por Somoza, então chefe do exército.
No mesmo ano, 1936, Somoza dá um golpe, se torna o presidente do país e seu governo dura até a revolução de 79. Um dos maiores períodos ditatoriais ininterruptos da América Latina, uma dinastia que durou duas gerações de ditadores. O primeiro Somoza morreu em 1956 em um assalto. Foi morto por pequenos movimentos, que ainda não eram sandinistas, mas contrários à ditadura.
A Frente Sandinista surge logo depois, em 1961, no exílio. Fundada por quatro pessoas. Demorou pelo menos uns seis anos para se consolidar. Teve muitas derrotas, muitas perdas e apanhou muito.
A primeira grande operação que a Frente Sandinista faz foi em 1976, e a partir daí foi ganhando apoio internacional. No final dos anos 70, entrou com força como um movimento contra a ditadura, sendo mais que um movimento guerrilheiro, uma força política que apresentava projeto de país, de ampliação da participação nas decisões; estimulava a participação de outros atores dentro do movimento, a exemplo das mulheres.
Começaram a se mobilizar graças a uma tendência da Frente Sandinista, de movimento de mulheres contra a ditadura. E um monte de tendências foi surgindo daí. O protesto e o apoio à guerrilha cresceram até o momento em que se consegue derrubar a ditadura, em 1979.
A importância de ter começado os anos 80 com um governo socialista era, primeiro, por ser praticamente a última revolução do século 20. E isso foi importante em um país como a Nicarágua, muito periférico, pequeno e que vivia uma ditadura muito cruel como era o somozismo. Aconteceu em um momento em que toda a América Latina estava em ditaduras. O sandinismo foi, naquela época, uma fonte importantíssima para os movimentos que existiam no continente. O PT, por exemplo, bebeu muito em fontes sandinistas. O Suplicy, o Dirceu e o Lula todo mês estavam na Nicarágua.
Uma moça que conheço diz que Manágua, uma cidade pequeninha se comparada com São Paulo, que é do tamanho de Aracaju, era a cidade mais cosmopolita do mundo. Tinha pessoas do mundo inteiro lá, circulavam ideias, e isso muniu o país. E o sandinismo foi muito feliz nesse momento, pois conseguiu aliar ideias nacionalistas, de desenvolvimento nacional e soberania popular, ao mesmo tempo em que também estimulava a abertura ao mundo e a troca com o estrangeiro.
Pensando na cultura política do país, tem uma definição muito interessante na Nicarágua, a de que nós temos uma formação de Estado com paralelos históricos: tínhamos liberais e conservadores, os liberais eram talvez os mais progressistas e os conservadores com aquela concepção mais feudal. Nesse contexto o sandinismo surgiu como uma terceira força, que trazia um projeto de nação vinculado à ideia de educação popular de Paulo Freire, por exemplo, ou seja, um movimento que trazia uma interessante reinvenção da ideia de país depois de 40 anos de ditadura. Algo fantástico e inspirador para todo o continente.
Correio da Cidadania: Depois veio a contrarrevolução.
Humberto Meza: Nada aconteceu sem conflito, tensão e estresse. Era plena guerra fria, anos 80 e tempos de Reagan nos EUA. Seu projeto era acabar com qualquer experiência socialista na América Latina, e a Nicarágua é ali do lado deles. Tinha um movimento que era mais ou menos herdeiro de Somoza, muito fraco, mas que começou a crescer e lá por 1985 ou 86 e virou um grupo de contrarrevolução, os chamados Contras, que receberam muito financiamento estadunidense.
Revirando arquivos históricos vamos encontrar o maior escândalo da história que, por pouco, não gerou o impeachment do Reagan. O caso Irã-Contras, de que o governo norte-americano vendia armas para o Irã e com esse dinheiro financiava os Contras na Nicarágua.
Resumidamente, o sandinismo foi um projeto muito bonito e inspirador, mas no meio do caminho encontrou uma guerra civil financiada pelos EUA. Evidentemente, quase 40 anos depois, é possível perceber também os erros do projeto sandinista. Havia pontos totalitários. Por exemplo, na questão indígena. Isso na época era interpretado como uma ‘distração burguesa’ que não poderia ser aceita. Incluindo aí pautas LGBT e outras que hoje não são vistas da mesma forma por boa parte das esquerdas.
Todo o contexto gerou muita turbulência política. A Nicarágua estava em guerra civil, eram os socialistas em guerra contra os contrarrevolucionários. Em El Salvador havia uma guerrilha sendo detonada pelo governo militar e na Guatemala um pesado genocídio indígena. A Costa Rica era o único país em paz na região e teve de iniciar um processo de negociação regional, com apoio da OEA.
Na proposta costa-riquenha estava o imediato cessar fogo para tentar uma negociação que conduzisse ao fim da guerra civil, passando pela suspensão do dinheiro que vinha do escândalo Ira-Contras. A América Central concordou com essa estrutura de negociação, e ficou acordado que todos os países teriam de passar por eleições. É importante lembrar que o processo de negociação rendeu o Nobel da Paz de 1987 para o então presidente da Costa Rica, Óscar Árias.
Entre 1989 e 90 todos os países que estavam em conflitos civis, teriam de realizar eleições. Na Nicarágua, Ortega foi candidato pela FSLN (já convertida em partido) e perdeu – o que ninguém esperava.
Ele perdeu as eleições por causa da guerra, pois as mães não queriam mais seus filhos mobilizados. O país perdeu 50 mil jovens naqueles anos. Ao mesmo tempo em que Ortega estava em baixa por conta da guerra, votar contra ele também não era uma opção, pois naquele momento ninguém queria um governo de direita, não depois de tanto tempo de somozismo.
Durante a campanha, Ortega fez um comício e a praça estava cheia. A lenda é que ele ia anunciar naquele comício o fim da guerra civil. Diria que se ele fosse reeleito, no seu próximo governo não iria ter confronto. Ele viu a praça tão cheia e não anunciou nada. As pessoas teriam votado contra ele por conta disto.
A FSLN perdeu o poder em 1990, entrou Violeta Chamorro (1990-97), um governo totalmente neoliberal, com agenda de privatização total. E entre essa eleição perdida e as seguintes, começou uma deterioração pesada no sandinismo.
O primeiro sinal da degeneração – e a ex-guerrilheira Mônica Baltodano fala muito disso – é uma coisa chamada ‘piñata’, aquele boneco inflado cheio de doces dentro que as crianças batem em festa de aniversário. Os nicaraguenses deram esse apelido a um conjunto de leis que a FSLN aprovou antes de entregar o poder que conduzisse para uma espécie de apropriação de recursos públicos, principalmente propriedades públicas, aos líderes sandinistas.
Foram três leis aprovadas com ideias de reforma urbana e agrária, mas que na prática levaram muitas casas e prédios a ficarem no nome de líderes sandinistas. Uma mancha que até hoje pesa na história do movimento pelo nível de degradação, com os líderes revolucionários se apropriando de propriedades públicas.
Correio da Cidadania: Como a figura do Ortega contribuiu com esse processo de desintegração da FSLN durante os anos 90?
Humberto Meza: A partir de 1990, quando a revolução termina, a Nicarágua sai do radar. Todo o interesse mundial pela revolução e o fim da ditadura some da opinião pública mundial. Além de ter frustrado todo o movimento de esquerda da América Latina, ainda fez com que a Nicarágua praticamente deixasse de existir para o resto do mundo. Sumiu do radar completamente.
A FSLN viveu um processo muito doloroso e traumático. Como era possível um movimento tão importante, que fez uma revolução tão grandiosa e aclamada, ser derrotado nas urnas e como pode aprender a ser partido político de oposição em um governo liberal? Era uma identidade que não tinha: começou como um movimento de guerrilha que ganhou o Estado e de repente tinha que ser oposição dentro da institucionalidade. Precisava entender por que perderam o poder e o que fazer para voltar.
Essas duas questões foram emblemáticas porque demarcaram bem duas tendências dentro do sandinismo. Uma é o MRS (Movimento de Renovação Sandinista, atual partido de oposição de esquerda): sua tendência mais heterodoxa que prezava por aprender o jogo partidário, pois de acordo com sua análise só voltariam ao poder através da via eleitoral; a tendência ortodoxa defendia que a FSLN não era um partido tradicional e voltaria ao poder com as ruas, como na primeira vez.
Essa discussão vai de 1990 a 94 e criou um racha que foi se aprofundando até não ser possível mais a reconciliação. Em 94, a tendência mais heterodoxa, acusada de ser liberal e elitista pelos mais ortodoxos, rompe com o partido e sai da Frente, fundando o MRS.
1994 foi muito importante na história de mudança do sandinismo porque a maior parte das pessoas que saiu da Frente eram deputados. E de repente a FSLN ficou fraca no Congresso e sem o Executivo. Poucos comandantes ficaram, só três na época. Completamente isolados. E os defensores de Ortega dizem com certa razão que, no pior momento do partido, quem ficou enquanto os ‘traidores’ saíam foi justamente ele, que ‘segurou o partido em seu pior momento’.
Quando começou 1997 (e o mandato de Arnoldo Alemán como presidente, 1997-2002), a FSLN já estava mais segura no cenário político. O MRS também conseguiu prefeituras e começou a dar as caras. E o ano seguinte foi crucial.
Entre março e maio 1998, Ortega foi acusado de estupro em um momento em que além de ser deputado de oposição, também estava em alta como liderança da FSLN. Foi um grande escândalo, pois quem o acusou foi sua enteada, filha da esposa Rosário Murillo. Anos depois ela até publicou um livro e revelou que foi estuprada quando tinha apenas 11 anos – e que Ortega é totalmente pedófilo.
Isso foi importante até para algumas feministas – que perceberam que seu principal líder era um estuprador. Foi um escândalo maior ainda quando Rosário deu uma coletiva de imprensa e falou que era tudo mentira, apoiava Ortega e a filha caluniava o padrasto. Todos ficaram chocados. Era uma mãe, afinal de contas. E a maquinaria do partido também funcionou para proteger o líder.
Meses depois a América Central foi vítima do Furacão Mitch. Um tipo de furacão que só se forma a cada 200 anos, extremamente devastador. Aquilo destruiu várias cidades da fronteira de Honduras com a Nicarágua. Pelo menos duas mil pessoas morreram em uma só noite. Foi um fenômeno sinistro. Naquele ano tínhamos um presidente muito corrupto, o Alemán. Ele comprovadamente, em matérias por toda a imprensa, desviou as verbas que seriam para a reconstrução do país. Vários funcionários públicos começaram a construir mansões na praia, foi muito escandaloso.
Ou seja, nesse mesmo momento os principais líderes do país respondiam a sérios processos. Alemán por corrupção ativa e Ortega por uma acusação de estupro. Eles foram muito práticos: se juntaram em uma negociação e fecharam para os próximos três anos um pacto, muito conhecido, praticamente a causa dos problemas que temos hoje em dia. Firmava o seguinte: “Alemán, que controla a justiça, paralisa o processo por estupro; e Ortega paralisa no Congresso – que tem em sua mão – o processo de corrupção”. Foi o que aconteceu.
Alemán, após sua saída da presidência, manteve uma cadeira no Congresso pra manter sua imunidade. Já Ortega foi liberado do processo de estupro, e ainda conseguiu negociar reformas eleitorais junto com reformas constitucionais que permitiram a FSLN ter posições no Estado mesmo sem os votos, por ser o segundo maior partido do país. Uma espécie de poder compartilhado.
Correio da Cidadania: Por que essa reforma eleitoral foi importante?
Humberto Meza: Ortega nunca teve uma base eleitoral sólida, ainda que tivesse base política. Para se ter uma ideia, foi eleito presidente em 2006 com 38% dos votos mas perdeu em 1990 com 40%. Isso mostra que ele não cresceu eleitoralmente, e que precisava mudar a porcentagem mínima para ser eleito, dividindo a direita para chegar ao poder com a base que sempre teve. O pacto foi uma forma de dividir o Estado entre Alemán e Ortega e ao mesmo tempo permitir Ortega voltar ao poder, como sempre quis.
Ele foi muito habilidoso, mas isso veio acompanhado por um poder cada vez maior de Rosário Murillo - sua esposa, que havia se posicionado junto com ele contra a filha. Gerou um impacto dentro do partido, que insistiu para ela ter cada vez mais poder. De tal forma que em 2006, quando ele é eleito presidente, e em 2007 quando efetivamente reassume o poder, Rosário passa a ter um destaque ainda maior dentro do Estado e do partido.
Ela tinha um cargo de Chefe da Secretaria de Comunicação e Cidadania e foi a pessoa do governo que liderou uma mudança nos conselhos participativos do país. Tal ideia veio do caso brasileiro que no começo dos anos 2000 foi muito forte, dos conselhos participativos de políticas públicas. A Nicarágua também teve. Só que a FSLN tinha uma análise de que os conselhos não eram suficientes: não eram participativos nem comunitários, apenas deliberativos, com membros de ONGs e técnicos apenas. Enfim, defeitos que todos sabíamos que existiam, mas ao invés de consertá-los optaram por impor uma agenda própria. Chegou um certo ponto, já em 2010, que todas as prefeituras respondiam ao Partido. Todos os conselhos eram controlados pelo Partido ao passo que todas as prefeituras tinham que responder ao presidente do Partido, mais que ao prefeito.
Quando eu estava na Oxfam, por exemplo, se nós tínhamos um projeto em certos municípios, tínhamos de passar pela prefeitura pedindo autorização para operar. Só que para a prefeitura dar o consentimento nós tínhamos que dar uma lista de beneficiários do partido que haveria com o projeto. Eis o nível de controle que trouxeram a partir de Rosário em todo o país.
Correio da Cidadania: Em 2011, Ortega foi reeleito.
Humberto Meza: Ortega conseguiu ser reeleito ainda em 2011 a partir de uma ação no judiciário na qual o juiz declarou inconstitucional um artigo da Constituição que não permitia a reeleição. Ou seja, a Constituição passava a ser inconstitucional. É um absurdo atrás do outro. Em 2014 foi aprovada a reforma que entre muitas coisas permite reeleições eternas e eleição para vice-presidente; em 2016 ele lança a esposa como vice – e ambos ganham.
Mas 2016 foi uma eleição que ninguém votou. Os colégios eleitorais estavam vazios, completamente vazios – foi o primeiro sintoma de rejeição, não só da forma como Ortega governa, como também em relação a Murillo. Na primeira vez que postulou um cargo, ninguém foi votar. Mas é claro que como Ortega tinha o controle de tudo, inclusive do Conselho Eleitoral, eles divulgaram que houve uma participação massiva de 80%. Porém, essa é outra questão.
O Conselho Eleitoral na Nicarágua é como um poder paralelo. Não está dentro da justiça, como no Brasil por exemplo. Lá, temos o Executivo, o Congresso, o Judiciário e o Eleitoral. E esse poder eleitoral era totalmente controlado pelo orteguismo. O presidente do conselho eleitoral era um corrupto que tinha uma mansão e um jatinho, e estava sempre na mão do Ortega. Cada vez que tinha uma eleição, adequava os números como bem entendia.
Se olharmos atentamente para todo o percurso, é evidente a degeneração democrática, cada vez mais absurda. E depois que Rosário foi eleita vice-presidente, em 2016, o casal-presidencial manda em tudo. No partido, no congresso, no judiciário, no executivo e no eleitoral. O que acontece hoje é o acúmulo de frustrações e revoltas contra um poder que apresentou uma forte guinada autoritária.
Correio da Cidadania: Que efeitos esses desdobramentos podem gerar para o país como um todo e para o sandinismo em particular?
Humberto Meza: Para nós que somos de esquerda – incluindo eu que não faço parte de nenhum partido –, nossa a maior dor de cabeça vai ser separar o orteguismo do sandinismo. E é culpa do Ortega, de fato. Nos últimos cinco ou seis anos, ele tentou criar a ideia de que ele e Rosário são os representantes primários do sandinismo.
Em livros didáticos Rosário é colocada como uma grande guerrilheira, e Ortega como um líder guerrilheiro. Uma narrativa vendida para fora do país também. Inclusive a Globo já colocou Ortega como um ‘ex-guerrilheiro’. Mas Ortega não era nada do tipo, ele não participou da revolução, quando o bicho pegou ele fugiu pra Cuba. Tudo bem que ele lutou, mas praticamente ficou preso ou exilado durante os anos de Revolução. O problema é que ele conta uma história que faz o país achar que a revolução só aconteceu graças a ele e a ela. Ela era secretária de um jornalista e ele estava fora do país quando a revolução aconteceu. E na Nicarágua, assim como no Brasil, há muita desinformação e muitas pessoas realmente acreditam que ele era um guerrilheiro.
Mês passado saiu um artigo aqui no Brasil mostrando Ortega exatamente como um traidor daquele sandinismo que o mundo inteiro apoiou, mas na Nicarágua a maioria das pessoas não vê dessa forma. Há um entendimento entre a população de que o Ortega é o sandinismo e que o sandinismo é isso que está aí: proibir manifestação, reprimir dissidência, milícia nas ruas, corrupção, ou seja, tudo o que atrasa o país.
Nossa luta vai ser resgatar o sandinismo da experiência desastrosa encabeçada por Ortega. O que tento colocar é o orteguismo e o sandinismo como dois fenômenos distintos. O sandinismo não é repressor, não é autoritário. Teve muitos erros, é óbvio, mas não é nem equivalente ao orteguismo. Agora, vai ser uma dor de cabeça tremenda disputar a narrativa.
Correio da Cidadania: E como você enxerga a esquerda latino-americana em relação a esse debate?
Humberto Meza: Existe um certo receio da esquerda latino-americana em condenar Ortega, pois há uma memória da revolução, de um momento bonito para o continente, e condenar Ortega seria condenar esse momento. Mas não pode ser assim.
Nossa luta é dizer exatamente o contrário, que Ortega é o cara que traiu a revolução. Já vi muitas matérias aqui no Brasil dizendo que Ortega estaria sofrendo um golpe da direita, comparando a situação com a do Brasil. Uma grande bobagem. A direita, apesar dos meus temores, não está impondo agenda aos jovens, não tem narrativa “coxinha” nas ruas. É tudo muito distinto do Brasil e da Venezuela e a América Latina precisa compreender essa complexidade para decidir qual lado apoiar.
Por outro lado é evidente que têm setores de direita interessados em se aproveitar da luta popular para impor agenda, mas, como falei, não significa que estejam conseguindo. Seu principal discurso é mostrar como eles (direita) seriam diferentes do orteguismo/sandinismo (que é autoritário) e apagar os vestígios do sandinismo no país, enfraquecendo o pensamento de esquerda como um todo. Isso tudo pode vir a afetar o sandinismo enormemente. É preciso, o quanto antes, colocar o Ortega como um traidor dos princípios revolucionários, não um herdeiro de Carlos Fonseca – fundador da FSLN – como nos outdoors que colocam pelo país. É muito difícil acabar com o mito. Uma tarefa monumental.
Correio da Cidadania: Quais desdobramentos podem haver para esta conjuntura? Você acredita numa saída do Ortega?
Humberto Meza: Uma parte de mim diz que Ortega pode sair sim. O que está sustentando Ortega é: repressão, armas, polícia, milícias e exército. A polícia está muito cansada e desmoralizada. A população está conseguindo encurralar policiais. Já houve centenas de deserções de policiais que não queriam mais continuar na corporação.
Na segunda cidade do país, Masaya, quando uns policiais ofenderam manifestantes, a população encurralou-os e ficaram trancados junto com outros policiais dentro da delegacia sem poder sair. Se saíssem, a população lincharia. Em outra cidade, policiais mataram jovens, a população foi na delegacia e os policiais tiveram que fugir de lá. A polícia está num momento tão precário e desmoralizado que é difícil que se mantenha sempre fiel ao governo. Ortega ainda tem os paramilitares e a mídia a seu favor. O conglomerado midiático do país é praticamente dele e de aliados, mas anda em baixa com a população assim como a polícia. Ninguém acredita neles.
A possibilidade de ele cair é cada vez mais alta, mas o custo disso também cresce. Além do mais, é evidente que para renunciar Ortega buscará acordos que garantam os direitos dele e de sua família. Mas a cifra de mortos nas ruas, que já está na casa das centenas, tende a aumentar cada vez mais.
Se ele sair o custo será altíssimo. E se ele não cair, o país não volta à normalidade. As pessoas não querem ceder nenhum passo. O discurso da rua é esse. As barricadas só vão ser desmontadas quando ele deixar o país. Se ele não renunciar, vai ter muita violência, cada vez mais mortes e o meu temor é que a população pegue em armas, e aí não quero nem imaginar o que pode acontecer.
Uma das coisas que me assusta como um possível desdobramento é justamente o papel que o exército possa assumir nesse cenário de falência da força policial. Assusta porque é algo que está dividindo muito as pessoas. Outra coisa que me assusta é a possibilidade do crescimento de agrupamentos de direita e extrema-direita por conta da falência da imagem da FSLN através da figura de Ortega. E, por fim, a última preocupação é de que toda essa crise caminhe para uma saída institucional ‘mais do mesmo’ e seja incapaz de responder aos desafios que as ruas estão colocando, que é o de construir um país novo.
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Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.
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