Nicarágua: a “normalização” de um regime mafioso
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- Ernesto Herrera, de Manágua para o Correio da Cidadania
- 08/02/2019
Trata-se de um relato descritivo. Sem a pretensão de oferecer uma leitura da tragédia que ocorre. Nem de analisar com exatidão uma “crise sociopolítica” de imprevisível desfecho.
É evidente. Não se veem mais barricadas. A rebelião popular que estourou em 18 de abril e se prolongou por vários meses, foi massacrada. O saldo do massacre é indisfarçável: 325 mortos (o regime reconhece 199 e alguns grupos falam em 561), 2000 feridos, 600 presos políticos, dezenas de desaparecidos, 350 médicos demitidos de hospitais públicos. Mais de 30 mil exilados na Costa Rica. No campo a caça foi selvagem e várias zonas rurais se mantêm militarizadas pelo Exército e a Polícia.
As organizações sociais (estudantis, territoriais e outras) se retraíram. Muitas lideranças antigas, assim como as surgidas no meio da insurreição, foram assassinadas ou estão presas. Igualmente, centenas de ativistas (impossível dizer quantos) seguem na clandestinidade, refugiados em bairros periféricos, protegidos por família e amigos e camuflados em instituições da sociedade civil.
O argumento de um protesto massivo, cívico e pacífico, por ser genuíno, deve ser sustentando por aqueles(as) comprometidos com a incondicional solidariedade. Sem deixar de destacar a outra face da formidável luta democrática: os milhares de jovens, mulheres e colonos que se auto-organizaram em Masaya, León, Estelí, Matagalpa e outros tantos lugares. Com valentia temerária. Levantaram trincheiras, piquetes de autodefesa, usando morteiros de fabricação caseira, pedras, paus, paralelepípedos. Dispostos a tudo, como no município de Moninbó (Masaya). Ainda podem ver-se ali as marcas da batalha desigual, em casas, edifícios, grafites.
Contra esses “autoconvocados” o regime apresentou uma máquina criminosa: franco-atiradores, parapoliciais armados com fuzis tipo AK 47 e Dragunov, Remington M24 e FN SPR; metralhadoras RPK e PKM e até lança-granadas portáteis PG-7. Isto é, armas de guerra que na Nicarágua só o Exército possui (ou se adquirem por fora das instituições armadas oficiais), como denunciou a Anistia Internacional (AI) em uma investigação de sua equipe para “Situações de Crise”.
Finalizada a “operação limpeza” (batizada pela ditadora Rosario Murillo, “vamos com tudo”), que a AI provou através de fotos, vídeos e testemunhos (100% Notícias, 8/11/2018), o regime Ortega-Murillo orquestrou uma nova metodologia autoritária. Proibiu as marchas e bloqueios. As paradas cívicas e as greves são consideradas atos de “sabotagem”, o mínimo protesto é acusado de “terrorismo”. As etiquetas de “traidores da pátria” (incluído na lista o general Humberto Ortega, ex-chefe do Exército Sandinista, irmão do ditador) e de “golpistas a serviço do imperialismo” circulam em discursos oficiais, redes sociais e canais de TV vinculados ao regime. O “Poder Judiciário” é um instrumento sinistro que responde às ordens da ditadura.
Não se percebe, à simples vista, controles e bloqueios policiais ostensivos, como no opressivo clima de sistema totalitário das ditaduras do Cone Sul nos anos 1970-80.
Naqueles tempos, as organizações de esquerda estavam todas clandestinas, sem por a cabeça de fora, e a oposição democrático-burguesa sob total proscrição política e midiática. Nenhum resquício de legalidade.
Das catacumbas, prisões e exílio, assim era a resistência nos anos de “Doutrina de Segurança Nacional” e “Plano Condor”. Inimaginável qualquer reportagem ou coluna de opinião nos meios de imprensa massivos que qualificasse os regimes militares como ditaduras, ou que aludissem a suas inumeráveis atrocidades.
Por essa razão, entre tantas (históricas, políticas, econômicas, sociais), as analogias são inúteis. Ainda que o regime Ortega-Murillo tenha instaurado um Estado policial sistemático e utilize métodos de “repressão pinochetista”.
Na Nicarágua, após a matança, a repressão se tornou mais “seletiva”, ainda que não menos brutal. Busca desmantelar de qualquer jeito as organizações e lideranças sociais ativas e lideranças sociais – algumas com abundante exposição midiática – que geram consciência e denúncias. São os principais obstáculos à continuidade repressiva e impunidade do terrorismo de Estado.
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A partir de 12 de dezembro, a escalada repressiva apontou contra os dois focos principais e mais visíveis da resistência: as organizações de direitos humanos e os poucos meios de comunicação jornalísticos independentes (sobretudo os televisivos, como 100% Notícias, Confidencial e La Prensa). Estas sofreram suspensão de pessoas jurídicas, assalto a locais, saques de equipamentos, roubos de cheques e dinheiro destinados ao seu funcionamento, como pagamento de alugueis e salários.
A imagem de Vilma Nunez, de 80 anos, presidenta do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh), enfrentando um pelotão policial numa quinta, 13 de dezembro, é um símbolo insofismável desta coragem democrática. Muitas ONGs perseguidas são lideradas por mulheres.
A Unidade Nacional Azul e Branco (conformada em 4 de outubro de 2018) por universitários e camponeses, ativistas sociais, dirigentes políticos, coletivos feministas, empresários e a Aliança Cívica pela Justiça e a Democracia, está descaracterizada.
As exigências de renúncia imediata de Ortega-Murillo (demanda central entre abril-setembro) e o adiantamento das eleições perderam força, para não dizer que foram diluídas. A agenda de demandas está centrada no fim das perseguições: liberdade dos presos políticos, desmobilização dos paramilitares, fim da censura à imprensa.
Enquanto isso, voltam a se instalar com mais força as propostas de um “diálogo nacional” para “restabelecer a institucionalidade”. A Igreja Católica e o Cosep (Conselho Superior da Empresa Privada) insistem novamente nesta estratégia.
Para o Cosep (reunido em assembleia geral em 12 de dezembro), a prioridade é “buscar com urgência uma solução negociada da crise sociopolítica do país para que não aumente o problema econômico que afeta a população (La Prensa, 13/12/2018). Timidamente, menciona-se o adiantamento das eleições. Sobretudo para contemplar as diretrizes dos Estados Unidos, que a partir do Nica-Act decidiu alinhar o conjunto dos empresários em postura de clara oposição ao regime.
Por sua vez, os patrões da União de Produtores da Nicarágua (Upanic) denunciam “expropriações” que realizam grupos “tomadores de terras”, que invadiram cerca de 7780 hectares ocupando, desde abril, propriedades de 65 empresários. Os “tomadores de terras”, fieis ao regime, ocupam tais propriedades, sob a promessa de que o governo “legalizaria seus lotes”.
Não está na agenda a realização de Paradas Cívicas nacionais, nem manifestações massivas, a não ser que o regime as autorize.
O casal que governa o país
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A explosão social foi a mais radical expressão de cansaço e repúdio. Mostrou a completa perda de legitimidade política do regime, tanto como sua multicolorida e fraturada base social. A rebelião popular desnudou a natureza do governo Ortega-Murillo. Um dos nove comandantes que dirigiram a revolução sandinista, Luis Carrión, aponta a uma definição: trata-se de um regime mafioso. Repressivo, clientelista, bandido. Com reações “esquizofrênicas”. Que defende seu território de negócios a tiros e chantagem aberta. Seus partidários recebem tanto ameaças como “benefícios” funcionais e econômicos.
O núcleo duro desta base social é limitado, afirma o sociólogo Oscar Rene Vargas. “Digamos que são uns 1000, 1500 que estão dispostos a matar para manter Ortega no poder. Tem a vantagem de que são imunes e podem fazer barbaridades, roubam, assaltam, tiram os celulares, furtam os carros. Não estão ali por uma questão ideológica. São fanáticos (entrevista à Revista Domingo, La Prensa, 16/12/2018).
Por outro lado, há os “militantes sandinistas” e empregados públicos, usados como força-tarefa. São os “rotonderos”, que devem marcar presença todos os dias nas 12 Rotondas de Manágua (o termo designa grandes praças em torno das quais se entrecruzam avenidas importantes), construídas para facilitar a circulação e evitar a lentidão no tráfego automobilístico.
O governo pretendeu com isso retomar as ruas tomadas pela oposição a partir de abril. De passagem, mostrar o apoio “espontâneo” à FSLN contra os “vândalos golpistas”. Obrigados a balançar bandeiras rubro-negras e brancas e azuis, ficam sob toldos precários em pontos de concentração. Nos primeiros meses de insurreição, também partiam dali as “caminhadas” em respaldo a Ortega-Murillo.
Como moeda de troca, transporte e comida. A população os batizou com o mote “sapos”. Repudiados até entre seus amigos, companheiros de trabalho e vizinhos, foram desanimando. A tropa civil de choque foi sendo trocada. Em sua maioria, os “rotonderos” de hoje são empregados públicos que cumprem seu horário laboral nas Rotondas. Muitos dizem “também somos vítimas”. Há funcionários do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social e do Ministério de Educação (Mined), mas também de outras repartições do Estado. As ordens provêm de “coordenadores”, membros da Juventude Sandinista que atuam em todos os ministérios.
Subordinados completamente aos chefes. “São bem pagos”, diz Gustavo, vendedor em um posto de jogos, perto de uma das Rotondas. Patrícia, professora, forçada “à fidelidade sandinista”, revela entre sussurros o salário dos coordenadores: 22.000 córdobas mensais (750 dólares).
O diretor jurídico do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh), Gonzalo Carrión, afirma que o controle absoluto do regime e as ordens partidárias aos empregados públicos “arruinaram a função pública, porque se impõe a lealdade ao partido acima do serviço aos cidadãos”.
A “participação” decresce. O número de rotonderos não supera vinte na maioria de cada uma delas, espalhadas pela capital. Ainda que o regime se esmere em mostrar o contrário: alto-falantes irradiam canções revolucionárias e consignas alusivas ao FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional). A poucos metros de cada Rotonda, encontram-se patrulhas da polícia orteguista, estacionadas junto a caminhões russos que transportam os “secretários políticos”, encarregados de recrutamento de novos rotonderos pelos bairros populares.
Finalmente, a classe trabalhadora de zonas francas, ocupadas majoritariamente no setor têxtil (as maquilas). Através da ditadura de Rosario Murillo, o regime anunciou um “ajuste de 8,5% para salários na zona franca”. O salário mínimo destes trabalhadores passará de 5.460 córdobas (169 dólares) para 5.910 (183 dólares).
Nicarágua conta com 52 parques industriais e 226 empresas usuárias em mais de dois milhões de metros quadrados, que geram 124.334 empregos diretos e 350 mil indiretos no setor das maquilas, segundo dados oficiais citados pela Agência EFE (14-12-2018). As empresas instaladas diversificaram nos anos recentes sua produção, já não produzem apenas têxteis, mas também artigos mais elaborados e também operam empresas de call-centers. Grande parte do investimento estrangeiro “produtivo” se encontra nessas zonas francas. Em 2019, uma empresa têxtil chinesa começará a operar no setor de Mateare (estrada nova rumo a León), com um investimento de 200 milhões de dólares e uma promessa de 1000 novos empregos.
Nas indústrias maquiladoras, como no setor público, predomina a CST (Central Sandinista dos Trabalhadores), braço sindical do regime, seguindo o modelo cubano de Partido-Estado.
Durante os primeiros meses da insurreição, e sobretudo em ocasião das paradas cívicas nacionais convocadas pela oposição democrática, os trabalhadores que aderiram aos protestos e medidas de greve foram expulsos de seus trabalhos e perseguidos como “agentes dos golpistas”.
Em tal sentido, a resolução de ativar o aumento salarial (subscrito entre o governo, patrões e sindicatos do setor em junho de 2017), manifesta a intenção do regime de favorecer as camadas operárias que se mantém fieis e compensam a perda de apoio social no conjunto da sociedade.
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O “estado de exceção” apresenta uma enganosa “normalização” da vida cotidiana. Sobretudo durante o dia (anoitece às 18 horas), onde prevalece um clima de sossego. “A situação está mais calminha”, diz Javier, um taxista. O movimento nos grandes espaços comerciais tem ritmo de celebração natalina.
O Mercado Central Roberto Huembes impressiona. Localizado no Distrito V de Manágua, abarca 130 mil metros quadrados, 4,500 “comerciantes”: vestimenta, artesanato, licores, verduras, frutas, “comidinhas” para o dia. Cerca de 10 mil pessoas visitam-no diariamente.
Ao lado, o terminal de ônibus interurbanos. A papelada turística o descreve como o “lugar mais seguro de ir às compras”. Em seu perímetro circundante, dezenas de flanelinhas: pobres, aspecto famélico. Há quantidades de pessoas mutiladas, faltam pernas, braços, mãos. São os “lisiaditos”, antigos milicianos dos Contras, da guerra dos anos 80; pensionados miseravelmente após os acordos entre Ortega e os chefes contrarrevolucionários que deram base a seu primeiro “governo de reconciliação nacional”. Ganham uma renda extra, cobrando 20 córdobas (70 centavos de dólar) por cada estacionamento.
Os contrastes da “normalização” se acumulam. Em todo caso, mostram os efeitos da crise econômica e o aumento da insegurança. As farmácias mudaram o horário de entrega dos remédios. A maioria dos restaurantes e pizzarias fecha antes das 21 horas. Ao cair da noite, Manágua se apaga. Respira-se desolação.
A paisagem se repete no Porto Salvador Allende, localizado no Malecón de Manágua, de frente ao lago de Xolotlán, ao norte da capital. Segundo dados oficiais, o Porto recebe ao menos 3000 visitantes por dia e aos fins de semana a quantidade de turistas, em sua maioria nacionais, chega até 10 mil. Obviamente falso, parte da campanha de simulacro do regime. Tanto como um anúncio televisivo no programa da ditadora Rosario Murillo sobre a suposta chegada de dois cruzeiros com 1600 turistas, para visitar o famoso mercado de artesanato de Masaya. As imagens dos navios parecem velhas ou trucadas.
Sexta-feira, 14 de dezembro, meio de tarde, o Malecón está quase vazio. Na entrada dos locais, dezenas de camelôs aguardam a chegada de algum cliente e os taxistas, que se mantêm nas cercanias do Porto, esperam um eventual passageiro. O preço da viagem se negocia, é regra.
O medo da delinquência, a hostilidade policial e o atropelo dos “encapuzados” (que podem ser mistura de bandos de lumpens com esquadrões parapoliciais), agregado à suspeita de perseguição, se vê refletido nos bares, avenidas, parques, destinos turísticos, centros comerciais e grandes praças. Os grupos mariachis guardam suas guitarras, perambulam por restaurantes e hotéis com tarifas rebaixadas para eventos de fim de ano.
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A extrema pobreza é visível, diversas estimativas a colocam acima de 40%. Os bairros populares parecem gigantescos assentamentos regularizados, ainda providos de serviços básicos (água, eletricidade, saneamento), as moradias são de chapa de aço em sua maioria, com estreitas passagens e lixões que se acumulam. O transporte público continua subsidiado, 2,5 córdobas é o preço de uma passagem. Ainda que o regime comece a racionar a venda de combustível. Sequela do fim do petróleo barato enviado pelo regime amigo de Maduro.
Segundo José Adán Aguerri, presidente do Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep), a crise sociopolítica provoca a perda e suspensão de uns 400.000 postos de trabalho. De março a outubro, se perderam 142.760 empregos formais, segundo indicam as estatísticas do Mercado Laboral publicadas pelo Banco Central de Nicarágua (BCN); 43% de empregos perdidos entre março e setembro são da construção e comércio. Na indústria manufatureira (162.444 trabalhadores(as)), perderam-se 11.806 empregos (La Prensa, 13/12/218).
A precariedade laboral e salarial é outra norma. A informalidade supera de longe os 50%. O salário médio gira em torno de 300 dólares, ainda que empresas de segurança, armazéns e supermercados paguem ainda menos. Não se paga adicional noturno, as horas extras são ignoradas e em muitos setores os empresários fazem os empregados assinarem dois cartões, um por 8 horas e outro pelas 4 restantes, para evadir o tributo de impostos sociais. Assim foi durante os 13 anos contínuos de orteguismo. Justamente o contrário da imagem oficial. A propaganda inunda avenidas, parques, prédios e praças. “Um povo feliz”, que vive uma “revolução cristã, socialista, solidária”. Ao mesmo tempo em que os gângsteres se entrincheiram em organismos públicos, a polícia e esquadrões paramilitares. Neste país “alegre e trabalhador”, seus máximos chefes, por precaução, quase não saem do bunker de El Carmen, residência presidencial.
Quase todas as previsões anunciam uma queda do PIB de 4 a 8%. O crédito ao consumo caiu 10%. O investimento em moradia baixará até 70% dizem as “empresas urbanizadoras”. O turismo, base do “crescimento econômico”, junto a exportações agrícolas, charutos e mercadorias produzidas nas zonas francas colapsou. Estima-se que neste ano se arrecadará 500 milhões de dólares a menos no turismo frente a 2017.
Enquanto isso, o regime anunciou “reajustes orçamentários. Isto é, menos dinheiro na educação (sobretudo universitária, foco decisivo da organização e rebelião social) e para aqueles hospitais públicos departamentais, onde a resistência, como em León, foi mais forte.
Ainda assim a polícia orteguista receberá mais dinheiro. Apesar de o Orçamento Geral da República de 2019 ter se contraído para fazer frente à queda da arrecadação tributária, doações e empréstimos internacionais, a Polícia receberá mais recursos para “proteção à personalidade”, ou seja, para a custódia direta do clã Ortega-Murillo: gastará 263 milhões de córdobas nisto, 51,7 milhões a mais que em 2018, aumento de 24,4% (La Prensa, 15/12/2018).
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Difícil prognóstico. A maioria das expressões opositoras e dos analistas fala de “agonia do regime”, descreve as reações brutais de Ortega como de uma “fera ferida”. Os “dirigentes históricos” que se mantêm fiéis são poucos. Bayardo Arce é um discreto “assessor” presidencial da selvageria repressiva. Eden Pastora em entrevista à CNN en Español justifica a legalidade do regime. Circulam rumores sobre uma suposta luta de frações no interior da cúpula da FSLN. A única certeza visível é que a ditadura não conseguiu “normalizar” a situação. A crise do regime de dominação se mantém em todos os seus termos. Ainda que tenha superado as previsões de sua “iminente” queda.
Os apoios internacionais do regime são, acima de tudo, retóricos e em alguns casos patéticos: os países da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América) e as infames organizações do Foro de São Paulo. Atores que não podem oferecer recursos para o problema mais urgente e crucial: a crise econômica. Apenas a generosa amizade de Taiwan que entrega um aumento de suas “doações”, informa uma reportagem intitulada “Taiwan: aliado ou refém?” (Revista Domingo, La Prensa, 16/12/2018). Da aliança estratégica com a Rússia ninguém apresenta dados precisos, mesmo que se vejam muitos “turistas” e “homens de negócios” russos em grandes hotéis e locais de compras.
Não se notam expressões políticas organizadas de esquerda (tampouco existiam antes de 28 de abril). As distintas referências que vêm do “sandinismo revolucionário” tampouco concordam em uma alternativa independente das forças patronais e religiosas hoje na oposição, as quais mantiveram por anos um “pacto de governabilidade com o regime”. Algumas destas referências de esquerda não descartam opções de diálogo e a negociação com o regime para não fraturar a “concertação democrática”.
Enquanto isso, a aposta a uma “solução transitória”, que incluiria o Exército (ou uma parte dele) e contava com adeptos da oposição foi perdendo fôlego. Muito mais quanto as sanções do Nica Act possam chegar a congelar dinheiro do Instituto de Provisão Social Militar (IPSM) que, além de constituir um empório econômico no país (centenas de milhões de dólares investidos em numerosos ramos), tem suas reservas depositadas em fundos de pensão estadunidenses e bônus do Tesouro deste país, de acordo com informações publicadas em El Nuevo Diario e Nicarágua Investiga.
Não se trata somente de dinheiro. As sanções podem incluir pedido de extradições por supostos laços com o narcotráfico e responsabilidade no massacre perpetrado pelo regime mafioso de Ortega-Murillo.
Na realidade, como afirma Marcela, socióloga da UCA (Universidade Centroamericana), os militares perderam legitimidade. “A impavidez do Exército é só aparente. Porque sem intervir diretamente na crise, o simples fato de calar ante a repressão e o genocídio o converte em cúmplice silencioso do regime”.
Na Nicarágua, as mediações apaziguadoras são frágeis. Os partidos de direita são fantasmagóricos, como o Liberal Conservador, que ainda participa da Assembleia Nacional dominada por 65 legisladores do FSLN. A alternativa que representava o MRS (Movimento Renovador Sandinista), criado em 21 de maio de 1995 por fundadores, ex-comandantes guerrilheiros e governantes do FSLN que romperam com a direção orteguista, teve sucessivas cisões antes de ser ilegalizada pelo regime tempos atrás. Seus ex-quadros dirigentes se expressam contra o regime de modo individual, como membros de diversas ONGs ou com a autoridade intelectual que lhes brindam suas profissões, como é o caso do escritor e ex-vice-presidente de Ortega no primeiro governo sandinista, Sérgio Ramirez.
Fica a poderosa Igreja Católica, aliada estratégica do regime nos dois governos anteriores, hoje deslocada do círculo de poder e afetada pelo avanço das igrejas evangélicas, que tomam os horários televisivos cedidos pelo regime e se beneficiam de concessões econômicas.
Neste quadro, o ódio massivo contra o regime segue se acumulando. O Estado de desobediência civil, em refluxo por agora, está latente. E bem pode voltar a se manifestar sob a forma de um novo estouro social, em um país onde “a memória revolucionária” parece ser transmitida de uma geração a outra.
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De volta a Montevidéu, 30/12/2018
O informe do GIEI (Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes) é demolidor. O regime Ortega-Murillo cometeu inumeráveis crimes de lesa-humanidade. Acusa os responsáveis, exige justiça e reclama reparação das vítimas. O massacre está certificado.
Tanto que o Secretário Geral da OEA, Luis Almagro (ex-embaixador uruguaio na China durante o primeiro governo de Tabaré Vázquez, depois embaixador na África durante o governo de José Mujica), recomendou na reunião do Conselho Permanente (27/12/2018) ativar o mecanismo da Carta Democrática para a suspensão de Nicarágua como Estado-Membro, apelando ao antecedente de Honduras, quando o golpe de Estado derrubou Manuel Zelaya.
Um discurso inédito para o âmbito e a ocasião, como se falasse um dirigente de esquerda. Lembrou de antecedentes do personagem em questão, “um dos últimos revolucionários vivos”. Após a apresentação, ameaça de sanções e mais isolamento internacional. O governo “do presidente Ortega” entrou em uma “lógica de ditadura”. E “não queremos um Ortega ditador. Fim da repressão, liberdade aos presos políticos, fim da censura da imprensa, volta ao Estado de direito, reforma do sistema político-eleitoral. E volta à mesa de diálogo nacional”.
Demandas pesadas para o regime Ortega-Murillo. Que estimularam a oposição, que as considera “balsamo democrático”. Ainda sabendo que o processo da OEA é complexo, cheio de armadilhas diplomáticas e entendimentos na chamada “comunidade internacional”. E que, na linha expressa por Almagro para Nicarágua, não implica, como para a Venezuela, uma estratégia de mudança de regime, sem rodeios. Quer dizer, a derrubada do governo instituído. Pese a verborragia acusatória, não se fecharam todas as portas para o regime criminoso. “Assumam a responsabilidade”, afirmou o Secretário Geral ao governo de Ortega (em nenhum momento fez menção à ditadora Rosario Murillo). E isso inclui a possibilidade de negociar e/ou pactuar uma “solução à crise”.
Em todo caso, a hipótese mais provável, contemplada por analistas e militantes conhecedores do país e da sociedade, é uma combinação de fatores e atores. Por um lado, a pressão internacional encabeçada pelos Estados Unidos e a OEA. Por outro, um novo jogo negociador entre a ditadura e a oposição, que esfrie a decomposição do regime e restabeleça as “regras do jogo” de uma pretendida “restauração institucional”.
Neste contexto, as especulações se multiplicam. Por exemplo, que já estariam em curso negociações. Nenhuma das fontes especifica entre quem, com quais alcances. Ainda que se repita em alguns meios e setores opositores que a ditadura “tem os dias contados”.
Por ora, um porta-voz da Articulação de Movimentos Sociais afirmou que depois do conhecido informe do GIEI a opção de um novo diálogo com o regime é inviável. Querem participar da tomada de decisões e a única coisa válida, aceitável, é a saída de Ortega-Murillo.
Um objetivo que enfrenta dois dilemas simultâneos: 1) as relações de forças políticas e sociais no interior do país são muito mais desfavoráveis do que nos primeiros meses de insurreição popular; 2) a revolução pacífica tem como inimiga uma máquina de guerra.
Ernesto Herrera é editor do Correspondencia de Prensa, editado em Montevidéu.
Tradução: Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.
Comentários
defesa da Anistia Internacional, da OEA.... Com o apoio dessa gente, melhor colocar as barbas de molho quanto aos argumentos do autor do artigo! pró-imperialista; melhor não confiar no que diz!
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