Correio da Cidadania

Europa-Mercosul: o acordo de Recolonização

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Imagem: Diego Rivera, A grande cidade de Tenochtitlán (1945)

Governos em final de mandato, ou precocemente enfraquecidos, são ainda mais propensos a atos espalhafatosos e imprudentes. Na sexta-feira (28/6), em Bruxelas, ministros do Mercosul e o presidente da Comissão Europeia (CE) anunciaram ter chegado ao que poderá ser, um dia, um acordo de “livre” comércio entre os dois blocos. No Brasil, o governo Bolsonaro, representantes das grandes transnacionais e a mídia conservadora comemoraram o fato, que julgam “histórico”. Não há, porém, nenhuma garantia de que os compromissos firmados entrarão em vigor um dia. O caminho para a aprovação final é longo e pedregoso. Os primeiros obstáculos já começaram a surgir – e vão muito além dos movimentos sociais e da “esquerda”.

Mas se um dia prevalecer o que se tramou na cidade-sede da União Europeia (UE), haverá três consequências claras. Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai cimentarão sua condição de produtores de bens primários vulgares, em condições sociais e ambientais cada vez mais precárias. Os direitos dos trabalhadores, a natureza e a pequena produção serão atingidos também na Europa. No lado dos ganhadores, estarão apenas as megacorporações e setores econômicos conhecidos por sua ação predatória, como o ruralismo brasileiro.

Três dias após a assinatura, o teor exato do compromisso firmado em Bruxelas permanece oculto – como para confirmar a falta de transparência do modelo de globalização atual. Mas algumas das bases vieram à tona, em comunicados e entrevistas. Como se tornou costume em acordos assim, as cláusulas são de dois tipos. Uma parte trata propriamente de comércio; outra, em geral pouco debatida pelas sociedades, inclui normas muito mais amplas, que frequentemente alteram a ordem econômica, social e mesmo política dos países implicados.

O capítulo comercial, no que se conhece, estabelece três mudanças. Os produtos industriais europeus (em especial os mais presentes na pauta de exportações para o Mercosul) entrarão no bloco sem pagar qualquer imposto de importação.

A eliminação das barreiras que hoje salvaguardam as produções locais ocorrerá num prazo de cinco a dez anos. Os comunicados falam explicitamente em automóveis (que hoje pagam 35%), suas peças (de 14% a 18%), equipamentos industriais (de 14% a 20%), produtos químicos (até 18%), vestidos e calçados (até 35%) e farmacêuticos (até 14%).

Além destes, os europeus introduzirão, sem barreiras, produtos agroalimentares sofisticados, como vinhos (hoje, tributados a 27%), chocolates (20%), uísque e outros destilados (de 20% a 35%), queijos (28%) biscoitos (16% a 18%), pêssegos em lata (55%) e até refrigerantes (de 20% a 35%).

A nota emitida pela chancelaria brasileira comemora, em tom pueril: “os consumidores serão beneficiados pelo acordo, com acesso a maior variedade de produtos a preços competitivos”. Não menciona o preço: devastação do que resta de indústria nacional, diante da concorrência de empresas europeias com acesso muito maior a infraestrutura, tecnologia e, em especial, fontes de financiamento. Os primeiros sinais de alerta já surgiram, vindos do Instituto Aço Brasil, que reúne as empresas do setor siderúrgico. “Qualquer abertura sem corrigir assimetrias só agrava a situação da siderurgia”, afirmou, neste fim de semana, o presidente da entidade, Marco Polo Neves.

Em contrapartida totalmente desigual, a União Europeia abrirá ao Mercosul seu mercado de produtos agrícolas. Os comunicados referem-se à exportação de itens pouquíssimo elaborados: suco de laranja, frutas, café solúvel, carnes, açúcar e etanol. É curioso que o próprio texto produzido pelo governo brasileiro fala de modo grandiloquente, porém fornece previsões pífias. A entrada em vigor do acordo elevaria o PIB em algo entre “US$ 87,5 bilhões e USS 125 bilhões, em quinze anos”. Faça as contas: na hipótese mais otimista, seriam US$ 8,3 bilhões a mais por ano, ou... meros 0,4% de aumento na produção nacional, hoje estimada em cerca de US$ 2 trilhões anuais.

Mesmo assim, atenção: nem isso está garantido. Os negociadores europeus cercaram-se de salvaguardas adicionais. Para produtos como carnes, açúcar e etanol, haverá cotas – ou seja, volumes máximos de exportação. Em relação à carne, por exemplo, serão 99 mil toneladas anuais – ou 1,2% do consumo anual do item na UE. Além disso, algo está claramente definido: os europeus poderão, sempre que julgarem necessário, invocar o “princípio da precaução” e bloquear a importação de produtos agrícolas do Mercosul sobre os quais pese suspeita de prejudicarem a saúde ou o ambiente.

Um terceiro aspecto, sempre no capítulo das relações comerciais, ajuda a compreender os interesses a que serve o pré-compromisso assinado sexta-feira. Haverá ampla liberalização do comércio intracorporações. Isso permitirá, a transnacionais instaladas nos dois lados do Atlântico, ampliar a competição entre seus trabalhadores, deslocando a produção para onde forem menores os salários e mais frágeis os direitos trabalhistas. Se a Volkswagen, por exemplo, julgar muito cara, ou muito protegida, a mão-de-obra empregada na produção de freios, no Brasil, poderá importá-los da Eslováquia ou da Hungria. Poderá, alternativamente, “convencer” seus assalariados brasileiros a “optar” entre produzir por menos e perder seus empregos...

II.

Os itens extracomerciais do pré-acordo são mais obscuros, mas nem por isso menos ameaçadores. Os comunicados divulgados até agora fazem menção aos seguintes temas:

“Liberalização” do setor de serviços: É, em todas as economias contemporâneas, o setor mais importante. Divide-se em centenas de ramos que foram, durante décadas, fortemente protegidos. Muitas destas proteções perduram. Um grupo estrangeiro não pode hoje, por exemplo, constituir um escritório de advocacia no Brasil, ou controlar uma empresa de telecomunicações. As transnacionais lutam para eliminar o que resta destes limites. O comunicado lançado pelo governo brasileiro afirma: “O acordo garantirá acesso efetivo em diversos segmentos de serviços, como comunicação, construção, distribuição, turismo, transportes e serviços profissionais e financeiros”...

Endurecimento das patentes e ataque aos medicamentos genéricos: Em dezembro de 2017, quando as negociações estavam em curso, dezenas de organizações da sociedade civil, da Europa e do Mercosul alertaram pra a construção secreta de regras mais draconianas de “propriedade intelectual”. Este endurecimento tornou-se comum em acordos de “livre” comércio. Num tempo de forte crescimento da produção imaterial, as grandes corporações querem fechar as brechas ao controle tecnológico e simbólico que exercem. A primeira possível consequência é a ampliação do direito de patentes farmacêuticas, com restrições à produção de medicamentos genéricos. A nota conjunta emitida em Bruxelas, em 28/6, é extremamente lacônica – mas afirma que o pré-acordo inclui itens ligados à propriedade intelectual.

Concorrências públicas e compras governamentais: O poder de compra e de contratação dos Estados é, tradicionalmente, um instrumento de promoção do desenvolvimento. Ao licitar uma ferrovia ou parque eólico, ou adquirir produtos como medicamentos ou comida para a merenda escolar, os governos podem favorecer empresas ou cooperativas locais, estimulando sua existência e expansão. Há décadas, as corporações lutam para anular esta prerrogativa. Querem impor seu poder e fechar mesmo as pequenas brechas para modelos de produção não-hegemônicos. O tema foi incluído, desde o início, nas tratativas para o pré-acordo agora firmado. Embora sem entrar em detalhes, todos os comunicados lançados a respeito do texto, desde 28/6, sugerem que as transnacionais alcançaram seu objetivo.

“Direitos do investidor” acima dos sociais e ambientais: Os acordos de “livre” comércio firmados nas últimas décadas incluem, quase sempre, a instituição do “direito do investidor” e a constituição de estranhos tribunais, denominados “painéis de solução de controvérsias”. Trata-se de um claro atentado à democracia. O “direito do investidor” significa que as empresas transnacionais instaladas num país qualquer podem reivindicar indenizações, sempre que se julgarem prejudicadas por leis que instituem direitos sociais ou ambientais.

Segundo este princípio, uma corporação mineradora pode, por exemplo, alegar que seus lucros diminuíram, devido à obrigação de construir barragens mais seguras – e que, portanto, precisa ser ressarcida. Pior: muitos acordos de “livre” comércio estabelecem que, nestes casos, as disputas não são resolvidas no âmbito dos Estados nacionais, mas por “painéis de solução de controvérsias” totalmente opacos – não submetidos, portanto, a nenhum controle democrático.

Os comunicados oficiais pós-28/6 não fazem referência a tais painéis, mas a preocupação se mantém. Ao longo das duas décadas de negociação do acordo UE-Mercosul, o tema foi seguidamente suscitado.

III.

Ao referir-se, ainda durante a reunião do G-20, ao pré-acordo firmado em Bruxelas, Jair Bolsonaro deu-o como favas contadas. Mais: previu que teria efeito dominó, desencadeando uma série de outros compromissos de “livre” comércio, entre o Brasil e muitos países do mundo. Nos dias que se seguiram, contudo, tem ficado claro que pode se tratar de propaganda enganosa. Há um longo caminho até a entrada em vigor do que foi anunciado em 28/6. Mais importante: há amplo espaço para resistir; e a batalha que se anuncia se dará tanto nos países do Mercosul quanto na União Europeia.

A fragilidade do pré-acordo começa pela situação precária de seus três protagonistas principais. Na Argentina, Maurício Macri cumpre um fim de mandato melancólico, marcado por empobrecimento inédito, crise cambial e disparada da inflação. As pesquisas eleitorais sugerem que sua coalizão de direita será derrotada nas urnas, em outubro. No Brasil, a popularidade de Jair Bolsonaro caiu para o patamar mais baixo vivido por um presidente em início de mandato, desde a redemocratização. E a própria Comissão Europeia está de saída, com processo de sucessão já aberto, depois de seus integrantes sofrerem fortes revezes nas eleições para o Parlamento Europeu.

Os trâmites para a efetivação do pré-acordo também são complicados. Primeiro, o texto proposto terá de aparecer – algo que estava prometido para o fim de semana e não se deu até hoje. Em seguida, o conjunto da obra será submetido tanto ao Parlamento Europeu quando aos legislativos dos quatro integrantes do Mercosul. Por fim, as cláusulas mais importantes serão novamente levadas aos 28 parlamentos dos Estados-membros da UE.

Este conjunto de instâncias amplia as oportunidades de crítica, resistência e alternativas – embora não se deva subestimar as pressões que serão exercidas, em favor do acordo, pelo grande poder econômico, ruralistas, mídia conservadora e, no Brasil, o próprio governo Bolsonaro. Diversas vozes, aliás, já começam a desafinar o triste coro dos contentes. No Mercosul, onde há ameaça de recolonização, elas são nítidas. Horas depois do anúncio do pré-acordo, o Partido Peronista (“Justicialista”) já apontava os riscos de submissão do país. Alberto Fernández, seu candidato às eleições presidenciais de outubro, fez o mesmo em comício. “Não há o que celebrar”, afirmou. Sua possível vitória significaria, provavelmente, o primeiro grave revés para o pré-compromisso.

No Brasil, as primeiras críticas vieram do ex-chanceler Celso Amorim e dos ex-ministros da Fazenda Bresser Pereira e Ciro Gomes. Mas também os movimentos sociais começaram a se mexer. Ainda em 28 de junho, a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul frisava, em comunicado, sua “absoluta rejeição ao presente acordo, tanto em relação a suas formas quanto a seu conteúdo”.

Se na América do Sul o eixo das críticas é anticolonialista, na Europa o foco é a devastação dos direitos sociais e dos arranjos produtivos baseados em solidariedade, em favor das corporações e das lógicas capitalistas. Os agricultores foram os primeiros a protestar. Defensores ativos da pequena propriedade e de um modelo agrícola que valoriza o orgânico, o local e o cooperativo, eles temem sofrer a concorrência desleal da produção baseada em latifúndio, agrotóxicos, expulsão dos trabalhadores rurais e devastação da natureza.

Mas a resistência está se espalhando – inclusive entre os ambientalistas, que compõem o bloco que mais cresceu nas recentes eleições para o Parlamento Europeu. Ainda nesta segunda-feira (1º/7), Nicolas Hulot, ex-ministro do Ambiente do presidente francês Emmanuel Macron, disparou: “este acordo representa o oposto de nossas ambições para o clima”. Há horas, o próprio presidente foi obrigado a fazer a primeira concessão, apesar de seu compromisso com as políticas neoliberais. Temeroso das reações do eleitorado, Macron prometeu lançar, “nos próximos dias”, uma “avaliação independente, completa e transparente deste acordo, em especial sobre as questões do ambiente e da biodiversidade”...

As reações indicam a possibilidade de ressurgir um cenário político particular. Assim como nas lutas contra o “livre” comércio travadas na virada do século, ele colocaria frente a frente dois blocos de forças e dois projetos de futuro. De um lado, em favor do acordo, as maiores corporações, a mídia cada vez mais atrelada a elas e a maioria dos governos – tanto na União Europeia, quanto no Mercosul. De outro, contra a recolonização e a lógica do grande poder econômico, uma vasta galáxia de movimentos e de atores políticos que resistem dos dois lados do Atlântico – e buscam alternativas baseadas em novas lógicas produtivas e sociais.

Reconstituir este choque de projetos, e em especial a vasta coalizão que pode se articular no segundo polo da disputa, teria enorme efeito transformador e pedagógico — bem na hora em que a crise civilizatória amplia-se e parece chegar a um ponto crucial.

Antonio Martins é jornalista e editor do Portal Outras Palavras, onde este artigo foi originalmente publicado.

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