Correio da Cidadania

Na Colômbia, a luta pela paz está apenas no começo

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Evento marcado para esta sexta, em São Paulo

Na Colômbia há um fio condutor entre a violência desatada desde as entranhas do Estado na década de 20 no século passado - que, por sinal, tem como grande referência o chamado “massacre das bananeiras” de 1928, episódio magistralmente contado pelo prêmio Nobel de literatura Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão - e a violência empreendida hoje também contra as lideranças sociais e ex-combatentes das FARC.

Com efeito, fazendo um pouco de história, constata-se que a essa violência de começos de século 20 segue aquela produzida pelo governo, em mãos do Partido Conservador, contra os camponeses membros ou simpatizantes do Partido Liberal desde o assassinato do caudilho Jorge Eliécer Gaitán, em 1948. A violência contra os liberais, que ocasionou o ressurgimento da guerra de guerrilhas – diga-se de passagem, antes das guerrilhas em Cuba -, se ampliou na década de 60 contra os camponeses organizados para a defesa das suas terras.

Na época, a agressão foi contra as chamadas “repúblicas independentes” e contou com a ajuda direta dos Estados Unidos, que colocou em prática na Colômbia o Plano Laso (Latin American Security Operation), e ensaiou as técnicas de bombardeio e guerra bacteriológica que seriam utilizadas depois no Vietnã entre 1970 e 1974. Essa violência resultou em novas guerrilhas, que posteriormente se unificariam e dariam lugar às FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo).

O regime político colombiano, excludente, antidemocrático, utilizou fartamente a violência, e não somente contra os camponeses. Sob a perspectiva orientanda pelos Estados Unidos de que no país caminhava uma onda insurgente, que havia resultado em tomadas do poder nos países do Cone Sul da América, especialmente em Brasil com João Goulart e Chile com Salvador Allende, incrementou o poder das forças armadas, preparou grupos paramilitares para realizar o chamado “trabalho sujo” de assassinar lideranças sociais - homens, mulheres, trabalhadores, estudantes, sindicalistas e em geral todos aqueles que manifestassem oposição ao regime – e consagrou oficialmente o Estado de Exceção Permanente.

Durante o governo de Júlio Cesar Turbay, final da década de 70 e começos de 80, a repressão contra o movimento social foi parte da cotidianidade, com denúncias internacionais graves pela prática da tortura e o desaparecimento forçado. Observe-se que não havia uma ditadura militar, porém as forças armadas, inspiradas na doutrina da segurança nacional, identificavam o “inimigo interno” nos atores sociais que lutavam para ampliar a democracia e fazer valer o direito a terra, à educação e ao salário digno.

Uma possibilidade para a democracia se deu durante o governo de Belisário Betancur (1982-1986) que abriu caminhos para o diálogo com as FARC. Desse processo surgiu a União Patriótica (UP), partido político que aglutinou um amplo espectro das forças sociais e políticas da época, personalidades, intelectuais e gente das mais diversas áreas do conhecimento e da cultura. Os ex-guerrilheiros começariam, como resultado disso, a ter possibilidades de ingressar na vida política-eleitoral, submetendo-se às eleições.

No entanto, os chamados “inimigos ocultos da paz” – expressão de um dos conselheiros governamentais – prontamente iniciaram a sabotagem dessas primeiras conquistas democráticas. E tais inimigos - os sindicatos dos grandes grupos econômicos, as multinacionais, os grandes latifundiários responsáveis pelo deslocamento de milhares de camponeses das suas terras, setores das forças armadas, com apoio dos Estados Unidos – utilizaram o que selvagemente melhor sabem fazer, é dizer, desatar a violência.

Entre 1986 e 1993, a UP teve dois candidatos presidenciais, 5 senadores, 11 deputados, 109 vereadores, 8 prefeitos e mais de 5.200 militantes assassinados. Os autores, como reconhecem a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Ministério Público da Colômbia, foram membros do exército, grupos paramilitares que atuavam em cumplicidade com o exército, membros da polícia e narcotraficantes aliados eventualmente a membros da força pública e setores do Estado. Assim, o país foi condenado a novos ciclos de guerra, de antidemocracia, exclusão e barbárie.

Essa violência foi incrementada depois do fracasso dos diálogos do governo de Andrés Pastrana (1998-2002) com as FARC na região de “El Caguán”, com a posta em prática do Plano Colômbia, orquestrado desde os setores mais conservadores do Congresso dos Estados Unidos e aceito pelo Estado colombiano.

A política de “segurança democrática” do presidente Álvaro Uribe (2003-2006 e 2006-2010) foi a oficialização de teses extremamente reacionárias e de claro tinte fascista. A primeira daria conta de que na Colômbia não existia um conflito armada, mas uma conflagração terrorista; a segunda, a de que todos os movimentos sociais que tinham reivindicações sociais e econômicas, dentre elas as associações de camponeses e as centrais sindicais e grêmios estudantis estavam instrumentalizados pelas guerrilhas e, portanto, deveriam receber tratamento de ordem pública e ser fortemente reprimidos.

O governo de Santos, iniciado em 2011, representou uma mudança de estilo, tendo em vista a luta nacional e internacional pela paz da Colômbia, bem como a própria necessidade do sistema econômico que precisava iniciar seu processo de adequação às exigências do capitalismo internacional, e se abriu o diálogo com as FARC.

O Acordo de Paz de 2016 entre o Estado e as FARC é a maior conquista popular e da sociedade colombiana desde começos do século 20. O Acordo concentra as aspirações de devolução de terras aos camponeses deslocados pela guerra e a estratégia militar e paramilitar de terra arrasada procurando lideranças sociais nos campos durante décadas; representa o passo para uma democracia avançada, deliberativa e participativa, com garantias para ação da oposição política; a oportunidade para a renovação das relações no campo com a substituição de cultivos de folha de coca por sementes e mercado seguro aos camponeses para a venda de seus produtos; um novo projeto de sociedade, com reconhecimento de setores excluídos das grandes decisões públicas, respeito à identidade de gênero, inclusão das etnias e grupos vulneráveis; um sistema de justiça integral para a memória, a verdade, o reconhecimento das vítimas da guerra e o castigo aos culpáveis por crimes contra a Humanidade, que tem como principal instrumento a jurisdição especial de paz (JEP).

Entretanto, quem poderia se opor a projeto de tamanha grandeza? Porque foram assassinadas mais de 300 pessoas, entre ex-combatentes, lideranças sociais, ativistas de direitos humanos, estudantes, professores, desde os Acordos de 2016 até hoje em dia? Quem os mata e porque os matam?

Novamente, os inimigos da paz fazem presença. Os setores ligados ao ex-presidente Uribe, que age e opina como se presidente ainda fosse, dizem claramente que não devolverão as terras aos camponeses deslocados – mais de 4 milhões de famílias -; setores do exército manifestam opiniões diversas sobre o processo de paz e há denúncias de que continuam com a estratégia dos “falsos positivos” – condenada pela ONU e organizações de direitos humanos, que consiste em informar combates que nunca existiram e apresentar “mortos em combate”, que na verdade são camponeses e jovens assassinados a sangue frio como resultados da guerra.

O paramilitarismo segue nos campos fazendo vítimas; o governo de Duque não coloca em prática os planos de substituição de cultivos e, pelo contrário, retira orçamento para esta finalidade. Finalmente, Duque empreende campanha contra a JEP, a quem acusa de ser parcial, especialmente para minar seu potencial jurisdicional quando o acusado é agente do Estado.

Trata-se de algo sistemático, dirigido a acabar com a força transformadora da sociedade, a tornar vítimas os que sonham e trabalham por uma Colômbia de paz e vida. É uma agressão criminosa contra o país. E o Estado tem de prestar contas, ele é o responsável principal perante a sociedade colombiana e a comunidade internacional.

A luta pela paz na Colômbia não terminou. A luta pela democracia, pelo reconhecimento das liberdades e pelos direitos à vida digna, pela justiça e a reparação, não terminou com os Acordos de 2016. Pelo contrário, apenas começou. Os movimentos sociais continuam em pé, denunciando, organizando jornadas de resistência e alternativas.

Por isso, não há espaço para desencantos nem tréguas para o movimento social. E o espectro político se amplia e fortalece com a unidade de setores como a UP que entra em um acordo com a Colômbia Humana de Gustavo Petro para as eleições de outubro próximo, que devem reciclar os departamentos (equivalentes de estados) e municípios tanto no executivo como no legislativo, e a presença do novo partido das FARC.

Os inimigos da paz não podem nem devem passar. Os aliados dos grandes beneficiados com a guerra podem e devem ser vencidos com a mobilização ampla e unitária na Colômbia e no mundo.


Pietro Alarcón é professor da PUC/SP e representante do Comitê Permanente de Colômbia pela Defesa dos Direitos Humanos.

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