Correio da Cidadania

Queda de Macri, peronismo e a nova ordem na Argentina

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O governo conservador de Mauricio Macri sofreu um literal massacre nas PASO (Primárias Obrigatórias) e o peronismo capitalizou o voto contra o ajuste. Analisemos as aspirações e ilusões das grandes maiorias e a delicada realidade de um país em crise.

As eleições primárias na Argentina significaram um terremoto político e selaram resultados praticamente irreversíveis até as eleições gerais de outubro. Refutou-se – mais uma vez – o prognóstico de todas as pesquisas e consultorias do mainstream que chegaram a falar de empate virtual ou vitória módica dos peronistas da Frente de Todos.

Os resultados praticamente varreram o macrismo em todo o território nacional e também na estratégica província de Buenos Aires. No país, a aliança do panperonismo obteve 15 pontos de vantagem sobre o Juntos por el Cambio (47,56% x 32,17%), enquanto em Buenos Aires, na disputa presidencial, a diferença foi superior a 20 pontos (50,59% x 29,97%). Houve diferenças leves na disputa para governador, mas não se impediu que Maria Eugenia Vidal (governadora da província de Buenos Aires e até ontem a maior bandeira do macrismo) perdesse por 17 pontos para Axel Kicillof, referência da ala kirchnerista da Frente para Todos.

Outras províncias que foram chaves para o triunfo de Mauricio Macri em 2015, como as pertencentes à região central, reverteram os resultados de quatro anos atrás (Mendoza e Santa Fé), ou diminuíram a diferença (como em Córdoba). Os resultados que já tinham sido adiantados na série de eleições provinciais, onde o oficialismo sofrera derrotas “espantosas”, se confirmaram nessas primárias.

No imediato, abre-se uma situação de crise e incerteza pela debilitação extrema do governo, que deverá buscar um pacto de governabilidade que lhe permita chegar vivo até os distantes comícios de outubro (e a entrega da posse em dezembro) e garantir uma transição que não se descontrole pela fragilidade econômica.

Quando nesta segunda, como diz o senso comum, “votaram os mercados”, todas as perspectivas catastróficas foram abertas. De fato, na noite de domingo vazou a reunião de urgência do Gabinete nacional, na qual se falou de eventuais renúncias de ministro e inclusive jornalistas ultragovernistas reclamaram ao vivo e a cores para que rolassem cabeças, logo depois dos primeiros resultados oficiais.

No contexto internacional e regional, os resultados implicam um revés para Donald Trump e o FMI, que foram e são um respaldo chave para sustentar desde cima o governo de Macri. O Fundo rifou grande parte de seu capital disponível para financiar a fuga de capitais argentina e uma vã tentativa de sustentar uma administração que afundou a economia em gigante recessão, combinada com uma inflação recorde.

O pior dos mundos

A brusca mudança de sinal político na Argentina também terá consequências decisivas para o equilíbrio do subcontinente. É também má notícia para o golpeado Jair Bolsonaro e uma demonstração de que o tão propalado “giro à direita” na região é tão real como incompleto.

A votação massiva contra um governo de direita, que desde a corrida desesperada por auxílio do FMI vinha implementando um plano neoliberal ortodoxo, constitui – com toda as deformações do caso – parte de uma relação de forças mais geral. Apesar da governabilidade voluntária brindada por grande parte de quem hoje se opõe aos avanços que conseguiu o governo graças a esta generosa pax concedida, a relação de forças encontrou um canal labiríntico pelo qual se manifestar.

Os resultados expressaram as aspirações (mescladas com ilusões) de se terminar com o ajuste infinito do Cambiemos e desmentiram as “teorias” que falavam de uma “desconexão” entre a economia e a política”, esta reduzida à manipulação em redes sociais, mágicas do big data e à microssegmentação como ferramentas de uma máquina eleitoral infalível.

Se o cenário não mudar dramaticamente antes, na nova etapa política que se abre no país, a relação de forças sociais não tem necessariamente por que se deter nesta foto eleitoral. De fato, os trabalhadores e trabalhadoras que rejeitaram o governo e seu ajuste, muito provavelmente, exigirão o cumprimento de suas demandas e isso marcará a etapa que se abre.

Para conquistar a vitória, o peronismo renovado (ou o kirchnerismo ampliado), colocou como candidato a presidente um dirigente moderado (Alberto Fernandez), que rompeu com Cristina Fernández em 2008 e se opôs a medidas que foram consideradas como mais “disruptivas” do kirchnerismo. Armou-se uma coalizão com os governadores conservadores do peronismo e até com Sergio Massa, que cogovernaram de fato com Macri durante estes quatro anos.

Assim, foi tecida uma impactante vitória tática, mas com desfecho imprevisível. Apesar de Cristina ter emplacado uma pessoa de seu grupo em um cargo chave – a província de Buenos Aires que conquistará Axel Kicillof se repetir os resultados em outubro – a eventual aliança de Alberto Fernandez com Massa (postulado como eventual presidente da Câmara dos Deputados) e os governadores conservadores pode constituir um eixo fundamental para negociar com o FMI e neutralizar toda a reminiscência de “centro-esquerda” que caracterizou o último kirchnerismo.

Muitos comparam esta muito provável volta do peronismo como uma possibilidade de repetir o processo iniciado em 2003, quando o peronismo se apresentou como o “partido da contenção” de um país que tinha explodido em 2001 e começou uma expansão baseada no trabalho sujo de ajuste realizado por Eduardo Duhalde, combinado com um vento traseiro favorável da economia mundial.

A experiência de um peronismo de “centroesquerda” foi diretamente proporcional a tais condições locais e internacionais. No complexo presente, nem as condições da economia mundial nem a situação interna se assemelham. Um peronismo de centro mais conservador se postula mais como “partido da ordem” para domar uma crise aguda.

Neste contexto, os resultados obtidos pela Frente de Esquerda Unida, com a possibilidade de eleger novos deputados em outubro e com presença sustentada no país, são significativos para uma etapa provavelmente de maior conflitividade ou luta de classes que marcará o próximo período.

Depois do sonho da “revolução da alegria”, chegou o pesadelo de uma derrota catastrófica, mas ninguém pode negar que o país golpeado pela crise e condicionado por um endividamento feroz espera por tempos interessantes.

Nota da Redação

Nesta quarta, 14, o governo Macri anunciou um pacote de medidas econômicas contrarrecessivas, como redução da tributação salarial, aumento do salário mínimo, alívio de impostos em famílias que ganham até 80.000 pesos por mês, reajuste em bolsas de estudos, bônus para algumas categorias do funcionalismo público e aumento da Asignación Universal por Hijo, política que concede um seguro social por cada filho a pessoas desempregadas, que trabalham na informalidade ou recebem menos de um salário mínimo por mês.

 

Fernando Rosso é jornalista do portal argentino Izquierda Diario, onde o artigo foi originalmente publicado.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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