Correio da Cidadania

“Não é possível repetir os governos kirchneristas e há uma perda de importância de toda a América Latina”

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As eleições primárias argentinas tiveram uma vitória do peronismo reunido na Frente para a Vitória por surpreendente margem sobre a coalizão Cambiemos, mais identificada com o neoliberalismo. Mais surpreendente ainda foram as medidas econômicas anunciadas pelo presidente Mauricio Macri após a derrota, até que o país declarasse moratória de sua dívida externa, que explodiu na atual gestão. Para comentar o quadro do maior vizinho brasileiro, o Correio entrevistou o sociólogo Carlos de Angelis.

“Tal como em todas as partes do mundo, as pesquisas podem não ter captado corretamente o sentimento dos andares mais baixos da sociedade, dos mais pobres, um setor social que em 2015 e até, talvez, 2017 estava dividido, parte dele tendo votado em Macri”, comentou, a respeito da alta diferença entre as duas candidaturas.

Apesar de ter até trocado o ministro da economia, que por sua vez mal comentou as medidas recentes de combate à crise, de Angelis não visualiza consistência nas medidas anunciadas. De outro lado, afirma que numa eventual presidência de Alberto Fernandez seu espaço de manobra para uma saída de tamanha recessão é mínimo, pois o contexto do boom econômico de dez anos atrás não existe mais e as condições externas colocam os países da região num complexo dilema – e nesse sentido o governo de Bolsonaro só piora as condições gerais.

“Não há uma receita mágica que permita a reativação econômica imediata. Há muita inflação e temos muita capacidade instalada da indústria paralisada. É um panorama complexo de estagflação, mais ainda com muito dinheiro remunerado pelo Banco Central, que não tem capacidade de emissão monetária frente à ameaça de fuga intensa de capitais. O contexto internacional também é difícil. O próprio governo do Cambiemos pegou condições adversas, não era o mundo de Obama, de globalização feliz, mas um mundo de disputas e controvérsias. Não será um país sozinho que evitará este cenário. Não à toa Alberto Fernandez evita grandes promessas”, explicou.

A entrevista completa com Carlos de Angelis pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisou os resultados das eleições primárias argentinas, muito além das previsões e pesquisas pré-eleitorais?

Carlos de Angelis: Em termos gerais, já se esperava a derrota do governo. Tanto por impressões pessoais como pesquisas se sentia o clima negativo, que não era recente, pois vinha desde abril do ano passado, quando houve uma forte desvalorização da moeda. Isto se aprofundou de um dia a outro quando Macri anunciou que pedia ajuda ao FMI. E, para além das posições políticas, há certo consenso na Argentina de que o Fundo não é bom conselheiro.

A partir de então, cresceu o mal estar. O governo tomou uma série de medidas, talvez não explícitas, como aumentar a taxa de juros a níveis insuportáveis, o que aprofundou a recessão e desacelerou a atividade econômica, gerando uma crise de desemprego que até ali não se sentia. Houve uma importante onda de fechamento de pequenas e médias empresas, comércios, o que aumentou a recessão. Desde então, as previsões eleitorais eram ruins para o governo. Ainda assim, não esperava uma derrota com tamanha diferença de pontos, ainda mais na província de Buenos Aires.

Correio da Cidadania: Por quê?

Carlos de Angelis: Primeiro, porque as pesquisas de opinião não capturaram o fenômeno, o que nos gera algumas hipóteses. Em segundo, o governo construiu uma imagem de invencibilidade, pois nunca havia perdido uma eleição. Perdeu em 2015 em certas frentes, mas se construiu essa imagem de que Macri ou Maria Eugenia Vidal eram imbatíveis. Em cima disso, armaram uma campanha muito profissional, muito norte-americana, onipresente, com muita inserção nas redes sociais. Por onde se olhava tínhamos a imagem de Vidal, Macri, Larreta...

Do outro lado, uma campanha muito mais “artesanal”, construída durante a corrida, de Alberto Fernandez, que teve pouco tempo para se apresentar, mas foi eleito por Cristina. De fato ele não era muito conhecido, ainda que tenha sido chefe de gabinete de Nestor Kirchner entre 2003-08, e também no primeiro ano de Cristina, até o momento do conflito com os setores do campo argentino.

As pesquisas refletiram duas coisas: houve um setor que não se dispôs a responder as perguntas, os cerca de 8% que sistematicamente respondiam ‘não sei’ e, talvez, tenham se deslocado para Alberto Fernandez em cima da hora. Outro ponto é que, tal como em todas as partes do mundo, as pesquisas possam não ter captado corretamente o sentimento dos andares mais baixos da sociedade, dos mais pobres, um setor social que em 2015 e até, talvez, 2017 estava dividido, parte dele tendo votado em Macri. O governo do Cambiemos teve boa votação no conurbano bonaerense (região metropolitana), mas agora massivamente este segmento se deslocou para Alberto Fernandez.

Correio da Cidadania: Ainda é possível uma mudança brusca nas eleições de outubro?

Carlos de Angelis: Sempre estamos no mundo social, da contingência. E na Argentina existem muitos tipos de surpresas. Mas a recessão se agrava, todas as condições prévias a que me referi não só continuam como pioram. Pelo que vejo agora, talvez a mudança brusca seja que Alberto Fernandez tenha ido melhor agora do que irá em outubro. Talvez a estratégia de governo é que Fernandez se envolva em algumas discussões, o que no atual momento o coloca em risco. Se a coisa piora, se a moeda se desvaloriza, o governo aceitará pagar um custo político. Será parte da estratégia de governo envolver Fernandez em debates de uma suposta transição. E mostrar ao público que não há acordo total, que se Fernandez ganhar provavelmente Cristina governará etc.

Correio da Cidadania: O que comenta das medidas sociais e econômicas anunciadas por Mauricio Macri na mesma semana de sua derrota?

Carlos de Angelis: Muito estranhas. No dia seguinte, em entrevista, acusou os eleitores pela desvalorização da moeda, acusou o kirchnerismo, mostrou-se muito contrariado, disse que a sociedade não o compreende, enfim, mostrou uma irritação que surpreendeu a todos, tendo certo repúdio do público. Na quarta-feira, pediu desculpas e anunciou uma série de medidas, como devolução de impostos, controle do preço de alimentos, aumento salarial a alguns setores... Medidas feitas com muito pouco estudo, sob emergência, com certa falta de explicações. Medidas vistas como claramente eleitoreiras.

Isso nos deixou confusos, pois Macri é comprometido com política de não interferência monetária, déficit zero nas contas públicas, enfim, a ortodoxia liberal. Depois, anunciou medidas heterodoxas. Trocou o ministro da Economia, Nicolás Dujovne, e o novo ocupante do cargo, Hernán Lacunza, não fez nenhuma menção a tais medidas. Disse que sua função se resumia a conter o dólar. Não desmentiu Macri, mas tampouco as assumiu como parte de plano de mudanças. Disse tratar de fazer a melhor transição possível. A palavra transição não agradou o governo, pois deu a ideia de derrota, de que vem um novo governo, quando ainda temos as eleições definitivas.

As medidas, ainda que bem vindas, parecem isoladas na percepção social. Vejamos: 2000 pesos (aumento anunciado do salário mínimo) é muito pouco em relação a uma desvalorização de 30% no período de seu mandato, de inflação de 53%, onde os salários perderam cerca de 25% de seu valor real. A desvalorização argentina impacta diretamente nos preços dos alimentos e agora vemos uma forte reorientação, como na baixa dos impostos a produtos importados.

O mal estar é grande e tais medidas são breves. Além de tudo, não significam novos planos, ninguém entende que há um novo governo que apresenta um novo projeto. Definitivamente, não há projeto, mas paliativos. E os setores liberais, que querem aprofundar o ajuste, mostraram-se irritados. Ninguém ficou contente, em resumo.

Por isso Lacunza não se alinhou a tal projeto, apresentando suas medidas, discutindo de onde virá a fonte de financiamento, uma reorientação orçamentária etc. São medidas eleitoreiras, pois carecem de um novo e consistente plano.

Por fim, a Argentina está em acordo com o FMI, que não apoia nem um pouco tal tipo de política, capaz de afetar a capacidade de pagamento da dívida. A Argentina tem vencimentos de dívida tremendos para 2020 e 2021. Precisaria de superávit fiscal de 3% a 3,5% e, certamente, estamos longe disso.

Correio da Cidadania: Como analisa os quase quatro anos de mandato do líder do Cambiemos? O que explica a atual situação socioeconômica do país?

Carlos de Angelis: Isso dá uma entrevista inteira. Tento sintetizar. Macri assume no final de 2015, em cenário de forte cansaço do kirchnerismo e suas medidas cambiais, muito contestadas pelos setores médios, sob a promessa de bem estar, pobreza zero, novos direitos, um governo voltado ao fazer; um governo de “pouca política”, mais técnico, voltado à gestão. O discurso foi convincente, Macri, apesar de prefeito de Buenos Aires durante 8 anos, se saiu com o discurso de “não sou político” e usava sua gestão à frente da capital, a mais rica do país, como modelo a seguir.

Vendeu a imagem de que rapidamente encontraria respostas de empresários, investidores produtivos, que reativaria uma economia parada e geraria empregos. Nada disso aconteceu. Liberou o dólar do CEPO, cortou impostos diretos do agronegócio, tomou medidas que chamamos de pró-mercado e, mesmo assim, não vimos efeitos sobre o emprego e a recuperação econômica. Logo no primeiro ano o PIB se reduziu e as expectativas vão sendo alteradas. As promessas seguiram, a sociedade não via os resultados e as incógnitas se acumulavam.

Fez-muita pressão sobre o governo anterior, processos de corrupção, algo muito midiático e usado politicamente, a fim de taxar o governo anterior de muito corrupto, o que seguiu gerando uma imagem positiva a Macri. Em 2017, a economia se reativou basicamente pelo forte investimento estatal, o PIB aumentou um pouco e o governo conseguiu ganhar, por muito pouco, as eleições de província. Depois, começou de fato a preparar seu programa de reformas liberais, mudança do sistema de provisões (benefícios como aposentadorias), o que gerou maior resistência. De toda forma, o maior problema era a alta inflação, o que gerava muito mal estar. É algo endêmico na Argentina, mas a moeda se desvalorizou e seguiu um caminho de muita baixa frente ao dólar, o que afastou investimentos externos.

O governo começou a se endividar demais com fundos internacionais, coisa de 150 bilhões de dólares. E longe de ter uma política de austeridade, Macri criou novos ministérios, aumentou a estrutura estatal, algo malvisto pelos seus próprios eleitores. Posteriormente, ficou claro que não havia capacidade de pagamentos, entrou-se no carry trade, altas taxas de juros pagas pelo Banco Central por seus títulos... O mercado deixou de ver solvência na Argentina, o dólar passou de 20 a quase 40 pesos, a Argentina saiu do programa do FMI e assim a imagem de Macri desandou definitivamente.

Dentro disso, corrupção e segurança pública seguirem como bandeiras; apareceram os “Cuadernos de Obras Públicas”, um processo parecido com a Lava Jato, no qual vieram à luz nomes de empresários ligados ao seu governo, familiares, o que causou desconcerto no próprio empresariado. Ainda por cima tivemos uma seca que prejudicou as exportações agropecuárias. Assim, tivemos um processo de recessão muito forte e do qual não houve recuperação.

Esse é um resumo de um governo que gerou muitas expectativas. Macri, longe de compreender com empatia a situação, pede que os cidadãos “se aguentem”. As tarifas fortemente subsidiadas pelo Estado tiveram subidas exuberantes de preços e isso gerou um mal estar em pessoas que tiveram de reduzir seu consumo para pagar por luz, água, coisas que não se adiam. Assim chegamos às eleições deste ano.

Correio da Cidadania: Para além das duas coalizões dominantes, houve outras manifestações importantes dos resultados eleitorais?

Carlos de Angelis: Pouco, pois as duas principais propostas têm quase 80% de adesão. Apesar dos reclamos por uma “terceira via”, isso nunca teve grande repercussão. Nomes como Miguel Ángel Pichetto e Sergio Massa, que acabou sendo o primeiro candidato a deputado por Buenos Aires na chapa de Fernandez, chegaram a soar. Tais alternativas foram mais balões de ensaio que acontecimentos reais.

Correio da Cidadania: Numa eventual volta da Frente para a Vitória ao poder, que tipo de governo podemos esperar? Será possível repetir a fórmula do período kirchnerista?

Carlos de Angelis: É difícil responder. Não tenho bola de cristal, mas posso dizer que as condições internacionais são outras. Teremos uma posição consolidada do Cambiemos, uma parte da sociedade fará oposição ferrenha desde o primeiro minuto de um governo Fernandez; o plano externo é muito complexo, pois há uma pergunta a responder: o FMI pode refinanciar a dívida? Isso já se fez, mas a questão é que o fundo não aceitaria um plano econômico expansivo, com déficit primário.

A Frente também tem setores menos homogêneo, pois tivemos lutas, rupturas, reconciliações, e se discute a preponderância que teria Cristina. Acho que dificilmente ela pode tomar as rédeas do governo. Seria muito conflitivo, não há uma situação que permita isso. E tampouco há uma receita mágica que permita a reativação econômica imediata. Há muita inflação e temos muita capacidade instalada da indústria paralisada. É um panorama complexo de estagflação, mais ainda com muito dinheiro remunerado pelo Banco Central, que não tem capacidade de emissão monetária frente à ameaça de fuga intensa de capitais.

O contexto internacional também é difícil. O próprio governo do Cambiemos pegou condições adversas, não era o mundo de Obama, de globalização feliz, mas um mundo de disputas e controvérsias. Não será um país sozinho que evitará este cenário. Não à toa Alberto Fernandez evita grandes promessas. Não tem condições de baixar a inflação rapidamente, buscaria formas intermediárias de acordos com empresas e sindicatos...

Penso que o kirchnerismo já não é aquele, pois o contexto é diferente e houve muitas críticas. Terá de escolher uma agenda de centro, com certa moderação, inclusive buscando moderar figuras extremas que podem se manifestar de seu lado, mesmo que tenham menos voz atualmente. Não vai ser o kirchnerismo dos três governos anteriores. Alberto Fernandez reivindica bastante o primeiro governo, de Nestor, quando Roberto Lavagna foi ministro da Economia. Especula-se a possibilidade de ele, que também foi candidato a presidente, se integrar ao governo, mas a situação é muito instável e até outubro podemos ver a piora da crise.

É difícil avaliar o que teremos daqui até o fim do ano, que dizer a partir do próximo período.

Correio da Cidadania: Para o público brasileiro, o que você comenta das declarações do presidente Jair Bolsonaro a respeito do processo eleitoral argentino? Elas podem exercer algum tipo de influência?

Carlos de Angelis: Suas declarações foram dissimuladas pela imprensa, pois é evidente que Bolsonaro não tem uma boa imagem na Argentina, salvo em setores muito à direita, que por aqui não têm grande importância. Suas declarações não ajudaram em nada Macri, feriram regras tradicionais da democracia, enturvando a relação entre os dois países.

Fernandez também tem relação com Lula, até o visitou e Curitiba, num gesto político importante. A relação entre Bolsonaro e Fernandez é negativa e a influência de Bolsonaro sobre o quadro eleitoral é muito negativa, pois a Argentina está longe de um processo de radicalização; está mais próxima do centro. Se realmente houver uma política ativa, como o pedido pela liberdade de Lula em foros internacionais, pode haver bastante confrontação.

Sobre a Venezuela, Fernandez deve buscar se aliar às posições de México e Uruguai, isto é, de pouca interferência externa sobre o país. Já Macri está muito acoplado a Trump e a Colômbia neste tema, buscando a saída, por bem ou mal, de Nicolas Maduro.

Correio da Cidadania: Como enxerga o plano geral da América do Sul neste momento? A onda conservadora tem consistência duradoura?

Carlos de Angelis: América Latina vive uma espécie de transição. Tem um lento crescimento em parte pelo estancamento das commodities. Teremos eleições no Uruguai, Bolívia, com prováveis reeleições dos atuais governos. No Peru a situação é complexa pela corrupção, no Equador a questão do petróleo dificulta o plano interno... Lopez Obrador sofre pra deslanchar no México, tratando de conciliar as ideias que tinha sobre mudar o padrão de desenvolvimento, mas com muitos problemas com os EUA. Tem o barril de pólvora da Venezuela, onde Maduro é insustentável, mas tem uma relação de sustentação com as forças armadas...

Creio que a onda conservadora perde força, pois, como vimos em Brasil e Argentina, não se dão as condições de reativação da economia. Calcula-se que um aumento do PIB brasileiro leva o argentino de roldão, mas o Mercosul está virtualmente morto, o acordo com a UE já é quase letra morta dada a posição de Macron frente aos produtos alimentícios daqui... No Chile, Piñera também ficou abaixo das expectativas de recuperação econômica. O panorama é difícil, o crescimento é quase nulo, como vemos nas duas maiores economias. Na Colômbia, apesar das críticas e conflitos que seguem, há um processo de pacificação que talvez gere atração de investimentos...

Mas quero destaco algo: há uma perda de incidência mundial da América Latina. Não é um polo que chama à industrialização. E com a aliança de Bolsonaro com Trump isso se acentua, pois se abandona uma política externa autônoma e parece que voltamos ao século 20, com tensões, golpes militares. A vitória de Alberto Fernandez pode simbolizar uma volta do populismo, com um golpe moral sobre governos conservadores, mas não depende dele mesmo encontrarmos um caminho para melhorar a situação geral, a fim de voltar a uma condição de crescimento, expansão das exportações, o que hoje parece distante.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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