"Não vejo perspectiva de a agenda de Piñera dar certo; tudo continua em aberto"
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- Gabriel Brito, da Redação
- 25/10/2019
Dias depois da explosão da revolta popular no Equador, o mesmo sucedeu no Chile, o famoso laboratório das políticas liberalizantes que voltaram à moda no continente. Tal como no Brasil de 2013, o aumento das tarifas do metrô foram o catalisador de uma revolta social que marca o cansaço da cidadania com o alto custo de vida imposto pelo processo de privatização mais abrangente das sociedades sul-americanas. Para comentar as jornadas de protesto que ainda acontecem e as respostas oficiais, o Correio entrevistou a socióloga e pesquisadora Vivian Souza, residente em Santiago.
“As pessoas estão na rua, em resumo, pelo conjunto da obra. Os cartazes que levantam nas ruas são polissêmicos, abordam vários temas, tais como o sistema de aposentadoria privado, com capitalização individual, no qual 80% dos aposentados ganham menos de um salário mínimo; a saúde, 100% privada, que endivida muito as pessoas quando precisam se tratar; a Constituição, de 1980, escrita pela ditadura Pinochet, que ainda vigora e amarra todo o sistema neoliberal no Chile, pois impede reformas profundas, de caráter social”, explicou.
No entanto, se a insatisfação popular é grande, a dificuldade em traduzi-la numa agenda política é similar, dado que o país vive sob um forte consenso das principais forças políticas em relação às macropolíticas ditadas pelo mercado.
“Existem várias propostas, várias progressistas, mas é difícil mostrar um consenso em torno de pautas específicas para que se saia de uma crise imediata. O governo apresentou a agenda para conter a crise, mas não mexe um palito do que é a torre do neoliberalismo”, analisou.
Apesar de estarmos diante de ventos que passam por todos os países latinos numa sintonia indisfarçável, a socióloga considera difícil prever qual lado do espectro ideológico será capaz de capitalizar o momento.
“Como pessoa de esquerda, penso que este espectro deve estar à altura das exigências populares e apresentar alternativas. Alguém precisa matar a situação no peito e no Brasil foi uma direita fascista quem o fez. Por isso não arrisco prever os desdobramentos do que aconteceu aqui”.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O que acontece no Chile e por que milhares de pessoas estão na rua?
Vivian Souza: As passagens de metrô subiram e os estudantes, desde a semana passada, convocaram uma evasão massiva, estimulando as pessoas a pularem as catracas. Juntaram-se em massa pra fazer isso e a resposta do governo foi a repressão e criminalização dos estudantes, seguida de forte militarização das estações. Quando o pessoal chegava, a polícia atuava imediatamente, usando gás lacrimogêneo dentro da estação etc.
A partir de quinta-feira passada, as evasões foram crescendo, assim como a repressão. Na sexta, a situação ganhou outro corpo. Pessoas que se deslocavam entre uma e outra estação não podiam descer, porque havia formação militar dentro das estações, proibindo o uso de estações onde se previa evasão em massa. Isso gerou um colapso do sistema de transporte de Santiago, muito dependente do metrô. Os ônibus não deram conta, muita gente voltou a pé pra casa e começaram os enfrentamentos de rua com a polícia.
A partir de então, deixou de ser o pula-catraca pra se tornar uma pauta política mais ampla. Na sexta à noite Piñera decreta Estado de Emergência, ou seja, militares nas ruas, e a coisa escalou. As pessoas começaram a se levantar contra a repressão policial-militar.
As pessoas estão na rua, em resumo, pelo conjunto da obra. Os cartazes que levantam nas ruas são polissêmicos, abordam vários temas, tais como o sistema de aposentadoria privado, com capitalização individual, no qual 80% dos aposentados ganham menos de um salário mínimo; a saúde, 100% privada, que endivida muito as pessoas quando precisam se tratar; a Constituição, de 1980, escrita pela ditadura Pinochet, que ainda vigora e amarra todo o sistema neoliberal no Chile, pois impede reformas profundas, de caráter social.
Correio da Cidadania: Portanto, há relação com as manifestações de anos recentes sobre questões de educação, saúde e previdência social, amplamente apresentadas ao público das mídias de massa como as privatizações que “deram certo”?
Vivian Souza: O movimento teve a passagem do metrô como disparador, mas o custo de vida, a falta de oportunidades, a sensação de desigualdade e a insolência dos governantes foram fatores de impulsão. Em especial no último governo vimos declarações controvertidas de seus representantes, tais como: “o trabalhador que madrugar paga menos”, porque a tarifa é mais baixa antes das 7 da manhã; “quem quiser dar flores de presente pode aproveitar que neste mês elas baixaram 4%; “as pessoas chegam cedo em posto de saúde porque gostam de fazer social”...
Por fim, na sexta, enquanto as pessoas não conseguiam chegar em casa, com o transporte em colapso, linhas fechadas, estações destruídas, o presidente foi fotografado comendo pizza num restaurante de luxo, no Bairro Alto, com seu neto, que era aniversariante. Depois de declarar Estado de Emergência mostra essa indolência perante a realidade, o que também é um grande fator de mobilização social.
Sem dúvida há a relação apontada. Essas privatizações não deram certo. O Chile tem boas universidades, mas poucas acessíveis. A massa de jovens tem de ir pra instituições privadas mais caras que as melhores universidades e fica muito endividada. Não existe nenhuma forma de educação superior gratuita no Chile. Teve uma reforma da Bachelet que concede gratuidade ao estrato social mais baixo, mas não existem políticas sociais universais. O sistema de previdência, como já dito, tem a maioria dos aposentados recebendo menos que um salário mínimo etc.
Correio da Cidadania: Vemos análises a respeito do perfil dos protestos que muito se assemelham, não apenas pelo tema da tarifa de transporte, com o que se descreveu dos manifestantes brasileiros de junho de 2013 e sua dinâmica de atuação. Como você enxerga isso de perto, qual o perfil organizativo e militante dessas pessoas?
Vivian Souza: Tem pontos semelhantes. Talvez o mais diferente seja o fato de que no Brasil era um governo dito de esquerda, enquanto aqui no Chile temos a direita no poder.
Mas por enquanto o perfil mais ativo e militante das pessoas na rua tem um pouco de tudo. Há os sindicatos – mas só 20% da população é sindicalizada -, agrupações profissionais como de médicos e jornalistas... De todo modo, penso que a maior parte das pessoas é autoconvocada, com mais ou menos formação política.
Ainda não vi aquela ambiguidade vista em 2013 no Brasil, um flerte com a antipolítica e ideias fascistizantes. Mas precisamos continuar a acompanhar.
Correio da Cidadania: Outro aspecto que se destaca nas análises é a questão do cansaço com a política institucional em uma democracia estável há 30 anos, num contexto onde esquerda e direita institucionais se revezam no poder em termos pacíficos. Qual a percepção das pessoas a respeito deste modelo de democracia, em sua análise?
Vivian Souza: Existe uma crítica forte à esquerda que já ocupou o poder no período pós-ditadura, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, pela coalizão Nueva Mayoria e também a Concertação. Vejo pessoas dizendo “que bom que não são os partidos nas ruas”. Existe a Frente Ampla, uma esquerda que nunca esteve no poder, e talvez haja menos resistência em relação aos personagens desta Frente.
Mas, claro, a sensação das pessoas é que tanto esquerda como direita jogaram o jogo do neoliberalismo, sob a Constituição de 1980, isto é, os cimentos da ditadura seguiram intactos. Há, de fato, um questionamento profundo das instituições. E existe uma parte da esquerda que tem legitimidade, por nunca ter ocupado o poder. A candidata da Frente Ampla ficou em terceiro nas últimas eleições, de modo que é um ator político relevante.
Correio da Cidadania: Considera que a suspensão do aumento é suficiente? Como analisa a segunda presidência de Sebastián Piñera mais especificamente?
Vivian Souza: Ele tenta apresentar uma agenda social, como por exemplo uma reforma de pensões que tenta tramitar no Congresso. Mas pelo que vejo em análises é uma reforma que pode ter efeito em 30, 40 anos, ou seja, não resolve a vida presente dos idosos em situação precária. Seriam reformas de um mesmo modelo a fim de renovar sua legitimidade.
Há um foco no crescimento econômico, que está lento. Apesar de o país não estar numa crise econômica do mesmo porte de outros países latinos, mas a pujança econômica prometida não se concretiza.
Por um breve momento, pareceu que Piñera assumia uma liderança regional: ele conseguiu “dialogar” com Bolsonaro; foi ao G7, falou com Macron pra segurar a onda em relação ao brasileiro; ganhou um prêmio ambiental no último encontro da ONU; lideraria a Conferência Climática (COP) de Santiago. Enfim, tinha uma posição que agora fica sob questão.
A suspensão do aumento não foi suficiente para tirar as pessoas da rua, elas nem falam mais do tema. Porém, vejo uma dificuldade de amarrar a pauta das ruas. Existem várias propostas, várias progressistas, mas é difícil mostrar um consenso em torno de pautas específicas para que se saia de uma crise imediata.
O governo apresentou a agenda para conter a crise, mas não mexe um palito do que é a torre do neoliberalismo. Por exemplo, o presidente não é capaz de anunciar o aumento do salário mínimo. Diz que quem recebe um mínimo ganhará um subsídio do estado de 50 mil pesos, coisa de 200 reais. Traduzindo, o Estado subsidia o setor privado no sentido de garantir um pouco de aumento, isto é, cobre as costas do empresariado.
Não vejo perspectiva de a agenda do governo dar certo e tudo continua em aberto.
Correio da Cidadania: Como todas as questões aqui debatidas se relacionam com o atual momento dos países sul-americanos? O que se pode sintetizar deste conjunto continental?
Vivian Souza: Difícil imaginar. Cada país vive sua particularidade. O que aconteceu no Equador foi muito grande, com todos marchando a Quito. No Chile, as manifestações estão distribuídas por todo o país. Talvez pelo fato de no Equador existir um catalisador mais objetivo, no caso, o pacote de medidas que aumentava o combustível, mas tinha embutido as reformas trabalhista e tributária. Aqui não é exatamente contra a agenda do FMI, que está instalada desde 1973, e é uma agenda acordada entre todos os grupos políticos, inclusive os que governaram após a ditadura.
Não arrisco afirmar uma coerência entre todos esses fenômenos, a exemplo do questionamento da eleição do Evo Morales na Bolívia, tampouco com a possível volta do peronismo na Argentina, o Brasil etc.
Como pessoa de esquerda, penso que este espectro deve estar à altura das exigências populares e apresentar alternativas. Alguém precisa matar a situação no peito e no Brasil foi uma direita fascista quem o fez. Por isso não arrisco prever os desdobramentos do que aconteceu aqui.
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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.