Correio da Cidadania

#ChileDespertó, mas de quem são os protestos?

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As desculpas de Piñera, o recuo no aumento do metrô, a mudança de gabinete, o morno aumento da remuneração (que não configura formalmente um aumento no salário) e os outros projetinhos propostos pelo governo poderiam até ter um sabor de vitória para o povo, inclusive para a esquerda no Chile. No entanto, alerto: não há nada para celebrar. Esta história a vivemos em outras paragens, em outros momentos. Aqui mesmo no Brasil.

#ChileDespertó x #JornadasdeJunho

Recordemos: em junho de 2013 o Brasil foi sacudido pelo que chamamos “Jornadas de Junho”, uma explosão de protestos como não se via desde as “Diretas Já”, no princípio dos anos 80. Se no Brasil o estopim foi o aumento de 20 centavos no transporte público, no Chile o detonante foi um aumento menor ainda, de 16 centavos, restrito ao horário de pico (tarifas diferenciadas segundo a hora) e não mudava o preço para estudantes nem idosos, isentos desta diferenciação. E quem saltou roletas e deu início a tudo isso? Sim, os estudantes. Dizem que por solidariedade com os pais, veja só.

Não obstante, o que veio em seguida todos sabemos: intransigência dos governos de turno, repressão abusiva dos protestos, cobertura parcial da mídia - entre omissão da pauta e a ênfase na violência, criminalizando os protestos. Esse quadro gerou, claro, mais protestos. Piñera está gradualmente se destacando como um eficiente incendiário, daqueles que apaga fogo com gasolina. Foi assim em 2011, está sendo assim em 2019.

Uma diferença chave com as Jornadas de Junho é que no Chile temos um governo de direita, portanto, a mídia não tem interesse em dar a voltinha que deu no Brasil e começar a apoiar os protestos, soprando o fogo pro lado do governo. O que a televisão tem feito aqui, de forma estranhamente concertada, é que a cada passo do governo parece mudar a pauta.

Antes do pronunciamento de Piñera: destruição, terror, violência, caos social. Depois que o presidente anunciou as medidas cosméticas habituais: que lindos os protestos massivos e pacíficos! Que beleza voltar à normalidade. Spoiler: normalidade? Só pra quem tá sentando nos bairros protegidos ou dentro de quatro portas sem janelas fazendo conta no Excel, como o presidente.

Os protestos no Brasil, naquele momento, foram se propagando ao mesmo tempo em que se despolitizavam. Afloraram demandas difusas e pouco concretas como “educação e saúde padrão FIFA” ou “fim da corrupção”, #demandasdeInstagram: muitos likes e pouca profundidade política. O Movimento Passe Livre, sabiamente, se desmarcou porque percebeu que os protestos já não estavam em torno a suas demandas originais; haviam sido convertidos em uma sopa de demandas vagas com ares de classe média conservadora.

O que veio depois já sabemos: a cooptação dos protestos por forças da nova direita (MBL e companhia) e em eficaz direcionamento do descontentamento cidadão ao antipetismo. Golpe após golpe, o PT foi brutalmente retirado da presidência: primeiro disfarçado de impeachment, logo com a prisão política de Lula. Não fosse a #vazajato, provavelmente o PT estaria encurralado por esta quadrilha de haters.

Foi então que chegou Temer. Por um lado o (pe)emedebista avançou bastante o projeto neoliberal, com reformas impopulares que provavelmente somente um presidente não eleito estaria disposto a realizar. Mas o Bolsonaro é o resultado mais concreto e a faceta mais desprezível de todo este processo.

Em outras palavras, toda aquela energia caótica de demandas cidadãs centradas no descontentamento foi canalizada por grupos de direita radical, enquadrada de forma altamente imprecisa como antipetismo e instrumentalizada para a ascensão de representantes daquilo que principiou os protestos: uma agenda conservadora, aumento da injustiça social e uma importante crítica à precariedade dos serviços públicos.

E o Chile?

Vejo um caldo de descontentamento similar ao que surgiu no Brasil, que não está centrado na privação, nos mais desamparados, mas sim na generalizada dificuldade que tem o chileno de uma grande variedade de estratos sociais, em ter condições de atingir um bom nível de vida e com algo de tranquilidade financeira e social.

A maior síntese desse quadro é a propaganda enganosa dos 18.000 dólares em média de PIB per capita (só perde para a Costa Rica na América Latina). Três aspectos se destacam nesta falácia:

1) grande parte deste PIB é uma grande bicicleta financeira (não muito diferente da que usaram para o golpe contra a Dilma), mais de 60% da população tem dívidas, dos quais mais de um terço é morosa;

2) outra distorção evidente é a concentração de renda em um país em que 0,1% da população (10 mil pessoas) detém 20% da renda.

3) O custo de vida é muito superior a de outros países da região com a qual o Chile costuma ser comparado e até mesmo o salário mínimo de mais de R$ 1.600 fica muito abaixo da linha da pobreza para uma família de 4 pessoas (BRL 2.400, 1,5 vezes o salário mínimo).

 

Neste contexto, vejo tentativas de organizar as demandas, em especial por parte da Unidad Social (www.unidadsocial.cl) composta por 100 organizações no momento em que escrevo este artigo. No entanto vejo uma direita “alternativa” personificada em José Antonio Kast, pinochetista, opus dei, xenófobo. Não é um Bolsonaro - talvez cada país tem o Bolsonaro que merece - mas é visto como “alternativo”, apesar de, como Jair, ser personagem já presente na política chilena há mais de 20 anos.

Os movimentos sociais e suas organizações, através de iniciativas como a Unidade Social, devem estar atentos para evitar que a energia das ruas seja capturada pelo para-raios da direita, por aqueles que defendem aprofundar exatamente aquilo contra que o povo despertou: a radicalidade de um neoliberalismo que prostituiu os serviços públicos com as mãos sujas dos interesses privados, da saúde à previdência, dos presídios à água.

Neste sentido, é uma vantagem que o país esteja sob tutela da direita “moderada” de Piñera. Assim, não é um risco a cooptação da mídia para produzir um quebre democrático como o impeachment no Brasil. Porém, é difícil saber qual o nível de diálogo a que está disposto o prepotente e autocentrado presidente Sebastián Piñera, quem condenou a ditadura, mas jogou os militares contra o povo, alegando que havia uma “guerra contra um inimigo poderoso”.

As evidências desta afirmação tem a mesma veracidade do Plano Cohen. O discurso de segunda, 28, quando se produziu a mudança de gabinete manteve o tom “ordem e progresso”, a pseudo-humildade da escuta e lançou um programa de consultas cidadãs. Se este tipo de procedimento já foi desgastado por um fraco governo socialista de Bachelet, não consigo acreditar que possa ser diferente sob o mando do empresário-presidente, acostumado a atropelar procedimentos para obter resultados populistas.

Já ganhamos os 100 metros. Agora é preparar-se para a maratona

As eleições presidenciais são só em 2022. Como a sociedade pode balancear pressão política contra um presidente que não escuta, com um projeto de longo prazo, isso é um mistério. O que se vê nas ruas é que a paz social não é um projeto de um povo cansado de desigualdade, é um discurso daqueles que não querem refletir sobre a origem estrutural de seus privilégios.

Um bom ponto de controle serão as eleições locais para “prefeito” das comunas (que são unidades territoriais compostas por um grupo de bairros) e governadores (em uma república que não é federativa, portanto, sem grande poder). Servirá como termômetro, não só de quem está colhendo os frutos políticos do descontentamento, como também será um momento de descompressão social. Não obstante, em um país em que o voto não é obrigatório, continua sendo um desafio fazer qualquer previsão.

Leia também:

"Não vejo perspectiva de a agenda de Piñera dar certo; tudo continua em aberto" – entrevista com Vivian Souza, socióloga brasileira residente no Chile

Marcelo L. B. Santos é pesquisador Centro de Investigação e Documentação da Faculdade de Humanidades e Comunicações (CIDOC-FHYC) da Universidad Finis Terrae, de Santiago, Chile.
Twitter: @celoo 

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