Notas sobre a Bolívia
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- Raphael Sanz, da Redação
- 28/11/2019
No último mês a Bolívia esteve em evidência nos noticiários, como não poderia deixar de ser, devido a uma forte crise política que se desenhava há anos, mas que se manifestou claramente após a contestada vitória eleitoral de Evo Morales para seu quarto mandato consecutivo, em 20 de outubro.
Acusado de cometer fraude eleitoral, o governo enfrentou fortes manifestações desde o pleito, que resultaram na queda de Evo em 11 de novembro, com a renúncia e sua posterior ida para o México, ao mesmo tempo em que toda sua linha sucessória também renunciou, às pressas, em meio a denúncias de ataques às suas casas e famílias.
Isso ocorreu sob forte pressão das oligarquias ligadas ao agronegócio da região oriental do país, representadas por Luis Camacho (El Macho), líder do Comitê Cívico de Santa Cruz de la Sierra e ex-membro das Ligas Juvenis Cruceñas. O grupo com fortes tendências neofascistas, já havia protagonizado uma séria revolta separatista e anti-indígena em 2008. Para ser derrotada, foi necessário que o governo firmasse pactos que mais tarde o fariam perder apoio popular. Também surge aí o papel dos militares, na figura do general Williams Kaliman, outrora afeito ao presidente e ‘lutador em prol do proceso de cambio’, que sugeriu a saída de Evo.
Mas não é apenas a direita da parte leste do país, ligada ao agronegócio e às igrejas neopentecostais, que estava descontente com o governo. Como veremos, os protestos contra a reeleição de Morales, que desencadearam a crise, também expressaram um tremendo desgaste político do oficialismo em suas próprias bases. Esse desgaste se deve a uma série de conflitos e erros que o governo cometeu ao longo dos anos, e que teve como ponto de partida uma repressão a uma marcha indígena em 2011 e, como episódio recente, o não reconhecimento do referendo de 2016 que o impedia de se reeleger outra vez. A esse último, respondeu com cinismo, dizendo que a reeleição seria um direito humano.
“O que começou como um conjunto de mobilizações, que abarcavam distintos setores sociais, por uma contagem transparente de votos terminou com um governo de fato. Isso foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional, o mesmo que avalizou uma nova postulação de Evo Morales, passando por cima do referendo de 2016 e da nova Constituição”, definiu Pablo Stefanoni em artigo traduzido pelo Correio da Cidadania (*1).
Aos fatos
Dois dias antes da renúncia, Evo denunciou que, em suas palavras, havia sofrido tentativa de golpe de Estado por conta de um ‘motim policial’. Realmente houve um motim policial, no qual os agentes não agiram na contenção das manifestações que pediam a saída do governo.
No dia seguinte saiu o relatório da OEA sobre a auditoria das eleições bolivianas. Resumidamente, dizia que ocorreram fraudes na contagem de votos e que não poderia ocorrer a vitória de Evo em primeiro turno ainda que ele terminasse à frente de Carlos Mesa. O relatório não criminalizou ninguém, alegando que esse não era seu papel, mas o das autoridades eleitorais do país. Ainda recomendou que as eleições fossem anuladas e que novas eleições fossem realizadas com observação internacional.
Com o relatório em mãos, e após haver prometido respeitá-lo dias antes diante dos holofotes da imprensa, Evo foi à TV e prometeu uma reforma nos órgãos eleitorais seguida de novas eleições.
Horas depois, o Comandante Williams Kaliman fez um pronunciamento, também na televisão, fardado e cercado por outros militares de patente, sugerindo que Evo renunciasse. Algumas figuras do Congresso deram declarações similares. Outro que não apenas sugeriu, mas exigiu a saída de Evo com uma bíblia em uma mão e uma carta de renúncia pronta para assinar na outra, foi El Macho Camacho, que nesse momento tomava de assalto a liderança da oposição do moderado Carlos Mesa.
Até mesmo a Central Obrera Boliviana, importante base do governo, também sugeriu que ‘o nosso governo’ renunciasse em nome da paz no país (*2). E se pensarmos em um governo que durante 13 anos dizia publicamente que sua força jazia nas bases, no povo organizado, isso foi um golpe e tanto. Mas é claro que a ‘sugestão’ do general Kaliman foi o que realmente fez com que Evo renunciasse no dia 11 de novembro e deixasse a Bolívia rumo ao México em uma viagem de avião repleta de incidentes no mínimo vergonhosos, como o impedimento de aterrissagem para reabastecimento do avião no Peru e no Brasil, entre outros.
Pouco mais de 24h após sua chegada ao México, Evo deu uma entrevista ao El País (*3) em que reiterou todas as suas declarações e, entre outras coisas, reconheceu a necessidade de não sair candidato nas novas eleições cogitadas após a suposta anulação das últimas. Enquanto isso, vazio, o Palácio Quemado via a ascensão de Jeanine Áñez à presidência, o que para Evo configura golpe de Estado por ser uma nomeação que não respeitou a linha sucessória, nem os ritos burocráticos previstos pela Constituição do Estado Plurinacional.
Mas o projeto de Añez e Camacho é exatamente esse: desmontar o Estado Plurinacional. Basta ver a quantidade de notícias a respeito das queimas de Wiphalas (bandeira de origem andina) feitas por sua base e das inúmeras agressões a indígenas e camponeses, sem falar em declarações que equiparam a divindade ‘Pachamama’ ao demônio da religião cristã, entre outros absurdos. E foi isso o que se seguiu, como podemos comprovar em uma série de relatos da comunicadora social aymara Yolanda Mamani (*4) sobre conflitos e agressões a indígenas na região de La Paz após a renúncia de Evo. Ou mesmo neste texto de Maria Galindo, do Mujeres Creando (*5), que, além do relato, ainda analisa a manobra com a qual a direita se utilizou da insatisfação popular para entronar-se.
Diz ela: “O que está acontecendo na Bolívia é a necessidade de transformar um problema político em um cenário de conflito policial-militar de morte no qual vença o mais forte: um cenário de guerra civil. Um cenário onde existam apenas dois bandos pelos quais é preciso tomar partido. Para isso, usam da psicose social cheia de notícias falsas e o acelerado clima de estereotipia de tudo. O racismo, a homofobia e a misoginia são a gasolina para incendiar a sociedade”. Não parece um certo país vizinho?
No último final de semana, Michele Bachelet, alta comissária de direitos humanos na ONU, disse que ‘o uso desproporcional e desnecessário da força pela polícia e pelo exército podem forçar a situação da Bolívia a sair do controle’. Bachelet havia ignorado, ao dar essa declaração, que a situação já havia saído do controle, uma vez que até o último domingo (24) já tinham morrido 23 pessoas em confrontos com a polícia, como apurou a reportagem do Xadrez Verbal (*6), além de 715 pessoas feridas nos confrontos. Além disso, acertadamente, Bachelet recriminou a medida da presidenta em exercício, que prometeu impunidade a policiais que agissem na contenção dos protestos.
Houve confrontos em Cochabamba entre policiais e cocaleros na semana anterior, que deixaram 8 mortos e pelo menos 20 feridos. No mesmo final de semana, Jeanine Áñez assinou o decreto que libera cerca de 20 milhões de reais para polícia e instituições militares adquirirem equipamentos, segunda ela, para recuperar materiais destruídos durante as manifestações.
Enquanto isso, a delegada da Defensoria do Povo do Departamento de La Paz, Teresa Zubieta, expressou preocupação “ante a barbárie”: “O fato de sair às ruas e fazer suas próprias reivindicações por acaso precisa ser respondido com a perda de suas vidas?”, questionou. Em seguida denunciou: “Estão matando nossos irmãos como se fossem animais”(*7).
País dividido
Como se sabe, a Bolívia é um país com uma democracia historicamente muito frágil, que sofreu com diversos golpes e ditaduras após sua independência e antes disso foi uma colônia ultraexplorada pela Espanha. O capitalismo como o conhecemos só existe porque montanhas bolivianas, mexicanas e brasileiras foram esvaziadas e todo seu ouro e prata fizeram um longo percurso até se instalarem nos cofres ingleses e servirem como o ‘start’ da revolução industrial por ali. Uma dessas montanhas, senão uma das principais e mais ricas em prata, era a de Potosí. Essa história é contada com maestria nas Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, logo no início da obra.
Pois bem, Potosí era o centro da Bolívia colonial, onde as coisas aconteciam. Com o esgotamento da montanha, a cidade caiu em desgraça. A montanha hoje só dá cobre e alguns outros metais menos valorizados, e o trabalho ali é tocado por mineiros independentes organizados em cooperativas locais. Eles têm acesso nessa região (e em outras do país) a material pesado de mineração. Por exemplo, dinamite. Você vai a uma lojinha de bairro e compra dinamite por valores acessíveis. Assim, ninguém mexe com esse pessoal.
As grandes mineradoras não têm interesse nessas minas esgotadas e o governo os deixa trabalhar. Abrindo um breve parêntese: existe toda uma mística em torno desse setor. Há trabalhadores que ainda hoje fazem oferendas ao El Tio – uma espécie de deus, o senhor do subsolo, personificado em estátua de demônio com o pênis ereto, localizada geralmente nas entradas das minas, onde o pessoal coloca cigarros e doses de bebida como oferenda para que ele os ajude a encontrar alguma prata. De visitas turísticas a tema de bandas de heavy metal locais, El Tio é uma figura muito presente na cultura do altiplano, assim como a Pachamama.
Mapa político da Bolívia
Há mais ou menos 130 mil cooperativas mineiras e diversos conflitos envolvendo-as. Em 2006 morreram 16 pessoas em disputas entre mineiros cooperativistas e mineiros do sindicato da empresa estatal. Dez anos depois, após o governo regulamentar a sindicalização de diversos setores, entre eles a mineração cooperativa, esse setor se levantou (*8) e chegou a torturar e matar um vice-ministro. Como dito anteriormente, essas revoltas mineiras normalmente são regadas a dinamites, ou seja, não é brincadeira de amadores.
Recentemente, a região de Potosí mais uma vez descobriu uma riqueza natural, mas não na velha montanha, senão no deserto de sal: o lítio. Ali, a insatisfação com o governo Evo Morales vem de antes das eleições, por conta de um contrato de 70 anos sem pagamentos de royalties pela produção de hidróxido de lítio nos ‘salares’ de Uyuni.
Atualmente, há dois centros de poder na Bolívia: Sucre e La Paz. Ambas cidades na região do Altiplano, onde predominam as culturas Aymara e Quechua e onde o MAS (Movimento para o Socialismo) e Evo sempre tiveram mais apoio, ainda que suas bases estejam descontentes por uma série de razões desde 2011.
É também de onde vem a maior parte da comunidade boliviana de São Paulo, que realizou um protesto em 18 de novembro na Avenida Paulista. Uma comunidade bem grande, que deu um voto expressivo a Evo em outubro. Entre o Bom Retiro, o Pari, o Brás e a Vila Guilherme, e já presente em bairros mais afastados como Itaquera e Guaianazes, podemos encontrar muitos, sobretudo aos domingos, que é o dia de folga da maioria dos bolivianos, os que trabalham com costura – sob condições de trabalho lamentáveis em muitos casos.
Muitos dormem, comem e trabalham no mesmo quarto e só saem aos domingos. Outros conseguem abrir pequenos comércios destinados a própria comunidade: locutórios (muito comuns na Bolívia: espaços onde se usa telefone, internet e se pode enviar remessas de dinheiro para a família), além de mercadinhos, barbearias e quiosques de produtos farmacêuticos típicos.
No altiplano é muito forte a mineração, os plantios de coca e o turismo, entre outras atividades. Geralmente as cidades estão a mais de 3 mil metros de altura. Enquanto isso, a pouco mais de 2 mil metros, Cochabamba é uma zona intermediária, onde se dão diversos conflitos entre as ‘Bolívias’ oriental e ocidental. Uma cidade bastante populosa para os padrões do país – está ao lado de Santa Cruz e La Paz como as maiores, ainda que Potosí e Sucre não fiquem tão atrás.
No caso de La Paz, Pablo Solón explica em um artigo (*9) que diversos órgãos, como o Comitê Nacional de Defesa da Democracia, que conta entre seus principais dirigentes com dois ex-Defensores do Povo, que exerceram suas funções durante os governos Evo, denunciaram violações de direitos humanos como a repressão da marcha indígena do parque nacional Tipnis, de 2011.
“Há indígenas e trabalhadores contra e a favor do governo. O governo tem mais apoio em áreas rurais, mas na oposição também se encontram produtores de coca da zona de Los Yungas, dirigentes camponeses, trabalhadores mineiros, da saúde e da educação e sobretudo jovens estudantes tanto de classe média quanto de estratos populares. A lamentável queima de Whipalas não é consenso entre os contrários ao governos. Amplos setores denunciaram esse absurdo”.
Ele ainda relata que, em Cochabamba, a polícia primeiro se colocou ao lado dos militantes do MAS contra os descontentes. Para garantir o respaldo da polícia, Evo outorgou um bônus de lealdade de cerca de 400 dólares. Após alguns dias de permanente conflito a polícia se amotinou, o que fez o governo trocar alguns comandantes questionados pela base policial, mas o motim se estendeu à maioria das guarnições e a polícia deixou de enfrentar os descontentes.
“O alto comando militar é partidário de Evo, o único setor que recebe uma aposentadoria de 100% e que durante o governo obteve uma série de benefícios. Contudo, preferiram não ir às ruas pelo alto risco de serem submetidos a juízos após o conflito, como ocorreu no massacre de 2003. Em seguida, nesse contexto, a recomendação da OEA veio bem a calhar para saírem dessa posição desconfortável, e assim pediram a renúncia do presidente”, explica Solón.
Passando por Cochabamba, chegamos ao nível do mar (ou perto disso), na parte oriental do país. Lá estão os departamentos de Beni, Pando e Santa Cruz de la Sierra, que, como falamos anteriormente, é a região que não se identifica de maneira massificada com a cultura e a identidade indígena do altiplano e onde os governos de Evo Morales sempre tiveram de quebrar a cabeça para negociar.
“Apesar dos 14 anos do governo do MAS ter registrado momentos de ‘força’, – como em 2008, quando desde Santa Cruz buscou-se conseguir autonomia política regional – em geral a saída pactuada funcionou. O certo é que o ciclo político que levou Morales ao poder, produto de rebeliões sociais e vitórias eleitorais, foi sempre um ciclo do ocidente boliviano. Ali, as velhas elites se encontravam em crise e uma nova ‘emergência plebeia’, com um projeto nacionalista-popular, a pôs pra correr. Mas o oriente manteve a lógica empresarial e o apoio às políticas de livre mercado”, explicou Stefanoni no artigo supracitado(*1).
Os anos de Evo: conquistas, erros e conflitos sociais
Evo Morales chegou ao poder em janeiro de 2006 após uma longa campanha, apelidada de guerra da água, que começou contra uma desastrosa privatização do fornecimento de água em Cochabamba e evoluiu para uma revolta contra o neoliberalismo. Seguiram-se a ela a Guerra do Gás e a luta contra a implantação da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas, agenda do presidente estadunidense George W. Bush, uma pauta importante do final dos anos 90 até a chegada de Obama a Casa Branca). Evo foi o primeiro presidente oriundo dos estratos indígenas, e fez com que muita gente se sentisse representada pela primeira vez.
Ao mesmo tempo em que fez grandes investimentos estatais no país, também promoveu alguma distribuição de renda, fazendo o crescimento ser sentido pelos mais pobres. Segundo dados da ONG estadunidense Global Justice (*10) a pobreza caiu de 60% a 35% e a extrema pobreza de 38% a 15% entre 2006 e 2017. Além disso foi promovida uma espécie de refundação nacional com o Estado Plurinacional que reconheceu os povos indígenas e suas culturas como membros oficiais do país, adotando, entre outras coisas, a Whipala, bandeira dos sete povos andinos. Essa simbologia e o apoio popular sempre foram pilares importantes do poder de Evo e do Estado Plurinacional.
Mas os governos do MAS não foram só flores. A começar pelo desrespeito à própria Constituição, que não previa tantas reeleições. Algo terrível em um país que tem uma tradição de rejeitar reeleições, talvez exatamente pelo trauma de ter passado por tantas ditaduras.
Pablo Solón, um importante quadro durante as lutas que formaram a ascensão do MAS e de Evo e que mais tarde serviu como embaixador, avalia que Evo Morales teria vencido facilmente as eleições de 2020 e provavelmente seria reeleito em 2024 se não houvesse forçado sua reeleição ao quarto mandato ao ignorar o referendo de 2016. “Depois em 2017 realizou uma manobra para suspender os artigos da Constituição que estabelecem a reeleição apenas uma vez, além da fraude eleitoral comprovada pelo relatório da OEA”, escreveu (*10).
Outra coisa que Solón chama atenção é o fato de que o descontentamento das bases com Evo também tem a ver com sua guinada personalista. A concentração do poder em torno de sua figura, um erro que muitos governantes tendem a cometer em qualquer espectro político, o levou a perder apoio nas suas bases. Mas, mesmo descontentes, muitos seguiram dando seu voto ao ‘proceso de cambio.’
Sobre sua relação com Evo, que perpassa por essa questão, Solón falou em entrevista a Jeffery Webber (*11): “Deixei de ser embaixador em Nova Iorque porque minha mãe estava doente. Disse a Evo que tinha de cuidar dela, pois alguém que não cuida da própria mãe não conseguiria cuidar da mãe natureza, mas mantivemos boas relações. (...) Começamos a nos distanciar em 2011 por conta do tema dos transgênicos e em seguida por conta do TIPNIS, a construção da estrada em Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure. A gota d’água que transbordou o vaso foi a repressão em Chaparina (25 de setembro de 2011). Aí, publicamente, enviei uma carta a Evo Morales dizendo que isso era inadmissível. Desde então nunca mais nos falamos”.
Não foi só Solón que parou de falar com o presidente. Este episódio foi um momento de “inflexão” em que o governo perdeu apoio e muitas organizações deixaram sua base, como nos explicou Fábio Luis Barbosa dos Santos (*12), autor de Uma história da onda progressista sul-americana. “O outro lado da moeda foi a incorporação da agenda dos poderosos na Bolívia; gente da velha política ingressou no MAS, enquanto os militares foram afagados com muito dinheiro e privilégios. É importante reiterar que tanto em 2016 como nas eleições disputadas em outubro de 2019 muitos na esquerda e setores importantes do movimento social votaram contra o MAS”, explicou.
Voltando a Solón, ao longo da entrevista supracitada ele culpa García Linera por essa guinada conservadora na figura e no governo e demarca que não há revolta por questões econômicas, mas por questões políticas. Por um lado, essa guinada autoritária distanciou Evo de sua própria base e o obrigou a ceder a interesses das oligarquias da ‘media luna’ (ou ‘Oriente’, região de Santa Cruz, Pando e Beni), que são semelhantes aos do agronegócio brasileiro, o que seguiu distanciando-o de sua base.
“Transformou o discurso ecológico em commodity a ser vendida aos europeus enquanto as oligarquias pediam cada vez mais e nunca se mostravam satisfeitas”. Ele ainda afirma que as entidades empresariais oficiais não estão apoiando abertamente nenhum lado, mas preparando seus negócios para qualquer desfecho.
“A crise (de gestão) começou em 2014 quando o preço do barril de petróleo caiu para 40 dólares, havendo estado acima dos 100. Este valor incide diretamente na venda de gás. E para evitar uma crise maior, o governo começou a utilizar suas reservas no exterior, que beiravam os 15 bilhões de dólares (nunca em outros governo se havia chegado perto de 2 bi) e em seguida começou a se endividar. Hoje o endividamento do país está em torno de 25% do PIB e o governo vende títulos do Tesoro General de la Nación em Wall Street, que é outra forma de endividamento. E desta forma foi gerenciando a crise até as eleições de outubro”, criticou Solón.
E agora?
Atualmente, a economia do país não se baseia na exportação de gás natural como era até 2014. Há também os minerais e o agronegócio, mas a conjuntura internacional se mostra desfavorável com a recente queda do preço da soja. O governo mantém esse setor com subsídios, o que não pode fazer eternamente (*11). Ou seja, dificilmente os próximos governos terão a economia a seu favor como Evo teve até agora.
Soma-se a isso a questão política. O caldo entornou de vez, como diz o ditado. Há diferentes insatisfações, em diferentes níveis, em todas as regiões do país. Protestos e resistência dos partidários de Evo, um governo ilegítimo de Jeanine Áñez extremamente autoritário já em sua formação e na lida com a insatisfação popular, um número enorme de insatisfeitos que se recusam a tomar partido, sem falar das tensões étnicas, econômicas e toda essa miríade que tentamos resumir nesta matéria. É uma situação extremamente complexa.
Sobre a captura da insatisfação popular pela extrema direita, mais uma vez vemos na América Latina a grande burguesia, sua casta e aparelhos políticos roubarem essa demanda – afinal, é o que caracteriza as classes dirigentes há bastante tempo – e manobrarem a revolta do povo em benefício próprio.
Dois caminhos parecem se desenhar: o mais provável é o do fechamento do regime, ou a consolidação dele, devido ao nível de truculência dos setores que se apossaram do Palácio Quemado. Ou seja, não só a continuação, como a sofisticação da perseguição e repressão a tudo o que seja diferente de um fanático religioso, armado e vestindo a camiseta ‘made in Washington’, seja pró ou contrário a Evo Morales.
A segunda opção seria a autoproclamada presidenta Añez deixar a bíblia e o Mein Kampf em casa, mandar parar a repressão e a violência e convocar novas eleições sem Evo. O problema é que isso poderia entregar o Palácio Quemado, novamente, ao MAS, já que teria os votos da direita divididos com um pastor coreano, com El Macho Camacho e o velho neoliberal Carlos Mesa.
Tudo indica que Añez deve tentar impor seu regime à força. Resta ver se terá condições de fazê-lo. É preciso ficar atento também aos setores populares e como devem reagir.
De toda forma, como afirmou Raul Zibechi (*13) para o Correio da Cidadania em maio passado, “os governos de direita não terão vida fácil no continente, e nem os de esquerda”. Ou seja, independentemente do cenário que se impuser, muita água ainda deve rolar na Bolívia.
Notas:
*1 Bolívia: bíblias, balas e votos, por Pablo Stefanoni, Correio da Cidadania, 22/11/19
*2 Evo Morales perde aliado clave, Central Obrera Boliviana pide su renúncia, Sputinik News, 10/11/19
*3 Entrevista de Evo Morales ao El País, 24h após sua chegada a Cidade do México.
*4 Bolívia entre la masacre de El Alto y el Pacto en el Parlamento, entrevista com Yolanda Mamani, comunicadora social aymara, Revista Lavaca, 21/11/19
*5 Bolívia: La noche de los cristales rotos Revista Lavaca 11/11/19 e Contra el Fascismo, el Parlamento de las Mujeres, Revista Lavaca 18/11/19 – Ambos de Maria Galindo, do Mujeres Creando
*6 Xadrez Verbal n.213, Rádio Central3 - 23/11/19
*7 Violência Golpista em marcha na Bolívia, por Leonardo Wexell Severo, Correio da Cidadania 18/11/19
*8 Guerras extrativistas na Bolívia, por Eduardo Gudynas, Correio da Cidadania 28/09/16
*9 Que passa en Bolivia? Hubo golpe de estado? Pablo Solón, Systemical Alternatives 11 de novembro
*10 Evo Morales: the fall os the hero of the Bolivian transformation, Por Nick Dearden, Systemical Alternatives (Evo: a queda do herói da transformação boliviana)
*11 Entrevista de Pablo Solón, pesquisador e ativista boliviano, por Jeffery Webber, publicado no Systemical Alternatives.
*12 “O elemento central da derrubada de Evo não é a direita, mas o levante popular”, entrevista com Fabio Luis Barbosa dos Santos, autor de Uma história da onda progressista sul-americana. Correio da Cidadania, 14/11/19
*13 Raúl Zibechi: “Sabemos os limites desta direita e devemos pensar no dia seguinte a ela”, Correio da Cidadania, 27/05/19
Leia também:
“Eleição de Evo será marco para aprofundar nossa soberania”, Entrevista com Adriana Salvatierra, 29 anos e então presidenta do Senado da Bolívia. Correio da Cidadania, 15/10/19
Bolívia na contrarrevolução: como derrubaram Evo?, por Pablo Stefanoni e Fernando Molina, 12/11/19
O sequestro que antecedeu o golpe, por Leonardo Wexell Severo, 11/11/19
Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.