“A greve nacional de novembro foi a ação unificada de massas mais importante da história política da Colômbia”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 10/12/2019
Na onda de levantes populares que passa por alguns países latinos, até a Colômbia, onde as condições da luta política são as mais adversas da América do Sul, voltou ao noticiário por conta de uma greve nacional que mobilizou transversalmente a classe trabalhadora e o movimento social locais. A este respeito, o Correio entrevistou Carlos Arturo Garcia Marulanda, da Coordenação de Organizações Sociais e um dos membros do comitê da Greve Nacional deflagrada em novembro. Tal como em Equador e Chile, a fagulha foi mais um pacotaço econômico liberalizante anunciado pelo governo.
“A convocação da Greve Nacional de 21 de novembro foi antecedida de importantes mobilizações lideradas pelo movimento indígena e camponês, agrupados na Cúpula Agrária e a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC), pelos estudantes organizados na União Nacional dos Estudantes de Educação Superior (UNEES), pelos professores associados à Federação Colombiana de Educadores (FECODE), pelas consultas populares contra a grande mineração e mobilizações em diversas regiões do país, confrontando as políticas antipopulares das administrações municipais e departamentais, como parte dos acúmulos das lutas dos movimentos sindical, social e popular”, contextualizou.
Além de elencar diversos fatores e momentos que fizeram eclodir a paralisação nacional, Marulanda coloca no centro do debate a extrema violência com que o Estado colombiano lida com as parcelas não brancas de sua população. Cabe lembrar que se trata do país com maior número de deslocamentos internos forçados em todo o planeta. Além disso, a má vontade governamental em implantar os termos do acordo de paz com as FARC também faz parte do corolário de insatisfação.
“A Colômbia tem uma rica e variada experiência organizativa de processos do movimento social e popular, os quais se mobilizaram em períodos recentes (...) Hoje o movimento social vive um momento de soçobra e tensões, fruto do extermínio generalizado de seus líderes (...) Nas zonas rurais pretende-se institucionalizar uma política de terror e medo generalizado a partir da reativação armada entre grupos à margem da lei, onde o movimento camponês, indígena e afrodescendente são as vítimas diretas dos conflitos armados”, afirmou.
A entrevista completa com Carlos Arturo García Marulanda pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Quais as principais razões da greve nacional que paralisa a Colômbia e qual o alcance real destas paralisações?
Carlos Arturo García Marulanda: As principais razões estão relacionadas às complexidades da situação política, social e econômica que vive a Colômbia, com a imposição de medidas antipopulares do governo de Ivan Duque por meio do Congresso da República, a partir da aprovação do Plano Nacional de Desenvolvimento, do Orçamento Geral da Nação e da Reforma Tributária, mal chamada de Lei de Financiamento, declarada inexequível pela Corte Constitucional por vícios de trâmite.
Soma-se a isso o pacotaço neoliberal como ditame do FMI e da OCDE através da Reforma Trabalhista, que precariza o emprego. Jovens receberiam 75% do miserável salário mínimo, seriam anulados os seguros-desemprego, não se pagaria o trabalho de sábado, domingos e feriados; o pagamento de salário seria sobre dias trabalhados, deixando as portas abertas à contratação por horas, e se estabeleceria o salário mínimo diferencial por regiões, a partir dos níveis de produtividade e competividade.
Ademais, projeta-se uma Reforma da Aposentadoria, aumentando o montante das contribuições e a idade para a aposentadoria, complementando-se com uma holding financeira cuja ênfase é avançar na privatização das empresas do setor público para adquirir confiança de investidores, a fim de privilegiar a chegada de empresas estrangeiras.
Ao mesmo tempo, continuam os planos de extermínio e aniquilamento de mais de 700 lideres sociais e defensores de direitos humanos nos últimos três anos, o assassinato de 184 ex-combatentes da antiga guerrilha das FARC após os acordos de paz, o genocídio contra as comunidades indígenas do departamento de Cauca, a proliferação de ameaças, o aumento do deslocamento forçado em várias regiões do país, o atentado às sedes do Partido Comunista, da Unidade Popular e das FARC. A perseguição à oposição política e a falta de garantias ao livre exercício de mobilização e protesto social são claras expressões da política de terrorismo de Estado.
São situações que vão na contramão de uma paz estável e duradoura. Situações que mostram claramente como age a classe política, que descumpre sua palavra no processo de implementação dos acordos de paz.
Correio da Cidadania: Quais os principais acontecimentos que antecederam a greve?
Carlos Arturo García Marulanda: A convocação da Greve Nacional de 21 de novembro foi antecedida de importantes mobilizações lideradas pelo movimento indígena e camponês, agrupados na Cúpula Agrária e a Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC), pelos estudantes organizados na União Nacional dos Estudantes de Educação Superior (UNEES), pelos professores associados à Federação Colombiana de Educadores (FECODE), pelas consultas populares contra a grande mineração e mobilizações em diversas regiões do país, confrontando as políticas antipopulares das administrações municipais e departamentais, como parte dos acúmulos das lutas dos movimentos sindical, social e popular.
Seguem-se os principais fatos:
1. A realização do Encontro Nacional de Emergência em 4 de outubro se constituiu um evento unitário de ampla participação das centrais operárias e aposentados, organizações sociais, coletivos de mulheres, movimento indígena, camponês e negro, processos estudantis e juvenis, expressões populares e setores em conflito; todos esses acertaram ao convocarem a Greve Nacional em resposta à avareza do governo.
2. O processo de preparação da greve comprometeu dinâmicas sindicais, sociais e do campo popular, setores políticos alternativos e comunidade em geral, através da realização de assembleias e encontros unitários nos 32 departamentos (equivalentes a estados) do país, por meio de jornadas pedagógicas e atividades de sensibilização com peças publicitárias que visibilizaram as razões e motivações da greve.
3. A realização da greve de 21 de novembro registrou os seguintes avanços e conquistas:
- Constituiu-se a ação unificada de massas mais importante da história política do país;
- A contundente e massiva expressão de luta e resistência popular possibilitou alcançar os objetivos e metas projetados;
- A integração de lutas urbanas e rurais, assim como a coordenação e articulação do conjunto de expressões do movimento sindical, social e popular, foi a garantia para o êxito da greve.
- A unificação dos propósitos políticos (contra o pacotaço neoliberal, pela vida e pela paz) possibilitou o ganho de identidade e sentido de pertencimento a todas as organizações e processos comprometidos com a Greve Nacional.
4. A perspectiva da mobilização e continuação da greve incorpora importantes destacamentos da luta popular e processos cívicos em bairros e localidades, com a convocação de múltiplas e variadas expressões, como marchas, plantões, encontros, panelaços, velatones (marchas onde os participantes carregam velas em memória às lideranças assassinadas) e intervenções artísticas e culturais em todo o país.
5. A ascensão da mobilização e do protesto social está de acordo com o despertar da consciência política de setores da sociedade como parte de seus legados de luta.
6. A resposta repressiva do governo ratifica o autoritarismo como clara violação das liberdades democráticas, as garantias cidadãs e os direitos humanos.
Correio da Cidadania: O que significa a reforma tributária apresentada pelo presidente Ivan Duque e a conformação da holding financeira estatal que agrupa nove empresas? Que outros temas econômicos estão na agenda no momento?
Carlos Arturo García Marulanda: A Reforma Tributária, que sob o eufemismo governamental se denomina “Lei de Financiamento”, projeto de lei 240 de 2018, pretende corrigir o desfinanciamento do Orçamento Geral da Nação, cujo fundamento é diminuir a cobrança de impostos a empresas a fim de “gerar maior crescimento e emprego” em detrimento dos setores sociais e populares com arrecadação tributária pela via de novos tributos de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) e renda, incrementando-se desta forma os índices de marginalidade, exclusão e pobreza.
Ao mesmo tempo, com o decreto 2111 da Holding Financeira pelo presidente elimina-se o controle direto do Estado sobre o dinheiro das empresas financeiras estatais, entregando tal função a um consórcio privado como o Grupo Bicentenário, o que institucionaliza a corrupção administrativa, somado à fusão de 19 Empresas Públicas, cuja consequência será um massacre trabalhista sem precedente na Colômbia.
Correio da Cidadania: Qual a situação socioeconômica do país neste momento e as principais necessidades dos trabalhadores colombianos?
Carlos Arturo García Marulanda: A economia colombiana apresenta flutuações que vêm das indefinições no desenho e direcionamento por parte do Ministério da Fazenda, chefiado por Alberto Carrasquilla, que introduz modificações nas receitas da nação, sob o critério de que a Colômbia tem um déficit fiscal de 14 bilhões de dólares para justificar a Lei de Financiamento, que arrecadaria 7 bilhões de pesos.
Da mesma forma, a projeção do Orçamento de investimentos para 2019 e 2020, no que se relaciona com a definição de rubricas de gastos para investimento social em educação e saneamento básico, é incerta, uma vez que o governo anunciou a modificação mediante um projeto de lei que reorienta os recursos e limita o investimento à educação e saneamento.
Outro indicador que registra o déficit econômico está determinado pelo aumento pírrico de 6% do salário mínimo em 2019, que somado ao incremento dos índices de inflação registra perda de poder aquisitivo dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se reporta o crescimento da taxa de desemprego a 8,8% e da informalidade laboral a 48%.
Hoje, o Ministro da Fazenda, Carrasquilla, nos surpreende com a notícia de que a economia colombiana cresceu 5,6% no último trimestre, o que gera dúvidas quando vemos que os índices de criminalidade seguem subindo, produto de uma distribuição desigual da riqueza.
Correio da Cidadania: Como está a questão da violência estatal diante dos protestos e o que você comenta do toque de recolher e da presença do Exército?
Carlos Arturo García Marulanda: As massivas mobilizações no marco da Greve Nacional encontraram respostas repressivas do governo e seus aparatos policiais, com a agressão direta aos manifestantes como parte do uso desproporcional da força por parte do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (ESMAD), que deixou um saldo de 304 feridos, 849 detidos, dos quais 47 processados, além de 4 assassinados, entre eles um jovem estudante de 18 anos de idade, Dylan Cruz, e, por fim, 37 mandados de busca. Tudo isso como parte da falta de garantias para o livre exercício da mobilização e do protesto sociais.
O toque de recolher decretado em Bogotá e Cali é uma medida restritiva dos direitos fundamentais, desproporcional e desnecessária, pois a maior parte das mobilizações é pacífica, com atos culturais, artísticos e pedagógicos.
No entanto, sobre fatos violentos registrados por algumas pessoas, catalogamos como isolados, à margem do movimento. Adicionalmente, conheceram-se evidências audiovisuais onde se observa a infiltração de membros da Força Pública.
Correio da Cidadania: Como é o cotidiano do movimento social no país, tanto nas grandes cidades como nas zonas rurais?
Carlos Arturo García Marulanda: A Colômbia tem uma rica e variada experiência organizativa de processos do movimento social e popular, os quais se mobilizaram em períodos recentes, a fim de exigir respeito a seus direitos e denunciando o descumprimento de acordos pactuados com o governo em mobilizações anteriores.
Hoje o movimento social vive um momento de soçobra e tensões, fruto do extermínio generalizado de seus líderes, que levantaram sua voz para confrontar a ausência, o abandono estatal e a confrontação a políticas antipopulares do governo de Ivan Duque.
Nas zonas rurais pretende-se institucionalizar uma política de terror e medo generalizado a partir da reativação armada entre grupos à margem da lei, onde o movimento camponês, indígena e afrodescendente são as vítimas diretas dos conflitos armados.
Correio da Cidadania: Os protestos que paralisaram o país também têm relação com o recuo nos acordos de paz? O que esse aspecto significa na vida política nacional?
Carlos Arturo García Marulanda: Uma das principais definições políticas incorporadas na pauta nacional e que motivaram a convocação da greve se relaciona com a defesa do processo de paz acordado entre o governo de Juan Manuel Santos e a antiga guerrilha das FARC. Porém, o atual presidente Ivan Duque não mostra uma vontade política para avançar na implementação dos termos do acordo.
A imensa maioria do povo colombiano reclama o direito a uma paz estável e duradoura como sustentação da justiça social, superando as causas estruturais que deram origem ao conflito armado por mais de seis décadas.
Correio da Cidadania: Como relaciona a greve nacional com as manifestações massivas de outros países da América do Sul?
Carlos Arturo García Marulanda: A Greve Nacional foi antecedida de grandes mobilizações e levantes populares em países como Equador, Chile, Haiti e Honduras, confrontando o modelo neoliberal, as políticas impostas pelo FMI, o setor financeiro internacional e a ofensiva imperialista que pretende recuperar sua hegemonia no continente a partir da imposição de governos títeres, como no Brasil, e do estímulo a golpes de Estado como na Bolívia.
Hoje, os povos da Nossa América levantam sua voz de rejeição e exigem melhores condições de vida, reclamando o direito à soberania e autodeterminação dos povos. As greves cívicas e mobilizações são o denominador comum em uma região convulsionada pela injustiça social.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.