Uruguai: por que perdeu a Frente Ampla?
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- Elaine Tavares
- 12/12/2019
No interior, a calmaria é só aparente. As gentes querem mais. - Foto: http://unikee.com.br/blog/uruguai/
A derrota da Frente Ampla no Uruguai, depois de 15 anos governando o país, é mais um episódio dentro da longa luta que se trava na América Latina para superar a dependência e o subdesenvolvimento. Poucos dias depois de um golpe na Bolívia sacar do governo a dupla Evo/Linera, de marca progressista, muita gente se surpreendeu de que os uruguaios também tirassem, nesse caso pelo voto, um governo que tantas transformações positivas trouxe ao país.
Mas, uma mirada mais aguçada para a realidade concreta de cada um desses países mostra que os governos, apesar de avançarem em questões importantes, não conseguiram aprofundar o caminho das mudanças estruturais, as que realmente transformam a vida cotidiana de toda a gente e a história do próprio país. E isso faz toda a diferença.
O professor Nildo Ouriques, da UFSC, insiste que nesses 15 anos de governos ditos progressistas, praticamente nenhum deles, exceto a Venezuela, conseguiu sair das malhas da lógica da administração do capitalismo. As políticas públicas tentaram digerir moralmente a pobreza, mas foram insuficientes. Justamente porque não há como administrar de maneira “humana” o capitalismo. Conforme explica Nildo, ou os governos radicalizam contra ele, ou ele vai cobrar lá na frente. A velha máxima popular de que é impossível servir a dois senhores. Isso pode ser observado no Chile de Bachelet, na Argentina de Kirchner, no Brasil de Lula e Dilma, no Equador de Correa, na Bolívia de Morales e agora no Uruguai da Frente Ampla.
O Uruguai de fato avançou muito nas pautas consideradas importantes pela classe média e também pelos trabalhadores. Direitos sociais foram ampliados, melhoraram os salários e foram criadas leis trabalhistas mais favoráveis assim como políticas públicas compensatórias para os mais pobres. Melhorias pontuais e insuficientes. O país não ficou imune à crise econômica mundial e foi perdendo força a onda de pequenos avanços, inclusive com o aumento do desemprego nos últimos anos. Assim, para os trabalhadores não adiantava boas leis trabalhistas e bons salários se o emprego desaparecia. E, para o governo, ficou difícil emergir da crise já que nunca perdera sua posição de dependência.
A agenda mundial da luta contra corrupção também tocou o Uruguai e tanto que o vice-presidente Raul Sendic foi obrigado a renunciar depois de ter seu nome envolvido em um caso dentro da agência petroleira. Isso feriu moralmente a Frente Ampla. A questão da segurança foi outro fator importante que não conseguiu ser resolvido. O Uruguai é um país que tem apresentado a realidade de um morto por dia, envolvido com a violência urbana ou o narcotráfico, um número expressivo num país que tem apenas três milhões de habitantes. Essa demanda por segurança não encontrou espaço na campanha da Frente Ampla. As respostas oferecidas não foram consideradas suficientes e os uruguaios preferiram se voltar para quem oferecia saídas mais duras para a violência.
Houve estabilidade econômica ao longo desses anos de governo, o que é bom para a população, mas nada que mudasse realmente a correlação entre riqueza e pobreza no país. A classe média melhorou um pouco o acesso ao consumo, os mais pobres mantiveram a cabeça para fora do sufoco, e foi só isso. Só que as gentes querem mais.
Uma das grandes falhas do governo da Frente Ampla foi não ter investido seriamente na organização popular autônoma, oferecendo ferramentas para uma participação direta da população na vida do país e nas decisões importantes. E, sem organização na base acabou se distanciado das necessidades reais cotidianas da população. Sua agenda ficou mais voltada ao que chamam de “agenda de direitos”, envolvendo grupos específicos, temas pontuais, e que fazia bem mais sucesso nos circuitos internacionais do que na própria vida do uruguaio trabalhador.
Ao ser o primeiro país a legalizar plenamente o cultivo e o consumo da maconha virou notícia mundial, tirando do circuito do narcotráfico mais de 20 milhões de dólares, que era o que rendia a venda ilegal. Isso foi assunto por anos. Ajudou a desmobilizar redes de narcotraficantes, mas não melhorou estruturalmente a vida da população.
Outra inovação importante foi a descriminalização total do aborto, garantindo assim o fim de outra rede ilegal e permitindo que as mulheres tivessem acesso ao sistema de saúde, sem correr riscos. Atuou igualmente no sentido de garantir o casamento homoafetivo e criou leis para a proteção de pessoas transgêneras. Inegáveis conquistas dos uruguaios, mas, como já foi dito, insuficientes para a maioria da população que se debate entre o desemprego e a violência crescente, causada justamente pela crise mundial do capital, da qual o Uruguai, pela sua condição de país dependente, não consegue sair se não radicalizar as mudanças.
O resultado dessa política que deu mais luz a uma agenda pontual, sem mexer na estrutura cultural conservadora, foi sentido de forma clara nas eleições presidenciais. O eleitorado da Frente Ampla se concentrou na capital, Montevidéu, e arredores, onde a ação governamental, no âmbito da agenda de direitos, se fez mais presente. Já no interior, onde o conservadorismo ainda grassa e as políticas públicas chegam com menos força a frente governista fracassou. A votação foi pífia porque as gentes se sentiram abandonadas e preferiram apostar na mudança. E foi justamente no interior onde o partido conservador Cabildo Aberto teve maior votação.
Uma história que nós, brasileiros conhecemos muito bem. Nas pequenas e médias cidades o debate moral voltou com força – contra maconheiros, putas e comunistas - e o renascimento de velhos preconceitos foi forte, contrastando com as pautas que brotavam da cosmopolita capital.
Num artigo para o jornal Brecha, Gabriel Delacoste, analisando a derrota da Frente Ampla na cidade fronteiriça de Rivera, comenta a postura de uma dirigente governista, Aída González, questionada sobre a baixa votação no interior. Ela diz: “a classe mais pobre melhora sua condição econômica, quer mais, quer uma mudança, e não se dá conta de que é uma mudança para pior”. Daniel observa que ela fala sempre na terceira pessoa: “Eles querem mais, eles não entendem, eles não se dão conta”, o que indica claramente o distanciamento dos dirigentes. Aída reconhece que foi um erro o governo não ter trabalhado melhor a organização popular para a compreensão de que melhoria de vida não é só comprar coisas. E esse é o tema.
Dalacoste lembra que só em Rivera, no início do governo frenteamplista, havia mais de 15 comitês de bairros; agora só resta um. “Ou seja, quando não éramos governo, éramos mais militantes”. Esse dado material é ainda mais expressivo. Porque sem organização popular e participação direta a população vai se distanciando e a tendência é esperar que as coisas cheguem desde cima.
A Venezuela, que vive há anos sob o ataque feroz de uma guerra econômica travada desde fora e desde dentro, tem garantido a tranquilidade institucional justamente porque fez o dever de casa, já apontado pela revolução cubana. Povo organizado, em luta e em armas.
No caso do Uruguai é também óbvio que elementos da chamada “guerra híbrida”, que é na verdade a mesma velha guerra de mentiras e contrainformações, usando as novas tecnologias, não podem ser desprezados. Poucos dias antes da votação do segundo turno o ex-comandante em chefe do Exército uruguaio, o general Guido Manini Ríos, que é também líder do partido conservador Cabildo Abierto, gravou um vídeo convocando os militares a não votar na esquerda, sussurrando uma ameaça velada de intervenção, coisa que nunca antes havia passado no país.
Até onde isso ajudou a direita a eleger seu candidato não se sabe, mas é um peso a ser considerado. E o general não semeou em campo árido. Havia ali um campo aberto para essas propostas de moralidade e de uso duro da força. Tanto que o partido teve excelente votação.
Assim, a América Latina vai encerrando um período de governos, chamados progressistas, de maneira melancólica. Sem aprender com história, como a triste experiência chilena dos anos 70, ou a vitoriosa revolução cubana, esses governos acreditaram que era possível enfrentar o capital sem quebrar os ovos. Resta que os ovos foram chocando e agora revelam as serpentes do fascismo, da intolerância, do terror. Mas, como diz o professor Nildo Ouriques, a coisa boa que se pode tirar daí é o fim das ilusões. Os povos das nossas pátrias chicas avançam, por vezes sem perna e agora até sem olhos (o terror chileno), mas avançam. Haverão de se apropriar da história, aprender e vencer.
Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.