O sistema de saúde no Equador e o fim da conciliação política
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- Elaine Santos
- 16/04/2020
Em quase todas as análises que escrevo, faço questão de ressaltar a história como continuidade. Esta é uma premissa escrita por Mariátegui, em seu número III da Revista Amauta (1), no ano de 1928. Nosso autor foi um dos primeiros revolucionários a tentar compreender a partir de uma análise materialista da história a América Latina. Neste número afirmou que nada vale gritar sozinho, por mais alto que seja o som e por mais eco que faça, nada mudará. O que vale é sempre a ideia que potencializa a ação, que seja germinal.
Diferentemente de muitos periódicos atuais e inúteis a Revista não serviria para o jogo de intelectuais e sim para realizar-se na contemporaneidade daquele período histórico e é por isto que ao lermos hoje, percebemos que seu contributo ainda tem valia, porque foi escrito para o devir.
Dado que a história será sempre continuidade, pode-se afirmar que nas últimas décadas no Equador a saúde foi reduzida à prestação de serviços, ocultaram-se as mazelas e agora já não é possível esconder os corpos. Nas últimas semanas o Equador, mais precisamente Guayaquil, tomou conta dos noticiários, pois em meio à pandemia o sistema de saúde colapsou rapidamente e muitos corpos foram deixados nas ruas, além de longas filas de espera por enterro nos cemitérios e famílias em desespero sem saber a quem recorrer.
Frente ao desespero, vale a pena fazer um breve retrospecto: em 2006, quando da eleição de Rafael Correa, o programa Aseguramiento Universal en Salud (AUS), que seguiu os alinhamentos das políticas impostas pelo Banco Mundial foi colocado em prática. O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) aprovou 90 milhões de dólares (2) para assegurar aos mais pobres o acesso à saúde, assumindo o modo de vida das populações indígenas, rurais e afroequatorianas, como formas de diálogo intercultural à prevenção.
Em 2008, a nova Constituição (3), considerada uma das mais avançadas da América Latina, impôs uma cobertura de saúde ampla e o direito à saúde como algo inalienável. Uma conquista legal que seguiu acompanhada da redução da extrema pobreza, bem como o acesso ao saneamento que são medidas determinantes e relacionadas à saúde.
Cabe lembrar que antes do progressismo o Equador era um dos países mais pobres da América Latina e seus programas direcionados à saúde estiveram sempre relacionados com atuação das Fundações e das ONGs, responsáveis pelas políticas sociais. Ora o Estado apoiava, ora terceirizava os serviços entre ONGs nacionais e internacionais, com repasse de fundos (4).
Iturralde (2015) (5) em um amplo documento analisou como os recursos destinados à saúde foram geridos no país andino e chamou de “projeto de privatização da saúde”. O pesquisador demonstrou que as políticas relacionadas aos serviços de saúde, promoveram uma monopolização dos atendimentos, já que sem estrutura para atender toda a população o Estado subsidiava integralmente o atendimento em clínicas e hospitais privados que tiveram um ingresso de rendas aviltante durante o correísmo (6). Uma medida emergencial compreensível, considerando a inexistência de serviços amplos até então, contudo, foi um “curativo” e não poderia ser encarado como um projeto.
Por outro lado, ao promover este financiamento muitas empresas privadas e influentes manipularam a seu benefício a formulação de políticas públicas bem como as próprias decisões.
Durante o chamado progressismo na América Latina ocorreu uma tentativa de restaurar o Estado como meio para enfrentar o neoliberalismo e o recrudescimento das políticas de décadas anteriores, porém, operou-se na mesma lógica. Ou seja, de um Estado que operava para o mercado.
O setor da saúde encaixou-se no modelo de administração estadual imposto pelo Correísmo, com um conglomerado de grupos econômicos em disputa por recursos públicos. O setor empresarial monopólico foi favorecido por importadores e empresários cujos principais negócios dependem da expansão do mercado interno e cuja coincidência com as políticas de expansão dos gastos do Correísmo os tornaram aliados naturais do governo.
Os serviços de saúde no Equador permaneceram em acordo com o capital financeiro, houve a “financeirização da saúde”, onde as clínicas e hospitais tiveram um enorme crescimento econômico em detrimento da população. Apesar do reconhecimento constitucional, a medida de gratuidade da saúde seguiu impraticável, devido à própria ausência de estruturas e de compreensão que o debate em torno da saúde se tratava então somente de estruturas (7). Acesso à saúde passou a ser compreendido como oferta de serviços, que se tornaria insígnia para a politicagem e permanece até hoje.
A partir de 2013, com a queda dos preços no petróleo, principal fonte de renda do país, a gratuidade progressiva da saúde entrou em risco, para quem precisa do acesso tanto faz quem oferece os serviços, porém, é fato que a administração da riqueza do petróleo fortaleceu o Estado em torno dos grandes monopólios da saúde. É inegável também que foi durante o período da Revolução Cidadã que mais se investiu em saúde.
Dado que a história é sempre continuidade, por este quadro resumido se entende um pouco do como Guayaquil chegou até esta situação. A Revolução Cidadã começou reescrevendo a Constituição e terminou rompendo com seu sucessor Lenín Moreno, que indicado por Rafael Correa passou a governar o país com uma agenda ultraliberal e subserviente aos Estados Unidos.
Guayaquil – cujo nome rende homenagem a “Guayas” e sua esposa “Quil”, que optaram pela morte a serem subjugados pelos espanhóis – é uma das cidades latino-americanas que mais demonstra a catástrofe de problemas estruturais e históricos somados a uma pandemia.
A segunda maior cidade do Equador, centro de indústrias da pesca e de manufatura, possui um sistema de saúde colapsado; na província de Guayas (8) até 6 de abril já se contabilizam 130 mortos e 1937 infectados, dos quais 1301 estão em Guayaquil. Em meados de março a então ministra da saúde, Catalina Andramuño, renunciou (9), sob alegação que faltavam recursos.
O progressismo foi resultado de um acúmulo de forças de décadas anteriores, grande parte dos projetos de mudança, tal como a Revolução Cidadã tentou, desde cima, renegociar a inserção do Equador no desenvolvimento, apoiou-se no aumento dos preços das commodities e reduziu o debate político à questão de gestão no Estado. Desde 2019, os movimentos sociais no Equador, quando conseguiram barrar o FMI (Fundo Monetário Internacional), demonstraram seu descontentamento e levantaram-se contra as elites do país.
Neste momento dramático em que parecemos estar entalados por uma pandemia e pelas diversas crises, que em andamento já aparecem como o “futuro”, as organizações políticas no país podem ter muito a nos ensinar, por meio de lutas que vão amadurecendo dia após dia. Assim, a crise estrutural do capital vai tomando contornos cada vez mais acentuados, em que “viver e sobreviver para o capital tornou-se existir na e através da crise” (10).
Neste sentido, a história continuará, tal como afirmou Debret, e se não conseguirmos avançar a culpa não será da história, mas sim das nossas perspectivas carregadas de emoções, por vezes até ultrapassadas. O progressismo acabou e o passado não voltará. Se a conciliação pelo alto foi possível anteriormente, agora aparece como esgotada. A tragédia está posta e quem sofre não esquece.
Notas
1 - Revista Amauta http://archivo.mariategui.org/index.php/revista-amauta
2 - https://www.iadb.org/es/noticias/comunicados-de-prensa/2006-06-28/bid-ap... Consultado a 02.04.2020
3 - O artigo 32 da Constituição de 2008 - La salud es un derecho que garantiza el Estado, cuya realización se vincula al ejercicio de otros derechos, entre ellos el derecho al agua, la alimentación, la educación, la cultura física, el trabajo, la seguridad social, los ambientes sanos y otros que sustentan el Buen Vivir
4 - Ramirez, Loïc (2018) Equador a difícil construção de um serviço público de saúde.
https://diplomatique.org.br/no-equador-dificil-construcao-de-um-servico-.. . Consultado a 05.04.2020
5 - Iturralde, Pablo. (2015) «Privatización de la Salud en Ecuador: Estudio de la interacción pública con clínicas y hospitales privados http://cdes.org.ec/web/wp-content/uploads/2016/01/privatizaci%C3%B3n-sal... Consultado a 10.09.2020
6 - Ver gráficos Iturralde (2015)
7 - Acesso a saúde não pode ser entendido como construção de grandes hospitais.
8 - Segundo o jornal El Universo
https://www.eluniverso.com/noticias/2020/04/06/nota/7806354/casos-corona... consultado a 07.04.2020
https://www.dw.com/es/retiran-500-cad%C3%A1veres-de-viviendas-en-guayaqu...
9 - https://www.elcomercio.com/actualidad/catalina-andramuno-renuncia-minist... Consultado a 01.04.2019
10 - J Chasin, A Miséria brasileira “A sucessão na crise e a crise na esquerda” Editora, AD – Hominem 2000 Santo André (SP).
Elaine Santos é socióloga e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC, onde este artigo foi originalmente publicado.