Chile, luta de classes e Covid-19: entre a revolta e os riscos de uma recuperação neoliberal
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- Franck Gaudichaud e Alex G
- 30/04/2020
Créditos: DR.
O Chile vivia desde outubro uma grande revolta social e popular, com manifestações massivas contra o regime político, o neoliberalismo e contra as fortes desigualdades nas quais está imerso. Esse processo de rebelião conseguiu o que se podia interpretar como uma concessão do governo do multimilionário Sebastián Piñera e, ao mesmo tempo, como uma tentativa de recuperar o poder político: foi feita a convocatória de um referendo para 26 de abril a fim de decidir se seria mudada a Constituição, herdada, não podemos esquecer, da ditadura de Pinochet.
Com a propagação da pandemia o referendo foi postergado até o mês de outubro. E como no resto do mundo, as medidas de confinamento e os riscos de contágio paralisaram as manifestações e protestos que se desenvolviam.
Epidemia e luta de classes
O Covid-19 chegou a Santiago através de pessoas mais ricas provenientes de distintos países da Europa, da China ou de viagens em cruzeiros. Proporcionalmente, o Chile é o país mais afetado pela pandemia em toda a América Latina; porém sua taxa de mortalidade é inferior à do Equador.
É de domínio público o não respeito ao confinamento, sobretudo das famílias mais acomodadas que viajam entre suas residências principais e secundárias. Isto levou inclusive à organização de protestos e da ação direta através de barricadas: os habitantes das cidades de praia buscam desse modo impedir a chegada dos membros da burguesia da capital a suas zonas de veraneio. Durante o fim de semana de Páscoa, alguns membros da grande patronal, para evitar os controles policiais, chegaram ao absurdo de viajar de helicóptero a suas casas de veraneio a fim de escapar do confinamento social.
As numerosas assembleias locais que se puseram em pé após a revolta que explodiu em outubro permitiram certo nível de resposta popular para fazer frente à crise sanitária e dar continuidade à luta contra Piñera e seu mundo. Estes espaços auto-organizados desempenharam um papel fundamental durante a revolta: garantir o abastecimento enquanto os comércios permaneciam fechados, a segurança e a vigilância diante da violação dos direitos humanos por parte da polícia.
Com o passar do tempo, estas assembleias se converteram em espaços deliberativos e de debate político dos pobres. Para Karina Nohales, da Coordenadoria Feminista do 8 de Março, “com a pandemia, as assembleias de bairro permitiram elaborar sem demora as listas de pessoas idosas que se encontram em situação de penúria econômica e de gente isolada e em situação vulnerável para organizar a ajuda das mesmas. Contudo, tampouco podemos pensar que nesse momento essas redes de bairros vão permitir uma organização paralela ao Estado, com um impacto social importante”.
“O medo que havia desaparecido está de volta com a epidemia”
Para o governo a crise sanitária tem sido uma boa oportunidade para recuperar relativamente a iniciativa política e de começar a governar após meses de paralisação e protestos. É o que, de forma simbólica, testemunha a imagem de Piñera passeando e tirando fotos na Plaza de la Dignidad, epicentro das manifestações e de enfrentamentos com a polícia desde outubro.
Como recorda Karina Nohales, “durante os meses da revolta, tudo o que o governo dizia alimentava a revolta e aumentava a raiva das pessoas. Agora mesmo, diante da pandemia, o país está mais ou menos obrigado a obedecer o que dita o governo. Isto não significa que as decisões governamentais sejam assumidas acriticamente, mas não temos a possibilidade de nos manifestar. Uma expressão disto é a agudização das medidas repressivas e o reforço do Estado de exceção que já estava em marcha desde outubro. Piñera sabe que só pode governar graças à excepcionalidade do momento”.
Com efeito, a pandemia emerge como um momento de ruptura com a normalidade no seio de uma situação já excepcional. Segundo as diversas pesquisas de opinião, os índices de aprovação do presidente do governo se situam abaixo dos 8%, ou seja, o nível mais baixo desde o fim da ditadura em 1990. É importante assinalar que a gestão da pandemia está sendo catastrófica, com medidas erráticas de confinamento que variam de uma cidade para outra, de um bairro a outro, de uma rua a outra; e que, sobretudo, estão ditadas pelo imperativo de manter a atividade econômica sob pressão da patronal local. Ao longo do dia o metrô de Santiago está abarrotado de trabalhadores e trabalhadoras pobres e precários, e as ruas cheias de trabalhadores e trabalhadoras do setor informal que não têm outra opção além de ir trabalhar para ganhar uns poucos pesos.
A ministra da Saúde multiplicou as declarações otimistas, ainda que não tenha feito nada ante a pandemia e o sistema sanitário não tenha capacidade para absorver uma afluência massiva de doentes por Covid-19. Em geral, a rede sanitária está extremamente segmentada e abandonada à lógica de mercado e das seguradoras privadas, enquanto as classes populares devem se contentar com hospitais abarrotados e mal equipados. “É por isso que o medo que havia desaparecido está de volta com a epidemia”, indica Karina Nohales. “Portanto, nosso desafio político é unir os protestos acumulados ao longo destes últimos meses e a forma como a pandemia põe a descoberto, de forma brutal, todos os elementos da crise. Mas não é fácil atingir essa politização das massas”, completa.
Os trabalhadores e trabalhadoras pagam pela crise
A combinação da crise sanitária e crise econômica conduz a maioria da população chilena a uma situação catastrófica. As Administradoras dos Fundos de Pensão (AFP) que gerem as aposentadorias, todas elas privatizadas desde os anos 80 – com exceção das destinadas a militares – já perderam 20% dos seus fundos. Em 2008, durante todo o período da crise econômica, as perdas chegaram a 40%. As medidas econômicas anunciadas pelo governo se referem a três elementos definidos em função das exigências patronais (Luksic, Matte, Angelini e outros que controlam a economia):
a) Ajudas às empresas, facilitando-as o crédito e um juro muito baixo;
b) Ajudas ao setor informal, e a trabalhadores autônomos, em valores e quantidades ridiculamente baixos e apenas para um setor reduzido dos mesmos;
c) Para os assalariados, se oferece a possibilidade de suspender o contrato de trabalho, mas sem direito a salário! A única obrigação dos empregadores é de cotizar as AFPs, ao Fundo Nacional de Saúde e ao seguro-desemprego, mas a 50%.
Assim, pois, são os assalariados quem mais pagam pela crise, porque sua única fonte de renda é o seguro desemprego nessa situação, financiado pelos próprios trabalhadores e trabalhadoras. Tudo isso levando em consideração que não vão receber o que corresponde ao cotizado, como é lógico no sistema de capitalização e individualização que existe no Chile. Mais de 23 mil empresas recorreram a esta medida que afeta 350 mil pessoas; a maioria delas não receberá mais que a metade de um salário mínimo.
Esta suspensão do contrato de trabalho já se aplica nas cadeias de fast-food (Starbucks, Burger King). Também houve demissões em massa no setor hoteleiro, de restaurantes e no comércio. Quando se ativou o confinamento nos bairros ricos de Santiago, houve uma onda de demissões massivas também no setor da construção, uma vez que todas as obras tiveram que parar.
Os sindicatos não estão à altura
A resposta sindical não tem estado à altura da situação. Sua intervenção esteve centrada fundamentalmente em tentar conservar os postos de trabalho sem planejar o direito a abandonar o trabalho (enquanto se cumpram as condições sanitárias necessárias) e sem colocar que é preciso garantir um confinamento digno e seguro para milhões de pessoas. Muitos sindicatos continuam apalancados na lógica de que o confinamento poderia colocar em risco o emprego.
Contudo, outras organizações impulsionaram demandas judiciais para proteger os direitos fundamentais à saúde de seus afiliados e afiliadas. Os tribunais laborais ditaram resoluções que autorizam trabalhadores a não acudir aos postos de trabalho, sem que percam seu salário, se as condições de higiene e segurança não estiverem garantidas. Mas, apesar disso, muitos sindicatos ainda não recorrem a elas.
A Coordenadoria Feminista do 8 de Março, junto com outras organizações feministas, lançou uma campanha para responder a violência machista e de gênero em todo o período de confinamento. Este espaço feminista unitário, que reuniu milhões de pessoas no último dia 8 de março, também impulsionou uma greve em defesa da vida, ou seja, uma greve para exigir que seja posto em pé um plano de urgência social e sanitária para fazer frente à pandemia e suas consequências.
Semanas que definem o futuro
Sem dúvida que tanto no Chile quanto em muitos outros países o fim do confinamento estará marcado pela volta das manifestações, das greves e das mobilizações sociais. As classes dominantes chilenas tratam de aproveitar bem a pandemia para fazer avançar sua própria agenda e organizar a recuperação da inciativa que lhes permita canalizar e neutralizar a crise política atual, ao mesmo tempo em que continuam com a repressão. E todas as ocasiões serão boas para isso. Um exemplo é a luta de numerosas famílias e militantes para exigir a libertação de centenas de presos políticos da revolta de outubro, dado que as prisões constituem um risco a mais para o contágio.
Finalmente, uma parte das pessoas detidas no país, consideradas como não perigosas, passarão a uma situação de prisão domiciliar devido à urgência sanitária, sem que tenham dado uma resposta concreta àqueles que estão na prisão por haver participado da mobilização social. Aproveitando esta conjuntura, vários parlamentares de direita exigiram ao poder a necessidade de libertar também os responsáveis pela sistemática violação dos direitos humanos da ditadura militar que se encontram encarcerados em prisões de luxo. Diante da indignação social criada e apesar do apoio a esta medida por parte de juízes pinochetistas, o governo teve de voltar atrás.
As próximas semanas serão, sem dúvida, determinantes tanto do ponto de vista da saúde pública e sanitária do país como da capacidade do movimento popular para continuar a estimular as reivindicações emanadas da revolta de outubro. O desafio é fazer recuar a direita e a extrema direita nostálgica da ditadura, ao mesmo tempo em que se exige um plano de urgência para fazer frente ao Covid-19.
O outro desafio se situa na capacidade para aproveitar este tempo de transição, ainda instável, para começar a tecer formas de organização política do andar de baixo que possam oferecer uma perspectiva clara, democrática e radical à força das lutas que vêm se expressando nas ruas há seis meses contra um regime político em plena decomposição e contra o modelo neoliberal.
Franck Gaudichaud é professor de história e civilização latino-americana na Universidade de Toulouse. Alex G é militante do NPA (organização anticapitalista) em Toulouse.
Publicado originalmente no portal de notícias do NPA, em francês.
Retirado da Correspondencia de Prensa – A L’encontre, onde o artigo foi publicado em espanhol.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.