Correio da Cidadania

O Chile a semanas do plebiscito que abre um inédito processo constituinte

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Manifestação contra o governo de Sabastián Piñera em Santiago. AFP, Martin Bernetti / Retirado de Brecha

No dia em que se cumprirá um ano da chamada “maior marcha do Chile”, que só em Santiago convocou mais de 1 milhão de pessoas, a data aparece como mais um marco na história do país. No próximo dia 25 de outubro o povo chileno decidirá em um plebiscito se quer uma nova constituição política e que tipo de órgão será o responsável de fazer a redação dela.

Na votação haverá duas papeletas com duas opções a serem marcadas em cada uma: aprovo ou rejeito (em referência à criação de uma nova Constituição); e convenção mista (um órgão constituinte composto de partes iguais com membros do Congresso e membros eleitos popularmente) ou convenção constitucional (com todos os membros eleitos popularmente para esta tarefa).

Todas as sondagens desde novembro passado adiantam um triunfo por ampla maioria para a combinação aprovo-convenção constitucional. A última pesquisa Pulso Ciudadano, da Activa Research, divulgada na primeira quinzena de setembro, estimou que 75,1% do total do padrão eleitoral se inclinará pelo aprovo e 57% por convenção constitucional.

O processo constituinte terá uma natureza inédita na historia chilena caso vença o aprovo, já que permitirá abrir a deliberação do novo texto através de canais de participação popular. Nem a constituição vigente de 1980, forjada entre quatro paredes pela ditadura de Augusto Pinochet, nem as anteriores – as mais duradouras foram as Constituições de 1833 e de 1925 – nasceram de um diálogo democrático.

“O Chile está pondo em dia uma mudança política que se produziu há décadas na América Latina. Quase todos os países da região incorporaram mecanismos de democracia direta. Mas no Chile há uma extrema rigidez institucional que manteve intacta a estrutura herdada da ditadura de Pinochet, até que a explosão social de 18 de outubro de 2019 remexeu o sistema político, culminando em um ciclo de protestos que vinha desde o movimento estudantil de 2006”, indica para a Brecha [semanário onde a reportagem foi publicada originalmente] Claudia Heiss, chefa do departamento de Ciência Política da Universidad de Chile.

O cronograma

A convocatória ao plebiscito de outubro ficou resolvida em 15 de novembro de 2019 no Acordo pela Paz Social e pela Nova Constituição, subscrito pelo grosso dos partidos políticos como resposta às demandas da revolta popular. O dia eleito para a votação era originalmente 26 de abril, mas o covid-19 obrigou a postergar a data.

De fato, o processo constituinte se inscreverá em um contexto de crise sanitária. Por isso, o Serviço Eleitoral Chileno (Servel) publicou um protocolo sanitário para proteger os eleitores e os mesários. “Votar no plebiscito não será mais perigoso do que ir ao supermercado”, afirmou o presidente do conselho diretor do Senvel, Patricio Santamaría, em 14 de setembro. Contudo, nos últimos dias o organismo descartou que as pessoas contagiadas por coronavírus possam votar. Em 11 de setembro, no entanto, o presidente Sebastián Piñera havia anunciado a extensão do estado de catástrofe por mais 90 dias, o que fará que no dia da votação haja toque de recolher durante a noite.

Pesem as restrições sanitárias, se prevê uma alta concorrência às urnas: na última pesquisa Pulso Cidadão, 75,1% se mostraram seguro ou muito seguro de ir votar, ainda que a participação não seja obrigatória. A alta concorrência está motivada pelo clamor de sepultar a Constituição de Pinochet, que, ainda que reformada 46 vezes, “mantém o status quo, já que é um projeto de engenharia social levantado pela ditadura para neutralizar o governo da Unidade Popular e o ciclo histórico de crescimento do Estado e dos direitos sociais que vão de 1940 a 1970”, disse Jaime Bassa, professor de Direito Constitucional da Universidad de Valparaiso e ativo participante nas assembleias e conselhos comunitários autoconvocados desde 18 de outubro do ano passado.

Mudar a Constituição é determinando, agrega Bassa, já que a de 1980 “entrega a provisão de direitos sociais como a saúde, a moradia, a educação e a seguridade social a empresas privadas. É um desenho que mercantiliza a vida, gera precariedade e bloqueia caminhos. Promove um Estado subsidiário e uma economia neoliberal”. Cita como exemplo disto que, no lugar de consagrar o direito público à saúde, a atual carta magna estabelece que “cada pessoa terá o direito de escolher o sistema de saúde que deseje acolher, seja estatal ou privado”.

O acordo de 15 de novembro estabeleceu que o órgão constituinte deverá aprovar seu regulamento e cada uma das normas constitucionais pelo quórum de dois terços de seus membros em exercício. Se triunfa a opção de formar uma convenção constitucional, seus integrantes serão votados sob o mesmo sistema eleitoral que rege a votação para deputados. No Chile há 155 deputados eleitos sob um esquema proporcional de 28 distritos eleitorais; a convenção terá o mesmo número de membros. O acordo também fixou um plebiscito para ratificação (com voto obrigatório) para validar o novo texto. Em 24 de dezembro foi aprovada a lei 21.200, que modificou o capítulo V da atual Constituição para regular todo o processo vindouro.

A pandemia alterou os planos iniciais e só em 27 de março deste ano o Servel agendou as três fases do ciclo completo. Sobre o citado plebiscito de entrada, se aprovada a constituinte, no dia 11 de abril de 2021 se elegeriam os integrantes do órgão constituinte. Nove meses depois de instalada a convenção (seu período de trabalho pode se estender a 12 meses caso seja solicitada prorrogação, por única vez) se convocará o plebiscito de ratificação ou de saída. Se o processo segue a rota traçada, o Chile pode ter uma nova Constituição, no mais tardar, em 2022 e com outro presidente da República: a eleição presidencial será em 21 de novembro de 2021.

A legitimidade da constituinte

Fruto da pressão do movimento social e de alguns partidos políticos, nos últimos meses se adicionaram novas normas ao acordo de 15 de novembro. Em março passado foi aprovada a paridade de gênero para uma eventual convenção constitucional. Ademais, as candidaturas independentes poderão apresentar suas próprias listas, sempre e quando sejam respaldadas por assinaturas diante de 0,4% de quem votou em cada distrito nas últimas eleições parlamentares. O trâmite encontra uma grande dificuldade no contexto de pandemia e, em virtude disso, foi solicitado ao Servel autorizar assinaturas eletrônicas, sem obter uma resposta até a publicação desse artigo.

Por outro lado, no passado 7 de julho o Senado aprovou, em geral, uma reforma para reservar assentos da Constituinte aos povos originários. Ainda não foi definido o número, nem o mecanismo de atribuição de tarefas.


Favoráveis a reforma constitucional se manifestam no monumento a Salvador Allende, em Santiago, em 4 de setembro, dia do 50o aniversário da sua presidência. AFP, Javier Torres / Retirado de Brecha

“A legitimidade é jogada em várias dimensões, não se esgota na dicotomia independentes/militantes partidários. A chave para a reconfiguração das relações de poder é que na deliberação constituinte participem os grupos que estruturalmente foram mais postergados. O caráter paritário da convenção contribui a enfrentar uma das exclusões mais fortes da sociedade chilena, que é o tema de gênero. Os assentos reservados para os povos originários também são um fator de legitimidade importante”, explica Bassa.

Heiss concorda na transcendência da paridade de gênero: “O fato de que a convenção constitucional esteja forçada a ter mulheres fala de um nível de inclusão que não houve nunca no Chile e em nenhuma assembleia constituinte no mundo. Incorporar novos atores à discussão política – atrizes, no caso – é algo totalmente novo”.

Contudo, há especialistas que veem uma “armadilha” na baixa probabilidade de que participem da convenção atores do mundo independente, por exemplo, líderes comunitários. Nesses termos e em vários meios de comunicação foi referido, desde o ano passado, o advogado penalista Mauricio Daza à quase obrigatória necessidade das candidaturas independentes a postular-se dentro da lista de algum partido político para ter alguma opção real de integrar a Constituinte.

“Não estou de acordo com esta leitura. As portas para a participação agora estão mais abertas do que no acordo de 15 de novembro. Creio que é um bom caminho canalizar as demandas das bases em alianças virtuosas com os partidos políticos. Estes poderiam recuperar seu papel. Os eleitores têm a última palavra em eleger bem os nossos representantes e não permitir que velhos rostos da política queiram se reciclar na Constituinte. O que acontece é que os partidos subverteram o sentido das instituições protegendo o interesse privado por cima do interesse geral”, coloca Bassa.

Sem ir mais longe, a Frente Ampla, uma coalizão de forças de esquerda que germinou em 2017, pretende abrir a metade de suas candidaturas à Constituinte para cidadãos que não militam em partidos. “O mundo social é o espaço natural da Frente Ampla. Temos militantes e independentes que estiveram liderando as demandas da cidadania. A Constituinte é para a confrontação de ideias e não uma assembleia de técnicos ou especialistas”, comenta Jorge Ramírez, presidente do partido franteamplista Comunes.

Segundo Valentina Moyano, integrante da organização latino-americana Red de Politólogas, é muito provável que “nem todas as pessoas que ocupem um assento na convenção provenham de setores populares”. Para a cientista política, a legitimidade da assembleia não passa por quantos independentes a integrem, senão “por fazer vinculantes os conselhos comunitários, as assembleias e os espaços de organização fora da arena institucional partidária”.

Em linha com a posição de Moyano, Heiss acredita que a aprovação do regulamento da futura convenção “será a grande oportunidade para incorporar mecanismos de participação incidente e direta da cidadania”. Heiss projeta que, se a Constituinte trabalha “a portas fechadas, como uma cozinha”, não terá legitimidade política.

Para Esteban González, coordenador da mesa de Unidade Social na comuna de Pedro Aguirre Cerda, em Santiago, a legitimidade do processo tampouco se joga exclusivamente na incorporação de independentes à convenção. González, que trabalha com cerca de 40 organizações sociais do território comunal, crê que “a rua é larga e pode caber todo mundo enquanto busquemos um objetivo comum. Vamos apoiar os candidatos que defendam os princípios constitucionais necessários para o Chile que queremos”.

No entanto, a Coordenadoria do 8M, organização que vela pelas reivindicações feministas, diz que, apesar de ter uma posição crítica sobre o acordo do 15 de novembro, chamará a votar aprovo e convenção constitucional com as mesmas precauções. “Não é só porque os setores políticos impugnados aceitaram as regras do jogo do plebiscito. Há um contexto político de impunidade sobre as violações de direitos humanos e as prisões políticas ocorridas durante a revolta. Há um cenário de polarização política, em que forças reacionárias de ultradireita, incluindo neofascistas, desenvolvem ações de massa muito violentas. Chamamos a superar o acordo de 15 de novembro”, afirmou Karina Nohales, uma das vozes da coordenadoria. Elas remetem às “marchas do rechaço”, que foram dirigidas desde setores acomodados de Santiago até o centro cívico e cujos aderentes agrediram os favoráveis ao aprovo sob uma atitude complacente dos Carabineros [polícia militar chilena].

A Constituição: o princípio de tudo

A importância da Constituição radica, segundo Bassa, porque “determina as margens entre as quais se mova o legislador”. Certamente, agrega o advogado, a nova carta fundamental “não será a solução de todos os problemas sociais, nem o país mudará no dia seguinte de sua aprovação”. Bassa aceita que as demandas da cidadania estão reguladas pelas leis e não pela Constituição. Contudo, “se a carta magna estabelece que as cotizações previdenciárias são propriedade privada, a lei não pode avançar na direção de um sistema solidário”.

Uma interpretação similar é oferecida por Heiss, para quem é relevante entender que “a Constituição não é uma política pública: não vai conter a política de moradia, saúde, educação ou previdenciária”. Sem danos em relação a isso, o acadêmico da Universidad de Chile sustenta que incluir os direitos sociais no novo texto constitucional lhe daria “uma orientação normativa” ao sistema político para que “faça carne” essas necessidades amplamente compartilhadas pela sociedade chilena. “A Constituição, mais que fechar uma conversa de mudança política, a inicia”, esclarece a cientista política.

Há um ponto que provoca certo ruído no movimento social: o funcionamento paralelo do Congresso durante os nove meses (ou 12 com a prorrogação) de exercício da Constituinte. Temem que o Poder Legislativo tramite leis que vão na contramão do espírito transformador que regerá a assembleia encarregada de redigir a nova carta magna. Bassa não detecta um problema aqui, uma vez que “muitas leis que estão juridicamente debaixo da Constituição vão ficar fora de jogo”. É o mesmo que dizer que “muitas leis vigentes poderiam ser inconstitucionais quando se aprove a nova Constituição, já que esta é uma norma de maior hierarquia”.

Para Heiss, no entanto, a surpreendente reaparição, em 30 de agosto, do ex-senador direitista Pablo Longueira – processado por delitos tributários e logo sobressaído desses cargos – para anunciar seu voto pelo aprovo e sua candidatura para a Constituinte responde a estratégia de seu setor político, cuja finalidade é capturar um terço da convenção e torpedear as mudanças estruturais: “89% das doações para a campanha do plebiscito são do rechaço, mas sabem que vão perder. Eles cunharam o termo rechaçar para reformar, mas não transformaram nada em 30 anos. É um argumento que tem pouca conexão com a realidade e é bastante antidemocrático, de uma profunda desconfiança por parte da vontade popular”.


Cristian González Farfán é jornalista.
Artigo retirado da Correspondencia de Prensa – A L’Encontre; originalmente publicado no semanário uruguaio Brecha.
Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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