Bolívia: a derrota do racismo e o nascimento de um novo ciclo político
- Detalhes
- Raul Zibechi
- 28/10/2020
Luis Arce e David Choquehuanca, eleitos presidente e vice, durante a campanha eleitoral. Foto: AFP/MAS
Em suas primeiras declarações, o presidente eleito, Luis Arce Catacora, esboçou modos e maneiras diferentes das praticadas por Evo Morales em seus 14 anos de mandato: “vamos construir um governo de unidade nacional, vamos trabalhar e vamos reconduzir o processo de mudanças sem ódios e aprendendo e superando os erros como Movimento ao Socialismo [MAS]”.
Essa declaração, e outras na mesma linha, encarnam o que sente uma parte do eleitorado (52%) que no último dia 18 (domingo) votou pela candidatura Arce-Choquehuanca. Se primar por esse sentimento, é possível que a Bolívia se encaminhe agora em uma direção distinta da que predominou durante os governos de Morales-García Linera e, em especial, durante o ano em que governou Jeanine Áñez.
Algo importante parece ter mudado no seio do MAS, em particular entre dirigentes que permaneceram no país durante um ano marcado por incertezas e fazendo frente ao ódio racista empregado pelo governo golpista. Uma mudança que se reflete nas palavras ditas na segunda-feira (19) pela presidenta do Senado, a masista Eva Copa, sobre o anunciado retorno de Morales ao país: “nós não acreditamos que seja o momento adequado, ele tem temas que ainda precisa resolver. Mas nós, com Luis Arce à cabeça e como Assembleia [Parlamento] também temos tarefas que cumprir”.
Um resultado transparente
Explicar por que o MAS, sem Morales como candidato, conseguiu sete pontos a mais do que o conseguido um ano atrás requer um olhar atento. Por um lado, na hora de analisar os resultados, quase todos os analistas colocam em um lugar destacado a gestão do governo Áñez e em particular a do ministro de governo Arturo Murillo.
“Áñez foi a grande chefa da campanha do MAS”, disse na última segunda-feira à emissora Erbol o cientista político e docente da Universidad Mayor de San Andrés, Roger Cortez, que agregou que deviam ser dadas “medalhas especiais aos ministros de Governo e Defesa”. O caso de Murillo ensina os piores traços de um governo de transição que desejava manter-se o maior tempo possível.
O rechaço a Murillo veio não só de uma parte importante da população, mas também de vários ministros que renunciaram a seus cargos por desconformidade com suas declarações, já que ele se acostumara a lançar ameaças e investigações contra oponentes, jornalistas e companheiros de gabinete que ousaram questioná-lo. O racismo e as posições ultradireitistas afastaram do oficialismo inclusive parte das classes médias que se pronunciaram contra Morales em outubro de 2019.
É certo que o MAS ganhou nos cinco departamentos de maioria indígena: em La Paz superou os 68% e em Oruro 62%; em Cochabamba 65%; em Potosí 57%; e em Chuquisaca 49%. Ganhou também em Pando, com 45%. Carlos Mesa, sem fibra e muito escorado à direita, ganhou em Tarija com quase dez pontos de vantagem, mas em Beni acabou levando com uma margem mais estreita.
A polarização territorial é evidente, tanto como o crescimento de uma nova direita radical. Recordemos que nas eleições de 2014 o MAS havia obtido 49% dos votos em Santa Cruz de la Sierra e que agora ficou estancado ali com 35%, a contracorrente da sua ascensão no resto do país com relação a 2019. Nesse departamento [equivalente aos nossos Estados] ganhou com folga o ultradireitista Luis Fernando Camacho com 45% dos votos.
Para Roger Cortez, a vitória do MAS se explica pelo predomínio de um eleitorado conservador, mas não no sentido ideológico da palavra, sim em sua adesão ao pragmatismo. Uma boa parte dos votantes, afirma, se inclinou a Arce “pela situação que vive o país, porque, ainda que conheça os erros e delitos do governo do MAS, também sabe, e lembra, os resultados que este obteve em matéria de pobreza e igualdade”. Em suma, votou pelo conhecido, já que “Arce tem melhores possibilidades que seus adversários de tocar o país bem”.
Contudo, o analista não se mostra nada otimista de cara ao futuro imediato. Sustenta que o MAS terá contra si inimigos mais poderosos que os que teve nas eleições: o coronavírus e a iminência de uma segunda onda, e uma economia com receitas decadentes por exportações de gás e investimentos em petróleo que, em vistas ao atual contexto internacional, dificilmente chegarão.
O fator Choquehuanca
O vice-presidente eleito tem uma extensa trajetória política. Durante o governo de Evo Morales foi Chanceler (2006-2017), até que o jesuíta Xavier Albó o mencionou como eventual candidato à presidência do MAS, já que o referendo de 2016 havia negado a Evo essa possibilidade. Mantém longas disputas com o ex-vice Álvaro García Linera (que o apelidou de ‘pachamámico’ por seu apoio à espiritualidade ancestral) e Evo o aceitou como vice para essas eleições relutantemente, pressionado pelas bases e pelos movimentos sociais, que se empenharam em defender sua candidatura (La última palabra, Brecha, 24/01/2020).
Para alguns, sua presença na cédula eleitoral (na Bolívia o voto é em papel) foi chave para o triunfo no último dia 18 de outubro. Pablo Solón, embaixador da ONU pelo governo de Morales (2009-2011), escreveu no dia seguinte das eleições: “o MAS não ganhou por Evo, mas apesar de Evo. Evo queria marginalizar Choquehuanca, que é o candidato eleito pelas organizações sociais, principalmente indígenas das terras altas e dos vales. O triunfo do MAS foi acachapante nas áreas rurais destas regiões em grande medida devido à candidatura de David [Choquehuanca]”.
Foram nessas regiões que o MAS recuperou os níveis de votação mais altos que teve na sua história e que havia caído a cifras mínimas em outubro de 2019. Desta vez, em Oruro, Potosí e La Paz o voto masista cresceu entre 15 e 18 pontos em apenas um ano. O desastroso governo Áñez-Murillo parece não explicar por si só este fato.
Solón recorda em seu blog que no congresso do MAS deste ano “as organizações sociais indígenas do altiplano e dos vales assumiram uma determinação democrática a partir das bases que as fizeram prevalecer, ainda que em partes, diante de Evo, porque sua posição original era “David presidente”. A conclusão do ex-diplomata é lapidar: os resultados destas últimas eleições demonstram que em 2019 o MAS teria evitado contratempos se houvesse deixado de insistir na reeleição de Evo Morales, forçada à contracorrente de um plebiscito e da própria Constituição.
Certo é que o fator Choquehuanca não é um assunto de finalidades pessoais, mas um debate emergente sobre as relações entre a cúpula do MAS (Morales e García Linera) e as organizações sociais. É provável que nos primeiros meses não se repitam cenas de intimidação e cooptação dos movimentos como as vistas durante os governos passados do MAS, mas a luta interna pode se focalizar em colocar o novo vice para escanteio, contando com a neutralidade do novo mandatário.
“Arce está decidido a mostrar outra cara”, explicou Cortez, “mas a situação interna do MAS é complicada”. O analista vaticinou, inclusive, que o atual presidente poderia não cumprir os cinco anos de seu mandato, já que os problemas internos do partido do governo devem se somar à crise econômica que não dará trégua.
Movimentos e processo de mudança
O diretor do jornal Punkara, de orientação indigenista, Pedro Portugal, assinalou dois dias após as eleições que “quando Evo Morales renunciou ao poder, após as eleições falidas de 2019, se vislumbrou quais setores populares e indígenas eram contrários ao ex-presidente ou estavam indiferentes à sua sorte” (Página Siete, 20/10/2020).
O Punkara reúne boa parte da intelectualidade indígena aymara [uma das principais etnias bolivianas] em evidente divergência com García Linera pelo relato histórico-político do processo político boliviano (o ex-vice lidera, por sua vez, o que os indígenas criticam como ‘entorno brancoide’ de Morales). Segundo seu diretor, Choquehuanca moveu-se pelo mundo andino durante a campanha eleitoral.
Entre outras coisas, relata que como chanceler foi discriminado e excluído de um governo no qual se considerava um mero “representante indígena”. O conflito que teve com Linera, e indiretamente com o próprio Evo Morales, lhe havia servido para se aproximar de setores indígenas que começavam a ter uma atitude crítica ao MAS, sustenta Portugal.
Prova disso são as conversas que Choquehuanca manteve durante a campanha com Felipe Quispe, o Mallku, histórico dirigente aymara do altiplano que assumiu a liderança de vários bloqueios com os quais, em agosto, protestaram contra a constante postergação das eleições exercida pelo regime (Em suspenso, Brecha, 28/08/2020). Dias antes dos comícios, Quispe disse que votaria pelo MAS para respaldar Choquehuanca. “Nessas eleições temos que votar nos nossos próprios irmãos que estão como candidatos, como é o caso do nosso irmão David Choquehuanca” (Eju.tv, 15/10/2020).
Quispe manteve tensos enfrentamentos com Morales durante o ciclo de protestos do período 2000-2005, que teve como saldo a chegada do MAS ao governo. Quando seu filho Ayar foi assassinado em maio de 2015 em uma praça de El Alto, chegou inclusive a acusar indiretamente seu ex-companheiro de guerrilha, o então vice-presidente, García Linera, de haver sido o inspirador do crime (Correo del Sur, 03/06/2015).
É certo que os ventos não correm a favor dos quadros que encabeçaram o governo de Evo. As juventudes do MAS se pronunciaram contra o retorno imediato do ex-presidente, apelando à figura andina da rotação: “as 20 províncias propuseram que o irmão presidente Evo Morales não deveria voltar porque ele já trabalhou bastante (Rádio Fides, 19/10/2020)”.
As bases dos movimentos parecem ter claro que não podem repetir a cartilha anterior, em particular nas relações com o governo. O ex-dirigente fabril Oscar Oliveira, referência principal da guerra da água – que em abril de 2000 deu início ao ciclo de protestos antineoliberais –, disse que “as pessoas confiam em reconduzir o processo de mudanças” e se mostrou favorável a Choquehuanca.
Solón coincide com esta apreciação. “A chave para um relançamento do processo de mudança não está tanto no futuro governo, senão na capacidade de autogestão e autonomia das organizações sociais e sua capacidade de retomar um curso de propostas alternativas em todos os níveis”. Ademais, pensa que as demandas de 2003, articuladas em torno da Agenda de Outubro, que inspirou o primeiro governo de Evo, estão esgotadas e é necessária uma nova estratégia.
Um dado mais importante a ser levado em conta no novo período será a quase inevitável repetição do processo de entrega de regalias a dirigentes, uma história que se arrasta desde a revolução de 1952, em reiteração de um vínculo corrupto que já é cultura política e prática assentada. Isto vem sendo agravado pelo surgimento durante os governos do MAS do que Solón denomina “nova burguesia”, uma classe social “associada à burocracia estatal, aos contratos com o Estado, ao comércio, ao contrabando, às cooperativas de mineração e à produção da folha de coca ligada ao narcotráfico”.
Pensa que essas novas elites seguirão incidindo no governo e no partido. “O futuro governo do MAS é já um espaço de disputa”. Mas agora a palavra será, mais uma vez, das bases sociais rurais e urbanas, essas que levaram Morales ao governo, que o deixaram cair ao não se mobilizarem em sua defesa e depois lutaram e se sacrificaram contra a direita racista, até dobrá-la. Acumulam uma longa experiência e sabedoria, e as colocarão em jogo nos próximos meses.
Raul Zibechi é cientista político uruguaio e acompanha movimentos sociais e políticos de todo o continente há mais de 20 anos.
Artigo publicado originalmente no semanário Brecha em 23 de outubro de 2020 e retirado da Correspondencia de Prensa – Al’Encontre, ambos meios de comunicação uruguaios.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.