América Latina e o futuro do mal menor
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- Fabio Luis Barbosa dos Santos
- 07/01/2021
“Até que a dignidade seja costume”, cartaz fotografado durante o ‘estalido social’, em Santiago do Chile, em 06/11/2019. Créditos: Jorge Silva/Reuters
Olhando a América Latina pelo retrovisor de 2020, observa-se que a região continua palco de disputas e rebeliões populares. Por aqui, não houve tédio na pandemia.
O paradoxo é que o campo popular se projeta com mais força onde o progressismo não chegou ao poder. No Chile, o estalido tenta varrer o entulho autoritário da constituição pinochetista. No Peru, a cruzada anticorrupção não se partidarizou, resultando em presidentes depostos, outros condenados e um que se matou. Na Colômbia, vigorosas mobilizações explicitam os impasses de uma paz que se implementa como pacificação, sob o comando do partido da guerra – o uribismo.
Mais ao norte, Guatemala e Haiti também foram chacoalhadas por protestos. Já El Salvador, que viveu um interlúdio progressista, se “bolsonariza”, enquanto a Nicarágua flerta com a tirania, sob a versão orteguista do progressismo.
O paradoxo vai além, se constatarmos que nos países onde o progressismo ainda governa, poucos esperam dias melhores em 2021. Na Venezuela, a degradação do país parece não ter limite. Com a queda do petróleo, novas frentes de extração mineral proliferam à margem de uma legalidade cada vez mais militarizada, em um cenário que lembra Estados africanos, como o Congo.
Entretanto, o triunfo eleitoral do MAS na Bolívia foi saudado como uma vitória progressista. Olhando com atenção, os acontecimentos neste país iluminam o impasse venezuelano – que é parte dos dilemas da esquerda global.
Por um lado, a vitória eleitoral problematiza a narrativa golpista: se o MAS era tão perturbador para a direita e o imperialismo, como explicar seu retorno um ano depois? Distante de uma conspiração internacional, evidencia-se que o governo Morales sucumbiu a uma espécie de “implosão por acumulação”: caiu sob peso do poder que acumulava de maneira monocrática há quinze anos.
Entretanto, manobras ardilosas e violentas daqueles que o sucederam no poder comprometeram um mandato que desrespeitou seu caráter provisório. Marcado pela repressão, a corrupção e a incompetência, este governo ilegítimo e impopular (lembram-se de Temer?) ressuscitou o espectro da discriminação étnica em um país profundamente indígena. É sob este prisma que se deve olhar o retorno do MAS, purgado de Morales. O tom das eleições de 2020 não foi o entusiasmo, mas o voto no mal menor.
De certo modo, Guaidó cumpre um papel comparável na Venezuela: ao dar um rosto francamente antipopular e antinacional como alternativa a Maduro, seu golpismo favorece a polarização e congela a mudança. Em um país como no outro, o progressismo há muito deixou de ser esperança de mudança, para se tornar projeto de poder.
A constatação de que as expectativas de mudança (para melhor) se concentram nos países que não foram governados pelo progressismo enseja reflexões. Há duas formas de olhar o problema. A primeira é denunciar uma onda conservadora que se insurge contra avanços precedentes do progressismo, exemplificada pela eleição de Bolsonaro contra o PT.
A segunda, analisa o malogro do progressismo por suas próprias contradições. Em linhas gerais, o progressismo pode ser visto como uma tentativa de conter a crise, recorrendo a dispositivos e práticas que terminaram acelerando esta mesma crise: uma dinâmica de “contenção aceleracionista”. Esta dinâmica por sua vez, reforça o extrativismo que remete à origem colonial, resultando em um segundo paradoxo: um “progressismo regressivo”. No entanto, esta regressão não se confunde com uma volta ao passado, pois a integração mediada pelo consumo conformou modalidades de “neoliberalismo inclusivo”, que aprofundaram a razão neoliberal.
Nesta chave, a imagem mais adequada da relação entre a onda progressista e o seu depois, não é uma guinada de 180 graus. É uma metástase, na medida em que forças e interesses corrosivos que pareciam controlados, em um segundo momento se espalham incontroláveis pelo tecido social. O caso brasileiro serve de exemplo: o capital financeiro, o agronegócio, o neopentecostalismo, os militares, Michel Temer e cia. foram todos alimentados e cultivados pelos governos do PT, na expectativa de conter uma crise, que então se acelerou.
Um segundo ponto de reflexão é que no Chile, Peru e Colômbia a luta das ruas exige novas constituições. Embora seja inegável a importância de romper com a institucionalização da razão neoliberal, é preciso recordar que Venezuela, Bolívia e Equador trilharam caminho similar no começo do século. Hoje, está claro que a mudança constitucional foi impotente para refundar as bases da reprodução social, que continua sendo a produção de valor. O xis da questão é que o poder do capital é extraparlamentar: a dinâmica do valor que se valoriza, determina os fundamentos da reprodução social, que no mundo atual se tornou uma máquina de produzir medo, ódio e indiferença. Daí que o progressismo, a despeito das boas intenções, não abriu caminho para um mundo melhor.
Vistos sob este prisma, os acontecimentos chilenos são por um lado, inspiradores: os corpos saíram das telas e foram para as ruas, sem ter um passado recente a resgatar – no Chile, não há lulismo ou peronismo, repaginado como kirchnerismo. A rebeldia olha para a frente. Portanto, há mais espaço para a imaginação e a experimentação do novo.
Por outro lado, o desafio chileno e das rebeliões do nosso tempo é como transformar esta “grande recusa” em um projeto alternativo. Deste ponto de vista, a demanda constitucional é sintoma de falta de ideias coletivas. O que vem depois da recusa, na imaginação rebelde do século 21? É preciso cuidado para que as assembleias constituintes não se limitem a tirar a política das ruas, para devolvê-la aos parlamentos. O risco é reeditar o progressismo, por outros meios.
Está claro que uma rebelião como a chilena não é solução, mas uma premissa para sair do impasse. É um sinal de saúde, pois os corpos nas ruas carregam subjetividades que romperam com o anestesiamento, e podem ser mobilizadas por uma mudança radical. Parte do drama é que, no momento, a radicalidade está do outro lado: em um mundo de expectativas decrescentes, aprendemos que é possível odiar o existente em nome de algo pior.
Como fazer do ódio, criação? A gramática rebelde do século 20 foi povoada pela ideia de revolução, que logo se identificou com a tomada do Estado. Em diversos casos, terminou aprisionada por estes mesmos Estados, tomados em seu nome.
O que vem depois da revolução, na imaginação rebelde do século 21? Este é um desafio civilizatório maior, para quem vê que não haverá futuro sob o mal menor.
Fabio Luis Barbosa dos Santos é autor de Uma história da onda progressista sul-americana (Elefante: 2019) entre outros livros.