Correio da Cidadania

Equador: a batalha das urnas e a tensão entre as esquerdas

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 Yaku Pérez fala com a imprensa em 8 de fevereiro de 2021. AFP/Camila Buendía


Ao fechamento deste artigo, em 11 de fevereiro, o movimento indígena equatoriano se concentrava em diversos atos pacíficos com milhares de pessoas diante das delegações provinciais do Conselho Nacional Eleitoral*. Pediam que o processo de contagem de votos se fizesse transparente e que se esclarecessem as dúvidas pertinentes a respeito de uma infinidade de atas eleitorais confusas. Tudo isso enquanto os responsáveis pela instituição reitora da democracia equatoriana – nomeados, a maioria deles, por setores políticos conservadores – negavam e dilatavam tal reivindicação.

Pese a que inicialmente a candidatura indígena de Yaku Pérez, do movimento Pachakutik (*2), aparecia como a segunda mais votada nas eleições do último dia 7 de fevereiro (domingo) e que Pérez perfilava como o oponente do chamado correísmo em um segundo turno, a evolução da contagem de votos ao começo da semana seguinte deu uma reviravolta na tarde da terça-feira seguinte (9).

Guillermo Lasso, magnata financeiro e candidato das elites, passava a ser, com um apenas um punhado de votos a mais que Pérez, o oponente do ex-ministro correísta Andrés Arauz na disputa do segundo turno em 11 de abril.

As suspeitas do movimento indígena se baseiam em que o território que ficou por último no processamento das atas foi a província de Guayas, feudo histórico dos social-cristãos. Trata-se de um setor da direita litorânea aliada à candidatura de Lasso e tradicionalmente conhecida por suas artimanhas eleitorais. Em Guayas as atas que apresentavam inconsistências passaram de 5% nas eleições anteriores para 20% nesta ocasião. Assim, uma quantidade importante de votos ficou à mercê da decisão do Conselho Nacional Eleitoral.

Segundo a versão dos observadores eleitorais indígenas, durante o lento processamento de sufrágios dos últimos dias podiam haver substituído – com a cumplicidade dos membros desse organismo, ocupado por delegados da direita – várias bolsas de votos e uma parte importante das atas traria inconsistências, o que ainda não pôde ser comprovado.

Mudança de prioridades

Mas além desta situação, e dada a estreitíssima diferença de votos entre Pérez e Lasso, o certo é que naquele domingo o povo do Equador rompeu com o recorte sociopolítico que marcou os últimos 14 anos do país: a polaridade entre duas facções políticas claramente enfrentadas. Por um lado, a do ex-presidente, hoje exilado na Bélgica, Rafael Correa e a estrutura político-partidária que lidera e, por outro lado, a direita empresarial representada por Lasso, à cabeça do partido CREO.

Pese o slogan eleitoral “Em um só turno” com o qual a candidatura do favorito Arauz esperava evitar uma segunda disputa, seu partido teve 3 milhões de votos (32,6% dos votos válidos emitidos). Lasso e o candidato indígena Pérez obtiveram ao redor de 1,8 milhões de votos cada um (entre 19,7 e 19,5% dos sufrágios cada). Em quarto lugar ficou Xavier Hervas, um empresário jovem e desconhecido até o início das campanhas, que correu pelo partido social-liberal Esquerda Democrática (ID) e obteve cerca de um milhão e meio de votos (15,7%). O resultado das outras 12 candidaturas que disputaram a poltrona presidencial foi inexpressivo.

As oposições ‘antiextrativismo versus desenvolvimentismo’ e ‘nova política versus política tradicional’ abriram espaço assim em um cenário que inicialmente parecia dominado pelo enfrentamento entre partidários e detratores de Correa. Esta ruptura se materializou nos resultados alcançados pelo Pachakutik e ID, um velho partido da cena política que perdeu espaço nos últimos anos. Para entender esse fenômeno deve levar-se em conta que os candidatos de ambas as forças conectaram em sua campanha com segmentos da população que já não se sentiam representados pela política tradicional. Mas além do seu êxito nos territórios de La Sierra e amazônicos, Pérez conseguiu entre os jovens urbanos uma particular sintonia através de uma mensagem ambientalista “em defesa da Pachamama”, enquanto Hervas se apresentou como o líder da renovação. Ambos defenderam, ademais, o direito ao aborto em caso de estupro diante das outras candidaturas, que optaram por oporem-se à legalização ou diretamente não abordaram o tema.

O movimento Pachakutik compensou as críticas dos seus rivais sobre as carências do plano econômico que apresentou durante a campanha – menos transformador inclusive que o apresentado pelo correísmo – mostrando-se como o depositário do capital político acumulado no levantamento indígena de 2018 contra o FMI e o governo de Lenín Moreno (*3). Em muitos setores populares urbanos Pérez foi visto como “parte do povo”, “um de nós” e não como um membro do establishment.

O mais surpreendente do resultado obtido pelo movimento Pachakutik nesses comícios – as sondagens iniciais lhes davam 11% dos votos – é em parte efeito da politização da dor de muitas famílias equatorianas pelos mais de 15 mil mortos pela Covid-19 em 2020 registrados pelas cifras oficiais; o atual incremento acelerado do desemprego e da precariedade laboral, que acossa pelo menos 83% da população economicamente ativa de acordo com o Instituto de Estatísticas e Censos do país; a constante perda de capacidade aquisitiva das classes médias e médias baixas, que está gerando um forte endividamento familiar, e o crescimento da pobreza, que já afeta quase 38% dos equatorianos, e da desigualdade, que aumentou em 6% no último ano, segundo dados da Unicef.

Nesse contexto, o partido indígena, fundado em 1995 como uma frente eleitoral da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), obteve assim o melhor desempenho da sua história nas urnas, passando a ser a segunda bancada mais importante na Assembleia Nacional.

As tensões e o perigo da divisão

A criminalização do protesto social durante a década do governo de Rafael Correa (2007-2017) e a abertura de processos jurídicos contra boa parte da dirigência indígena que exercia seu direito à resistência em defesa dos seus territórios deixaram uma brecha que tornou impossível o entendimento atual entre ambas facções políticas. Nesse contexto, o conflito dentro do movimento indígena parece inevitável.

Enquanto Pérez e seu entorno, mais afins a negociar com a direita uma frente comum anticorreísta, mantém a posição de reabrir as urnas e recontar os votos nas sete províncias nas quais consideram que existem incidências, especialmente em Guayas, os setores mais combativos do Conaie, aqueles que lideraram o levantamento popular de outubro de 2019, dificilmente apoiariam a candidatura de Lasso em um segundo turno.

Em paralelo, parte do correísmo parece priorizar o conflito com o movimento indígena, ao que acusa de cumplicidade no desmantelamento – efetuado durante os últimos quatro anos – da institucionalidade instalada durante a década progressista. Esta dura disputa entre as principais opções de esquerda pode abonar o caminho ao poder de uma direita neoliberal que no último dia 7 somou 20% do apoio popular.

Contudo, assim como existem diferenças dentro do movimento indígena, nem todo o correísmo compartilha a postura confrontativa contra o Pachakutik, encabeçada pelo mesmo Rafael Correa. Seu ex-ministro e candidato presidencial Arauz vem fazendo chamados permanentes à conformação de uma frente ampla que incorpore não apenas o movimento indígena, senão também a expressão social democrata liberal representada pela ID. De fato, nas filas correístas existe uma tensão similar à vista recentemente na Bolívia entre velhos e novos quadros do progressismo.

Predestinado à crise

Nesta conjuntura resulta difícil vislumbrar como se resolverá o bloqueio político que vive o Equador. Um cenário factível seria que se atendesse a reivindicação de Pérez de abrir as urnas e recontar os votos. Se comprovada a suposta fraude denunciada pelo Pachakutik, o rival do correísmo no segundo turno seria Pérez, que teria que negociar com as elites econômicas em troca de votos. Isto carregaria graves tensões no movimento indígena.

No caso de confirmada a passagem de Lasso ao segundo turno, é possível que Pérez lhe declare apoio em troca de algumas carteiras ministeriais de segunda ordem. Não seria a primeira vez que o Pachakutik comete este erro político. Contudo, mais uma vez parece difícil que semelhante posicionamento – aliança dos historicamente esquecidos com as elites do país – seja corroborado pela Conaie, a verdadeira estrutura organizativa do poder indígena.

Por último, se não se desse lugar a recontagem de votos que demanda Pérez, está assegurada uma potente mobilização indígena na que poderiam se repetir episódios como os de outubro de 2019. Um cenário como esse, por outra parte, significaria também a conseguinte repressão pela mão dos aparatos de segurança do Estado e inclusive a possibilidade de um cenário à boliviana, com a imposição de um governo interino provisório até uma nova convocação eleitoral. Sem dúvida, esta seria uma ocasião propícia para aqueles que desejam impor um pacote de medidas econômicas exigidas pelo FMI, que carecem do apoio da imensa maioria dos equatorianos.

A esta crise se soma, ainda, o anúncio da Fiscalía General del Estado [equivalente à PGR] de passar a investigar as finanças da campanha de Arauz com base em uma denúncia proveniente da Colômbia. Segundo a revista Semana, posicionada com interesses conservadores daquele país, a insurgência do Exército de Liberação Nacional (COL) havia doado cerca de 80 mil dólares à campanha presidencial do correísmo.

Apesar de a credibilidade dessa publicação em questões relativas à guerrilha e seus supostos vínculos com o progressismo legal estar severamente esgotada e a acusação carecer de fundamento até o momento, é claro que existe um forte interesse do oficialismo equatoriano e dos seus aliados na região de conseguir a eleição de um governo de tons conservadores para a próxima legislatura.


Atualização: segundo apuração do G1 de 21 de fevereiro, o CNE negou a recontagem de votos solicitada pela campanha de Yaku Pérez, alegando falta de provas para as acusações do Pachakutik. Assim, Guillermo Lasso disputará o segundo turno das eleições contra o ex-ministro correísta Andrés Arauz em 11 de abril.

Notas:
*1: Nota da redação da Correspondencia de Prensa Al’Encontre: O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) está sob controle de funcionários afins ao correismo e à direita.
*2: Movimento Pachakutik; http://pachakutik.org/
*3: Veja “País de lucha”, Brecha, 11/10/2019

Decio Machado é sociólogo e consultor político no Equador.
Artigo publicado em espanhol no dia 12 de fevereiro de 2021 no semanário uruguaio Brecha e na página da Correspondencia de Prensa Al’Encontre.
Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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