Correio da Cidadania

“Paraguai está na UTI porque governo desviou recursos do combate à pandemia para a especulação”

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"Em vez do investimento no combate à pandemia, a política do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, foi a do endividamento, em consonância com o setor financeiro internacional e nacional”, denunciou o doutor Jorge Querey, senador da Frente Guasú, em entrevista exclusiva.

De acordo com o senador, “preocupados com a pandemia, foi aprovado pelo parlamento um crédito de emergência de US$ 1,6 bilhão”, acompanhado de outros endividamentos, “com o objetivo de reativar a economia”. “Mas esses recursos não chegaram aos hospitais que agora têm 100% das suas camas ocupadas”, denunciou, o que faz com que “já no dia de amanhã possamos ter todo o sistema de saúde colapsado”. Em relação à aquisição de vacinas, o médico denunciou que “houve uma trava ideológica e política que dificultou as aquisições”.

“Eu conversei pessoalmente na Embaixada da Rússia no Paraguai, mas houve ordem contrária dos Estados Unidos e Mario Abdo era um instrumento de Trump”. Diante de tamanha submissão, insensibilidade e abusos, a decisão dos parlamentares de redigirem uma denúncia contra o presidente paraguaio é mais do que acertada, ressaltou Jorge Querey, e vem respaldada pelo espírito que reverbera nas gigantescas mobilizações que sacodem o país exigindo a renúncia do mandatário. “É preciso mudar, pois os trilhos de Mario Abdo Benítez apontam em direção à catástrofe”, concluiu.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.


 “Com o governo de Mario Abdo Benítez, o Paraguai ruma em direção à catástrofe”, afirmou o doutor Jorge Querey, médico e senador da Frente Guasú

Foi apresentada em 15 de março por parlamentares a proposta de afastamento do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez. No que está amparada a denúncia?

Jorge Querey: Em primeiro lugar, é preciso entender que há uma somatória de acontecimentos, de situações ocorridas com o presidente Mario Abdo Benítez e que, na realidade, o pedido pelo seu afastamento é o corolário mais enfático da crítica que se vinha fazendo.

A repulsa viralizou por todo o Paraguai desde que foi revelada a assinatura da ata secreta de uma gestão de negócios dele com a família de Jair Bolsonaro. Nela também estava envolvido o vice-presidente da República, com o conhecimento e a participação ativa do chanceler paraguaio. Pela gravidade do caso, contrário ao interesse nacional, se espalhou a reação de oposição ao governo.

A partir de então, houve uma acumulação de fatos, vinculados tanto à questão econômica quanto social, de políticas públicas e, em particular, ao tema sanitário, que foram promovendo um desgaste significativo e progressivo.

Chegamos a uma situação na qual se põe na balança o que significa uma crise desta envergadura, em que se coloca na ordem do dia a destituição do presidente e sua linha sucessória.

Esta situação crítica nos coloca frente a duas possibilidades. Uma diz que não é o momento de fazer um julgamento político para tirar o presidente. Por este caminho seguimos rumo à catástrofe. A outra é romper com esse processo e, com os instrumentos constitucionais e legais que podemos acessar, começar a rediscutir, em meio à guerra, em meio à tormenta, a forma como mudar. Então é uma situação muito, muito difícil.

Nós, particularmente, defendemos que Mario Abdo Benítez tivesse saído há muito tempo. Temos a posição política que o presidente não tem liderança, não conforma um consenso que possa lhe sustentar no poder e, o mais grave, não reúne a mínima capacidade de gestão. E somamos a isso uma característica normal nos setores políticos conservadores - e vou generalizar -, a falta de integridade.

Assim, com a corrupção tão impregnada, a cidadania veio se expressando com muitas dúvidas em relação aos partidos, à política e aos políticos. Existe uma grande desconfiança, a tal ponto que alguns setores trabalhem com o slogan “que se vayan todos” [Todos pra fora!]. Ora, não existe um instrumento legal, constitucional, para que saiam todos. Quer dizer, incluindo senadores e deputados, que saia toda a classe política. Isso nos coloca, naturalmente, diante de uma situação em que a engrenagem política e os grupos de poder conservadores venham a ser os mais beneficiados para dar as cartas, pois são os que detêm os recursos, a engrenagem suficiente para mover o dia seguinte.

Basicamente o debate aqui é sobre o tema da corrupção, colocado muito fortemente pelas grandes mobilizações cidadãs feitas de forma autoconvocadas. Temos muitos jovens condenando a corrupção. Agora, desde o último domingo, tivemos uma incorporação política importante que vai mudar o sentido das mobilizações, que é o fato das organizações camponesas e as centrais sindicais se incorporarem e essa é uma movimentação muito mais articulada, muito mais construída.

Nós acompanhamos o esforço desta mobilização estruturada desde as organizações sociais. Mas temos de compreender que os partidos e os políticos devemos ser catalizadores deste momento e não tratar de pensar que este movimento cidadão e popular é uma propriedade de alguém em particular.

Em um primeiro momento o Paraguai garantiu números extremamente baixos de vítimas do coronavírus, principalmente pelo fechamento de fronteiras e pelas cuidadosas medidas sanitárias adotadas. Agora, os casos explodiram, os mortos se multiplicam e não há vacinas. O que fazer?

Jorge Querey: Em primeiro lugar, é importante esclarecer que o parlamento do Paraguai cumpriu sua obrigação. Do ponto de vista da adequação das leis financeiras foi feito algo incrível, quase uma coisa discricionária, atuando de forma a retirar qualquer burocracia que pudesse vir a prolongar o processo e a ser lesiva à aquisição do que fosse necessário. Por outro lado, foram garantidos todos os recursos para o combate à pandemia. Ainda que tivéssemos a posição de que não era necessário nos endividarmos ao ponto que chegamos, porque havia outras formas de financiar e reorientar os recursos. Mas fizemos tudo para facilitar e agilizar o processo.

A política do governo, de acordo com os setores financeiros, tanto internacionais quanto nacionais, era do endividamento. O endividamento foi o paradigma da gestão econômica da pandemia. E isso causa ainda mais indignação, porque estamos hoje com 100% de camas da rede hospitalar ocupada. No dia de amanhã poderemos ter todo o nosso sistema colapsado, estamos com o limite máximo de utilização de camas, de unidades de contingência, de unidades respiratórias, de terapia intensiva, etc.

A capacidade do sistema de saúde não foi ampliada, ao contrário. O governo insistia que não eram necessárias as camas de UTIs porque a questão era cuidar-se, usar máscara, lavar as mãos. Não há contradição em relação a isso, porém uma coisa obviamente não substitui a outra.

Sou médico de cuidados intensivos. Quando começou a pandemia, a mortalidade de pacientes de Covid nas UTIs era de 90%. Hoje estamos em cerca de 45%. Quer dizer que na realidade as UTIs jogam um papel muito importante para salvar vidas e as camas são absolutamente necessárias. Colapsou o sistema de provisão de medicamentos, que se utilizava tanto para os pacientes de Covid quanto de outras patologias, oncológicas, cardiovasculares etc.

Portanto, as pessoas se perguntam: o que foi feito com os recursos?


Gigantescas mobilizações populares tomaram as ruas de Assunção e das principais cidades paraguaias pela imediata saída do presidente e a convocação de eleições

Qual o valor destes recursos?

Jorge Querey: O crédito de emergência foi de US$ 1,6 bilhão. Porém, na realidade, veio acompanhado de outros endividamentos, pretensamente com o objetivo de reativar a economia, que atualmente estimamos ao redor de US$ 3 bilhões. Esse é o valor que nos endividamos no ano passado.

Para onde foi esse capital? Para o setor especulativo e financeiro, e para o setor rodoviário. A estrutura viária no país está construída com estes recursos e são empresários privados muito próximos ao presidente da República. Mario Abdo Benítez tem uma fábrica, uma estrutura de produção de asfalto. Todas as empresas compram da empresa do presidente. É algo tremendo. É ultrajante.

O negócio das vacinas foi criminosamente mal manejado, porque a esta altura não temos assegurados grandes lotes de vacina. Todas estão ‘em vias de’.

O maior lote, o que parecíamos ter um pouco mais assegurado, de um milhão de vacinas, era devido a uma relação histórica que nosso país tem com Taiwan, com a AstraZeneca. Justamente é com a AstraZeneca a vacina da crise na Europa, e que estão suspendendo a compra. Agora temos que ver o que fazer com este lote que havíamos conseguido.

Houve uma trava ideológica e política que dificultou as aquisições das vacinas. Porque eu, pessoalmente, me ocupei de estabelecer uma relação com a Embaixada da Rússia no Paraguai, a fim de viabilizar a aquisição de vacinas já em agosto do ano passado. Na oportunidade, transmiti ao ministro e à equipe de assessores a solicitação que havia feito. No entanto, as negociações foram congeladas e somente retomadas há pouquíssimo tempo.

O que aconteceu? O que houve foi uma ordem política naquele momento do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de não aproximação com os russos. E Mario Abdo é um dos instrumentos de Trump na América do Sul. Quando mudou de governo nos Estados Unidos, ele foi confrontado com o Partido Democrata, o que nos deixa numa situação geopolítica muito complicada.

A questão é que até o dia de hoje não temos asseguradas grandes doses de vacina, não há datas. Portanto, se duplicam os problemas, que seguem crescendo. Hoje o governo anuncia que o país precisará fazer um novo endividamento pelas vacinas. Foi pago um lote de um milhão de vacinas à Rússia, porém, é para um período de dois anos. Não se estabeleceu um cronograma de entrega. Tudo isso faz com que a situação se agrave.

Enquanto isso se acirra o conflito interno nos partidos Colorado e Liberal?

Jorge Querey: A isso se somam a crescente crise, e os embates, dentro dos dois partidos tradicionais, o Colorado e o Liberal. No Colorado a confrontação muito forte existente é que Horacio Cartes praticamente ocupa o governo em troca de dar sustentação a Mario Abdo Benítez. Quem tem os votos para o julgamento político do presidente é Horacio Cartes, que mantém Mario Abdo amarrado, fazendo com que lhe entregue, permanentemente, espaços de poder, de negócios e de tudo mais.

Isso gera uma grande instabilidade. E qual é o problema? O problema é que todas as grandes manifestações cidadãs expressam “Coloradismo nunca mais!”. Então, há uma preocupação muito grande destes setores, inclusive. Porque no final do ano teremos eleições municipais e, com uma palavra de ordem tão generalizada como “Coloradismo nunca mais”...

Temos setores que declaram: está bem, o presidente pode afundar, mas não queremos ir com ele. A preocupação é clara. Há um ditado que diz: “com os amigos eu vou até o cemitério, mas não me enterro com eles”. [risos].

Em relação ao Partido Liberal, há inúmeras frações internas e a mais forte tem vínculos muito estreitos com o ex-presidente Horacio Cartes. O fato é que Cartes transcende as fronteiras do Partido Colorado, possui vínculos com determinados setores que, aparentemente, tratam de negócios comuns e agendas políticas comuns.

E a Frente Guasú, como se encaixa neste contexto?

Jorge Querey: Há a terceira força que é o progressismo, que somos nós, representados no parlamento pela Frente Guasú, liderados pelo ex-presidente Fernando Lugo. Formo parte desta bancada, que está ao lado das manifestações populares.

Estamos na articulação das forças progressistas do país tratando de gerar iniciativas eleitorais, de construir acordos entre os movimentos sociais e de unificar ações comuns. Nosso esforço é para que não haja dispersão de forças, é para dar uma linha política, a mais clara possível, em defesa do desenvolvimento e da soberania nacional, mantendo um compromisso firme com os setores democráticos e populares do nosso país.


Leonardo Wexell Severo é jornalista, escritor e colaborador do Correio da Cidadania.

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