Correio da Cidadania

Bitcoin e El Salvador

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'Agora aceitamos bitcoins'

Recentemente, El Salvador foi destaque na mídia por anunciar que seria o primeiro país a adotar o bitcoin como uma nova moeda nacional, coexistindo com o dólar, a partir de setembro de 2021. Vinte anos antes, isto é, em 2001, esse país já havia abandonado a soberania monetária nacional quando substituiu sua moeda pelo dólar americano, em procedimento similar ao ocorrido no Equador.

Vale lembrar que El Salvador é um pequeno país na América Central, localizado entre a Guatemala e Honduras, que tem um território de pouco mais de 21 mil km², uma população de cerca de 6,5 milhões de habitantes e um PIB de US$6,9 bilhões em 2020.

A lei do bitcoin de El Salvador não propõe a substituição do dólar por essa moeda. Ela simplesmente autoriza a utilização do bitcoin para pagamentos e recebimentos e torna seu curso legal na sociedade. Mas ela não altera os fundamentos e requisitos de um sistema monetário, cujo princípio é que os preços e contratos sejam denominados na moeda nacional.

Até o momento em que este artigo estava sendo escrito, tudo indicava que o padrão de preços e de contratos continuará sendo o dólar dos Estados Unidos. Dessa forma, a pretendida utilização do bitcoin como meio de pagamento e meio de circulação é equivocada e inócua, pois o dólar seguirá exercendo essas funções monetárias.

O governo justifica a adoção do bitcoin afirmando que terá repercussão positiva no ingresso de capitais estrangeiros e na dinamização da economia, em particular mediante o aumento da produção de energia para a mineração de bitcoins. Neste ponto, destacamos que as grandes unidades de capitais, as que comandam o sistema mundial de acumulação e reprodução do capital, não têm demonstrado muito interesse na utilização dos bitcoins.

Além disso, já está amplamente demonstrada a ineficiência do bitcoin como meio de pagamento e de circulação, dado o elevado tempo de processamento do blockchain em todos os nós da plataforma e pela elevadíssima volatilidade de sua taxa de conversão em qualquer das moedas relevantes da economia mundial. Isso sem considerar o enorme dispêndio e desperdício de energia nos procedimentos da mineração, que já está atingindo limites de custos extremamente elevados.

A eventual conversão de estoques de riqueza monetária, em dólar dos EUA, estaria sujeita a toda a volatilidade das cotações do bitcoin no mercado internacional, que se caracteriza por ser extremamente especulativo. Para se ter uma ideia, o bitcoin foi cotado a US$33.141,00 ao final de janeiro de 2021, aumentou para US$58.796,00 em março e caiu para US$34.655,10 e US$37.305,00, nos meses de maio e junho, respectivamente.

Considerando o mês de junho, a cotação começou em US$36.672,60, no dia primeiro, atingiu um máximo de US$40.500,00 no dia 14 e fechou o mês em US$34.845,00. Além disso, o blockchain do bitcoin tem um limite final de criação, que é de 21 milhões de unidades. Até a metade de junho, já haviam sido mineradas 19 milhões de unidades, de modo que sobram 2 milhões de bitcoins para serem minerados. Não haverá tempo para a mudança na produção de energia em El Salvador para permitir a participação na criação dos bitcoins.

Desde seu início, o bitcoin caracterizou-se por ser um fetiche que mobilizou milhares de interessados em sua mineração e comercialização. O bitcoin, tal como outras criptomoedas, constituiu o mais recente integrante do rol do capital fictício (1). As primeiras unidades foram vendidas por poucos centavos de dólar. Em pouco mais de uma década, seu preço passou os estratosféricos 60 mil dólares. Nesse tempo, consumiu milhares de unidades de equipamentos e milhões de megawatts-hora de energia, além de um tempo de trabalho considerável, não só no próprio processo de criação e circulação, mas por todo o aparato que foi criado na mídia.

Um gigantesco desperdício em termos sociais, pois, a rigor, além de inútil, ele só tem servido de fundamento como mais um elemento para a especulação financeira. Sem contar a lavagem internacional de dinheiro, a fuga dos sistemas tributários e até fuga de capitais. Com isso, naturalmente enriqueceu um grupo dos que estão participando, mas empobreceu uma enorme massa de incautos que acreditaram em um enriquecimento rápido.

Em El Salvador não deverá ser diferente. Uma pequena parcela dos mais ricos da população pode enriquecer ainda mais, se conseguirem exercer adequadamente o papel de especulador. A maioria da população, os mais pobres, cairá nas malhas da especulação e provavelmente acabará perdendo o que tiver “investido” nesse novo fetiche.

Nota
[1] Sobre isso ver Nakatani, Paulo e Marques, Rosa Maria. O capitalismo em crise. São Paulo, Expressão Popular, 2020.

Paulo Nakatani e Rosa Maria Marques são economistas.
Publicado originalmente na Revista Socialismo e Liberdade.

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