Correio da Cidadania

A vitória de Gabriel Boric

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Foto: Juan Farias / AGENCIAUNO - La Tercera, retirado do site do IELA (Instituto de Estudos Latino Americanos, da UFSC)

Com as eleições presidenciais do Chile, a América Latina fecha 2021 com um acontecimento de caráter transcendente. Gabriel Boric Font derrotou José Antonio Kast pela contundente margem de quase 12% de votos, numa eleição que bateu o recorde nacional de participação.

Depois de manifestações de grande densidade na Colômbia, reviravoltas no Brasil com a anulação das condenações de Lula da Silva e a derrota do peronismo nas eleições intermediárias parlamentares argentinas, a eleição presidencial chilena coroou um processo de mobilização política de massas iniciada em 2019 que levou à convocação de uma Convenção Constitucional que enterrou de vez, pendente de aprovação em referendo em 2022 da nova Constituição, a era Pinochet. Mas a convenção constituinte e a eleição de Boric significaram também o fim de um ciclo latino-americano em que partidos vários de centro-esquerda governaram de modo bastante tradicional. Alguns querem ver na vitória de Boric simplesmente o triunfo da recusa do neoliberalismo, mas há muito mais em jogo de um ponto de vista político mais específico.

Sim, a Convenção Constitucional chilena e a eleição de Boric foram um triunfo do antineoliberalismo e de uma promessa de Estado de Bem-estar social, além de recolher as lutas dos mapuches e do movimento feminista, entre outros. Mas o questionamento às oligarquias partidárias e ao que se constitui, de uma maneira ou de outra, como seu condomínio comum do poder se destaca nessa equação. Nesse sentido, se as diversas esquerdas latino-americanas comemoram a derrota da excrescência neopinochetista encarnada por Kast, devem dar-se conta de que é delas também que a fábula fala.

Boric pertence à Frente Ampla, partido oriundo do movimento estudantil que há décadas organiza a juventude chilena contra o sistema político oligárquico – oligarquizado tal qual todos aqueles que se constituem sob a democracia liberal, bem menos de resto o chileno, porém, por exemplo, que o brasileiro, ao qual a esquerda se adaptou e ao qual se incorporou. Apruebo Dignidade, coalizão no qual se somam a Frente Ampla e o Partido Comunista, excluído pela legislação daquele condomínio partidário (justiça seja feita, a mudança do sistema eleitoral começou sob a presidência de Bachelet, a presidenta mais avançada da Concertación), pôs em questão exatamente esse fechamento do sistema político, democrático em certa medida, oligárquico, por outro lado.

Candidatos jovens, marcadamente críticos do exclusivismo partidário e das alianças do poder, eles foram inclusive ultrapassados pelas multitudinárias manifestações que, de 2019 em diante, sacudiram o Chile e o governo de Sebastián Piñera, levando à convocação da Convenção Constituinte, com até uma lista de candidatos independentes dos partidos. O neoliberalismo e o domínio dos partidos foram ambos postos em questão. Mas, fiel a seu ideário antioligárquico e antineoliberalismo, antimachista e ambientalista, pluralista e aberto, a coalização que se cristalizou em Apruebo Dignidade foi capaz de adaptar-se à situação, juntar os movimentos sociais (sindicais, ambientais, estudantis, dos povos originários, feministas, das diversidades de gênero, coletivos de jovens das periferias) e reafirmar os compromissos e o alcance da insurgência popular dos últimos anos.

Esta em larga medida teve seu espelho antecipado no Brasil de 2013 e em vários outros momentos pela América Latina. Não há porém – ainda, esperemos! – inovação institucional que garanta uma mais profunda e permanente desoligarquização do sistema político chileno. Trata-se portanto de um enorme desafio, conjuntural e da imaginação radical, voltada para o longo prazo, de criar um novo horizonte civilizacional, com um governo efetivo e, ao mesmo tempo, comprometido com a democratização da política e a participação do cidadão comum, para além do controle vertical dos partidos, de resto tão ao gosto das organizações de esquerda.

Enquanto isso seguimos, em muitos rincões de “nuestra América”, reféns dos grandes líderes infalíveis, que tanto erram, e dos aparatos político-partidários que se aferram ao poder por todos os meios. De você fala a fábula: bem que nossas esquerdas partidárias poderiam ouvir a advertência e buscar transformar-se, tomando mais a sério, como já ensaiou um dia, a democratização da democracia.

Mas é improvável que isso ocorra de cima para baixo. Como desde os antigos e sobretudo de Maquiavel se sabe, é do povo – não das oligarquias, seja do dinheiro, políticas ou supostamente do espírito – que depende a liberdade. Na democracia representativa liberal e inclusive no que a ela pode se seguir, é exatamente na alteração do peso da participação popular, dos homens e das mulheres comuns, inclusive e em boa medida caótica, em relação aos aparelhos de poder que se joga o destino da liberdade.

No início dos anos 1970, em contexto muito diferente do atual, ela se jogou com Salvador Allende e seu socialismo democrático. Perdemos. No domingo, com o Chile mais uma vez, a ganhamos. Que nos abanderemos dela, sempre buscando ampliar e aprofundar a verdadeira democracia, nos quadros da república liberal, mas pensando para além dela. Quem sabe daí saia finalmente, em algum momento futuro, um socialismo que faça justiça a seu nome.



José Maurício Domingues é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Autor, entre outros livros, de “Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades”(Mauad)

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