Correio da Cidadania

América Latina em 2021: um vendaval de resistência pela vida atravessa o continente

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Foto: Minga Indígena na Colômbia. Retirado do site da Teia dos Povos.

Se 2019 havia sido o ano das grandes revoltas (entre as quais se destacaram as do Chile e do Equador), em 2021 a potência da luta nas ruas não pôde deixar de aprofundar e expandir o ocorrido antes da pandemia. Uma rápida passagem ao que vem ocorrendo desde a fronteira com os Estados Unidos até a Patagônia chilena e argentina revela que os povos em movimento não deixam de avançar, ainda que muitas vezes as ações locais passem despercebidas.

A meu modo de ver, a greve lançada em 28 de abril na Colômbia é o fato mais significativo, por vários motivos. Devia ser uma paralisação de 24 horas, segundo as centrais sindicais, mas os jovens e as mulheres transbordaram a convocação. Nos fatos, a paralisação durou mais de dois meses, com ruas fechadas durante semanas e semanas, como a estratégica Panamericana.

As manifestações de milhões de pessoas abarcaram centenas de municípios, paralisando o país com ações massivas e com a criação de “pontos de resistência” onde jovens se concentravam para liberar zonas e fazer uma vida cotidiana segura diante da bruta repressão do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (ESMAD).

A cidade de Cali, cuja população é majoritariamente afrodescendente, foi o epicentro dos protestos com 25 “pontos de resistência”, com a derrubada de estátuas de colonizadores e escravagistas, e a edificação de antimonumentos como o Resiste, emblema do levantamento popular.

Houve dezenas de mortos e desaparecidos pela ação repressiva, mas em Cali esteve também presente a Guarda Indígena nasa (da etnia nasa) que chegou da região vizinha do Cauca para apoiar os manifestantes, acossados também por civis armados e apoiados pela polícia. Foram criadas também as “primeiras linhas” de autodefesas urbanas juvenis, que também acolheram mães que queriam proteger seus filhos e filhas, sacerdotes e até militares aposentados.

As ondas de protestos continuaram até dezembro, com a chegada da Minga Indígena do Cauca a Cali, em protesto pelo contínuo assassinato de seus membros e em renovado apoio a seus habitantes.

A onda de protestos debilitou o governo de Iván Duque e enterrou o uribismo (setor político liderado pelo ex presidente Álvaro Uribe) que havia governado a Colômbia com mão de ferro desde o começo do século XXI.

Transladou o centro do protesto desde as áreas rurais na direção das áreas urbanas, colocou a juventude sem futuro no centro do cenário político e gerou uma intensa politização da sociedade, cuja imensa maioria reivindica mudanças urgentes.

A médio prazo, a confraternização entre indígenas e jovens urbanos pode abrir as portas a novas relações entre setores chave para o desenvolvimento de práticas emancipatórias no país.

Já em um Chile dominado pela Convenção Constituinte que está redigindo uma nova Constituição para substituir a herdada pela ditadura de Pinochet, o povo mapuche segue sendo o mais ativo, já que não se deixou desgastar pelos processos eleitorais.

Uma amostra disso é que na região de Temuco, epicentro do movimento, a tomada de terras levou o governo de Sebastián Piñera a decretar a ocupação militar de Wall Mapu (território mapuche), tentando desse modo conter a luta pela recuperação de espaços históricos. Para termos uma ideia da magnitude do movimento, vale dizer que entre janeiro e abril de 2020 houve 34 recuperações de terras pelas comunidades, mas nos mesmos meses de 2021 a cifra mais que triplicou para 135 retomadas.

No outro extremo do continente, os povos originários e camponeses do México seguem lutando contra as grandes obras de infraestrutura. Os mayas se opõem ao Trem Maya, e um amplo movimento do istmo de Oaxaca busca frear as obras do Corredor Interoceânico e, em todos os rincões do país, grupos e coletivos se mobilizam contra o modelo de morte em que se transformou o capital atual.

Devemos destacar que em plena pandemia o EZLN tomou a iniciativa que chamou de Gira pela Vida, com a qual recorreu as resistências da Europa durante os meses de setembro a dezembro. Sustento que esta turnê representa uma virada na solidariedade internacional e no modo em que se relacionam os movimentos. Estamos acostumados a grandes encontros, como faziam das quatro internacionais até espaços recentes como o Foro de São Paulo e outros, protagonizados por homens brancos e educados, dirigentes de partidos e movimentos, em hotéis de luxo ou em ginásios poliesportivos e universidades.

 A gira zapatista envolveu, por outro lado, quase 300 pessoas, em sua maioria mulheres indígenas, jovens e crianças, que foram convidados por mais de mil coletivos europeus que arcaram com os gastos da gira organizando atividades autônomas como festas e rifas. Em grupos de quatro ou cinco pessoas, mantiveram centros de reuniões nas quais se escutaram uns aos outros, sem meios de comunicação, sem fotos para redes sociais, apenas para abraçarem-se entre as e os de abaixo [‘las y los de abajo’, ou seja, das bases da sociedade].

Nossa rápida passagem pelo continente podia terminar em dezembro na província argentina de Chubut, onde o parlamento local aprovou a mineração predatória contra os interesses da sua população. Uma enorme pueblada (insurreição) que chegou a incendiar a casa de governo de Rawson, a capital da província, durou quase uma semana e conseguiu que o governador kirchnerista tivesse que anular o aprovado pelo parlamento para acalmar o povo.

O ocorrido em Chubut, somado a grandes mobilizações contra o acordo que o governo que Alberto Fernandez está por assinar com o FMI faz pensar que os progressistas argentinos – cada vez mais ‘endireitados’ – estão encontrando limites a sua pobre gestão do modelo extrativista de acumulação por roubo.

Em síntese, foi um ano de lutas importantes em todos os países. Os povos vão se sobrepondo aos estragos da pandemia e dos governos que, à direita ou à esquerda, aproveitam-se da crise para aprofundar o modelo.

Tudo indica que 2022 será um ano decisivo. Desde junho de 2013 no Brasil, ou de datas semelhantes em outros países, marcadas pela presença nas ruas, nenhum governo tem estabilidade. A governabilidade neoliberal está esfumaçando diante das lutas dos povos. O modelo é cada vez resistido e, pouco a pouco, os povos vão criando o novo. Como um exemplo disso e para encerrar esse artigo, conhecemos esse ano a criação do Governo Territorial Autônomo Awajún, no norte do Peru, herdeiro do “Baguazo” de 2019.


Raul Zibechi é jornalista e analista político uruguaio.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

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