Equador: “Levante demonstrou capacidade de organização popular diante do recrudescimento do modelo neoliberal”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 20/07/2022
Manifestantes no centro de Quito: Créditos: Patricio Pilca.
Após 19 dias de mobilizações populares com brutal repressão policial e quatro ministros que renunciaram ao governo, foi feito um acordo que obriga esse governo a baixar os preços dos combustíveis e controlar a mineração em terras indígenas, entre outros pontos propostos por organizações sociais, especialmente o Movimento Indígena, em busca de enfrentar as condições cada vez mais precárias do povo equatoriano. O país finalmente retoma seu ritmo, mas segue em alerta quanto ao cumprimento dos acordos pelo presidente Guillermo Lasso. Nesse contexto, entrevistamos Gabriela Borja, socióloga da Universidade Central do Equador, em Quito.
Nossa entrevistada é filha de imigrantes chilenos que fugiram da ditadura pinochetista e colabora com organizações e comunidades camponesas e indígenas. Para ela, a greve nacional, além das conquistas e limitações, foi uma demonstração de força das classes populares e setores empobrecidos do povo equatoriano.
“Se esses acordos forem cumpridos e as mesas técnicas entre o Movimento Indígena e o Governo especificarem os pedidos, serão conquistas que podem aliviar um pouco o empobrecimento que vivemos no Equador e as condições de vida que estamos passando. Realmente passamos muito mal e isso pode melhorar um pouco o dia a dia da cidade. Questões como o acesso à saúde pública são terríveis no Equador. Se você precisar de atendimento médico, não há remédios ou suprimentos, você tem de comprá-los. O desinvestimento em educação e outros serviços públicos é evidente. Estamos vivendo uma situação muito complicada, então essa demonstração de força e união dos diferentes setores foi necessária”, explica Gabriela.
A ideia de falar com ela era justamente ter um olhar de dentro do movimento social equatoriano. Gabriela Borja atua como pesquisadora acadêmica e militante/ativista dentro desses setores. Ela conta que a organização de base dos setores camponeses e indígenas é diária e, após explicar cada um dos pontos demandados pelas mobilizações, deixa claro como esses pontos foram concebidos em inúmeras assembleias comunitárias e de bairros. Também nos explicou como os setores dominantes da sociedade equatoriana lidaram com a repressão física, bem como as narrativas para justificá-la.
“A partir de um jogo de 'mocinhos e vilões', eles davam a compreender os comportamentos e condutas que atribuíam a cada categoria: de um lado, estão os indígenas bons que protestam por algo justo e do outro lado há os violentos, ou seja, os que são agredidos, presos etc. Mas essa divisão entre um e outro é muito difusa. E esse discurso de 'mocinhos e bandidos' foi amplamente reproduzido em todas as áreas. Costumam dizer que 'os indígenas têm motivos para protestar, mas...', e depois do 'mas' vem a regra de conduta e comportamento, a qual quem pratica deve ser reprimido, agredido etc. A definição é variável: se você paralisa uma via e impede a circulação de mercadorias, isso já é considerado violência. Assim, para que um protesto não seja considerado 'violento', ele não deve interferir de forma alguma na rotina e na reprodução do capital. Ou seja, não há possibilidade de protestar de forma útil sem que se torne violento", analisou.
Depois de um balanço positivo – e bastante realista – da greve nacional, ao analisar o país e as condições que se apresentam para os próximos meses e anos, o otimismo vai embora e dá lugar à incerteza. “Agora, vamos suportar mais três anos de um governo muito antipopular que não mudará suas políticas em termos gerais, continuará aprofundando o modelo neoliberal. Acredito que a mobilização deve ser permanente”, concluiu.
Leia a entrevista completa abaixo.
Gabriela Borja, socióloga formada pela Universidade Central do Equador, com mestrado em gestão integrada de recursos hídricos, em abordagem crítica, sobre a gestão comunitária de recursos como forma de fortalecer comunidades em paralelo com a gestão de tecnologias e conservação ambiental .
Correio da Cidadania: Qual é o seu balanço do fim das mobilizações após o acordo entre a CONAIE (Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador) e o governo Lasso sobre os valores dos combustíveis, entre outras nove demandas?
Gabriela Borja: Na realidade, o acordo vai muito além da questão do combustível. Se o governo cumprisse as questões acordadas, se os grupos técnicos aceitassem as propostas do Movimento Indígena, poderíamos pensar que sim, há avanços em alguns aspectos, como o Decreto de Emergência em Saúde, a questão do limite para a expansão da fronteira petrolífera, concessões mineiras, entre outros. A questão da 'privatização' não está no acordo, e em algum momento pudemos ver o governo dizendo que não faria nada disso, mas sabemos que é possível que sim, as faça, usando outras figuras. E é o mesmo caso em outras áreas, como mineração em áreas protegidas, zonas arqueológicas, devemos estar atentos às categorias de conservação que entram na fronteira de mineração e aquelas que não entram.
Também entraria em debate a questão do alívio temporário das dívidas com o sistema financeiro que aumentaram durante a pandemia e que afogam as famílias, especialmente no setor camponês que depende fortemente de créditos para a produção. Por um lado, antes do acordo e durante a greve, o governo havia dito que aumentaria o bônus do desenvolvimento humano em US$ 5, o que não é nada, mas para algumas famílias pode ser um pequeno alívio, esperemos que sim.
Em alguns grupos sociais talvez tenha havido algum incômodo nas bases, sobretudo devido ao acordo e ao fim da greve. No sentido de que "nossos mortos não custam 15 centavos". Mas, é preciso entender que as conquistas vão muito além disso. Para a greve nacional antes de mais nada, é uma demonstração da capacidade de organização que o povo tem diante do ressurgimento do modelo neoliberal, isso é algo muito importante, porque o que as consequências das políticas do governo produzem e produzirão no Equador é algo que ainda não medimos bem, principalmente no longo prazo, mas sabemos a gravidade do que está acontecendo, inclusive o que estamos vivenciando atualmente. Mesmo voltando aos combustíveis, acho que essa redução de 15 centavos pode representar um alívio, embora não diretamente para o consumidor final nos preços dos alimentos, por exemplo, mas alivia um pouco a pressão sobre outros setores que estão dentro das cadeias produtivas.
Embora os líderes possivelmente não considerem assim, a greve foi uma demonstração de força, dos setores populares contra o governo. Acho que isso é importante, em termos de lidar com o que está acontecendo no país. Se os acordos forem cumpridos e as mesas técnicas entre o Movimento Indígena e o Governo finalizarem as propostas, seriam conquistas que podem aliviar um pouco o empobrecimento que vivemos no Equador e as condições de vida que estamos passando. Realmente passamos muito mal e isso pode melhorar um pouco a situação no dia a dia da cidade. Questões como o acesso à saúde pública são terríveis no Equador. Se você precisa de cuidados médicos, não há remédios ou suprimentos, você tem que comprá-los. O desinvestimento em educação e outros serviços públicos é evidente. Estamos vivendo uma situação muito complicada, então essa demonstração de força e união dos diferentes setores foi necessária.
Esse seria o meu balanço do fim das mobilizações. E um fato que eu queria mencionar é que muitas pessoas, quando finalmente saíram os acordos, estavam festejando, e muito por conta da adrenalina da luta. No entanto, outras pessoas, como eu, ficaram tristes. Fiquei aliviada por tudo ter acabado porque isso significava muito sofrimento para os companheiros e companheiras que vinham das províncias. Eles não estavam se divertindo nem um pouco, apesar de nos esforçarmos para fazê-los ter dias melhores. Também mulheres e crianças, a tristeza dos mortos, a tristeza de como ficam agora os territórios feridos. Aqui em Quito, por exemplo, as comunas pertencentes ao povo Kitu Kara [povo originário da região de Quito] foram atacadas.
Essas feridas permanecem, o medo e o pânico nas pessoas, especialmente de ouvir bombas em crianças. Isso tem um impacto psicológico a longo prazo. Também as latas de gás lacrimogêneo que foram jogadas nas casas das pessoas em muitos lugares. Essa ferida permanece. E também a evidência de todo o racismo que existe em uma pequena parcela da população de Quito foi muito forte e também abre feridas coloniais que temos e que estão sempre nos rondando.
Correio da Cidadania: Você me diz então que foi uma revolta mais ampla na sociedade equatoriana, muito além da questão do combustível. Que outras reivindicações importantes foram postas e como se relacionam com as condições de vida do conjunto dos equatorianos?
Gabriela Borja: O sentido da organização essa greve nacional é diferente do de uma revolta espontânea. Os níveis de organização são bastante fortes e vão desde as consultas às bases do movimento, até o estabelecimento dos pontos que íamos reivindicar e a preparação e execução das mobilizações, da estratégia, de tudo. Ou seja, antes da mobilização havia a participação de outros setores e, durante a mobilização, essa participação foi se tornando mais evidente.
A Conaie construiu o levante em conjunto com a FEINE (Conselho de Povos e Organizações Indígenas Evangélicas do Equador) e a FENOCIN (Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras). São três organizações que têm linhas políticas e até espirituais diferentes, mas quando as coisas se complicam há unidade. Graças a esta unidade, que é histórica, houve revoltas e greves, e foi possível organizar esta ultima revolta.
Entre os pontos de reivindicação, destaco a redução dos preços dos combustíveis. Propõe-se a redução de 10 centavos de dólar no preço dos combustíveis. O preço da gasolina Extra e Eco País cai de 2,55 para 2,45 dólares por galão (3,7 litros), enquanto o diesel cai de 1,90 para 1,75 dólares por galão.
O segundo ponto foi o alívio econômico, algo como uma moratória sobre as dívidas dos setores camponeses. Mas também outros setores, principalmente famílias e cooperativas que deviam aos bancos. É importante dizer que durante a pandemia não só ficamos impossibilitados de trabalhar, mas também, com a chamada "Lei Humanitária", os salários foram cortados pela metade, depois houve outras medidas terríveis também, portanto, as economias familiares estão destruídas .
Outra questão é a demanda por preços justos para os agricultores, principalmente em determinados produtos que são os mais vendidos. E isso inclui questões de subsídios para fazendas da agricultura familiar. Estas são algumas questões que ao final podemos resumir em melhores condições para os camponeses. O próximo tópico são os direitos trabalhistas. Como a “lei humanitária" reduziu os salários, agora se busca fortalecer as políticas defendidas pelos trabalhadores. De fato, durante a greve foi derrubada lei humanitária, isso é importante lembrar como uma conquista no balanço da greve.
O próximo ponto seria a moratória sobre a expansão da mineração extrativista e da fronteira petrolífera. Com os decretos 95 (petróleo) e 151 (mineração), e com os resultados que mencionei. Em seguida, quanto aos 21 direitos coletivos, contemplados na Constituição, especialmente no que se refere à autonomia territorial e à consulta prévia, livre e informada aos territórios onde pretendem fazer mineração. Estou ciente no meu trabalho diário que as instituições do Estado não conhecem bem, nem se interessam, nem respeitam os direitos coletivos das comunidades. Nesse ponto, há também o fortalecimento do sistema de educação intercultural e bilíngue, que vêm de um processo de enfraquecimento que começou no governo Correa – em que se impôs uma educação centralizada sobre o que havia sido alcançado na educação intercultural e bilíngue. Rever isso também é uma reivindicação.
O próximo é a exigência de controle de preços contra a especulação e é algo que tem a ver com o consumo e também algo que vai no sentido de favorecer a economia popular, das famílias. Depois, o ponto da educação e da saúde, especialmente o ensino superior para que garanta a admissão dos jovens nas universidades, e na saúde, exige-se que seja declarada emergência para que sejam atribuídos os recursos necessários, que haja pessoal e medicamentos.
O último ponto, o décimo, tem a ver com a segurança cidadã, pois o país vive uma onda de crimes nunca vista antes. É verdade que sempre houve violência e que tenhamos visto um aumento nos últimos anos, mas a situação de violência que vivemos hoje é impressionante. É normal que haja oito assassinatos em plena luz do dia em um único dia. Além de massacres penitenciários com centenas de vítimas. Não tínhamos visto tanta violência.
Especialmente a província de Esmeraldas, que tem a maior população afrodescendente do Equador, está passando por um momento difícil de violência social, com carros-bomba, assassinatos diários, extorsão de empresas, ONGs, funcionários públicos, inclusive o pessoal da limpeza está sendo extorquido. As instalações estão a fechar, há muitas pessoas que vivem do turismo e não terão mais recursos nem condições de trabalhar, uma vez que cada vez menos turistas visitam a província.
É muito triste, porque é uma província que historicamente sofreu com o racismo estrutural, com orçamentos minúsculos e muito empobrecimento e desapropriação de recursos naturais. E bem, agora não sabemos mais o que vai acontecer lá, as pessoas não podem mais trabalhar normalmente, e não há saída. Portanto, durante o levante, também se exigiu que o Estado assumisse sua responsabilidade nessa questão.
São, em sua maioria, pontos econômicos, mas também pontos estrategicamente pensados para melhorar as condições de vida da sociedade como um todo, especialmente dos setores mais excluídos da sociedade, e principalmente dos povos indígenas e afrodescendentes.
Correio da Cidadania: Ao final da greve, como fica a relação com a polícia e a repressão que você mencionou?
Gabriela Borja: Ao final da greve, ficamos com a estranha sensação em que é comum as pessoas se perguntarem: olha a quantidade de soldados e policiais que existem, as tecnologias que eles têm, os trajes de robocop, não é a normalidade do cotidiano, mesmo com toda a delinquência que a nossa sociedade vive, não há um desdobramento tão grande no cotidiano das forças de segurança, para proteger as pessoas da violência que é vivida. Também não queríamos que fosse assim, o ideal seria que a polícia não fosse necessária.
Correio da Cidadania: O que você pode destacar da construção desses 19 dias de mobilização? Como se organizam as diferentes comunidades nas bases da sociedade?
Gabriela Borja: As comunidades em geral, e principalmente as indígenas, têm essas formas de organização comunitária desde tempos imemoriais. Não gosto de usar a palavra 'ancestral', porque há todo um processo histórico e relações de poder, mas, enfim, são comunidades que têm essas formas de organização da vida, no cotidiano, presentes desde antes da chegada dos espanhóis, ou mesmo dos incas. Ou seja, a organização comunitária é algo que se vive no dia a dia, está aí para, por exemplo, questões de infraestrutura comunitária.
Todos os acessos a pontos d'água em comunidades rurais ou indígenas foram construídos no esquema minga, ou seja, trabalho coletivo. Tudo funciona assim. Você vai colocar iluminação pública, as pessoas fazem convênios com o município, que coloca os postes, as pedras, enquanto a população coloca a mão de obra. Dessa forma a infraestrutura é construída e os custos são reduzidos, muitos municípios e comunidades funcionam assim. O que eu quero dizer é que a organização comunitária não é tecida durante a mobilização mas é algo vivido no cotidiano. É como a vida é organizada. Depois tem a minga, que é essa forma de trabalho coletivo, entre outras formas de trabalho solidário. Há toda uma comunidade e um tecido coletivo. E essas comunidades têm como autoridade máxima as suas próprias assembleias comunitárias.
Os conselhos saem das assembleias, e são os que executam as decisões da comunidade. Mas é a assembléia que analisa coletivamente e toma decisões. Em outras palavras, se pensarmos na greve, podemos perceber quanto tempo foi gasto em discussões, em assembleias etc., até a execução da greve. Para determinar o dia 13 de junho como data da greve, muitos meses antes houve um processo de consulta às assembleias pelas organizações. São processos coletivos que vão de baixo para cima e que existem não apenas em momentos de emergência, mas também na vida cotidiana.
É importante que os movimentos da cidade aprendam com essas práticas, que também existem em Quito, especialmente nos bairros que eram comunas, comunidades rurais ou indígenas. Em Quito existem mais de noventa comunas e comunidades pertencentes ao povo Kitu Kara, que é o povo originário daqui, e, durante a greve, muitas pessoas das classes altas se perguntavam 'de onde vieram tantos índios?', mas eles estão sempre lá. O que acontece é que essas comunidades Kitu Kara são constantemente invisibilizadas na tentativa de dar a Quito uma imagem de uma cidade branco-mestiça (termo utilizado no Equador; blanco-mestizo), quando na realidade não é bem assim e ainda existem comunas e comunidades que, além de simplesmente existirem, também estão se fortalecendo. E em um contexto em que o município historicamente desempenha o papel de tentar destruí-los. Entre muitas maneiras, impedindo que essas comunidades tenham a propriedade coletiva da terra, obrigando-as a individualizar cada pedaço e assim romper o tecido comunitário. Em muitos lugares eles foram bem sucedidos e em outros não. Nesses momentos de efervescência social é quando tais coisas transparecem mais.
Durante a campanha eleitoral, Guillermo Lasso usou o sapato vermelho como seu símbolo – ele aparecia trajando-o e seus apoiadores usavam nas redes sociais etc. Agora, durante a greve nacional, o símbolo foi objeto de sátira e críticas. Autor: Patrício Pilca
Correio da Cidadania: Como a resposta policial do governo vai dialogar com esse racismo estrutural que você relata?
Gabriela Borja: O racismo que existe no Equador vem da época colonial e, para simplificar, vou dividi-lo em dois. Um, o racismo direcionado diretamente das populações branco-mestiças para os indígenas e afrodescendentes, e o outro tipo que vem do etnocídio, em que uma pessoa não se reconhece como indígena ou afro, por exemplo, mesmo que o seja. Não sou especialista nisso, mas a ideia é apontar que há uma complexidade na dinâmica do racismo no Equador.
Em relação à polícia, se por um lado ela pode operar a partir de uma lógica racista como as polícias ao redor do mundo geralmente atuam, aqui há um grande contingente de policiais indígenas. Inclusive o policial que faleceu na greve era indígena, o que faz com que os indígenas digam que sempre são eles que colocam os mortos, mesmo os do lado do Estado. Há um racismo na polícia e nas forças armadas que é institucional e vai além das pessoas que os compõem. E a medida que a instituição se fortalece como instituição colonial, o racismo vai aparecendo mais.
No caso específico da greve, não vimos as práticas racistas mais evidentes vindo da polícia, que desempenhou um papel de repressão sistemática, é verdade, mas sobretudo do grupo de cidadãos que são chamados de “cidadãos de bem” por si próprios. Esses cidadãos abastados, pertencentes às classes média, média-alta e alta, branqueados, foram os que mais posicionaram e reproduziram discursos racistas. Todo tipo de coisa, de insultos terríveis ou formulações dizendo que as camponeses deveriam ficar nas províncias, que a cidade não era o seu espaço, e por aí vai.
No 10º dia de greve, foram disparados tiros pelos “cidadãos de bem” contra os manifestantes. Isso aconteceu em Tumbaco, onde civis saíram de carros para atirar nos manifestantes, incentivados por todo aquele discurso impregnado de racismo. Isso nos coloca em alerta, porque é uma questão que, mesmo com o fim da greve, permanece nos territórios. Tumbaco, por exemplo, é um vale nos arredores de Quito onde há uma grande população indígena, tanto Kitu Kara quanto indígena migrante de outras áreas, mas ao mesmo tempo, após um processo de gentrificação, há agora setores de classe média de onde saem alguns dos “cidadãos de bem”. Faz anos que há relatos de tentativas de armar as populações ricas dessas áreas para expulsar os "índios que vêm sujar Quito", como costumam dizer.
Do governo, da mídia, dos discursos que aí foram gerados, também é digno de nota um discurso de "mocinhos e bandidos" como forma de controle de conduta das massas. Por exemplo, eles nunca falaram literalmente em "maus indígenas" ou "maus manifestantes" em seus discursos oficiais, mas por meio de um jogo de "mocinhos e bandidos" deixaram claro quais comportamentos eles colocaram em cada categoria: de um lado estão os índios bons que protestam por algo justo; de outro lado, os violentos, ou seja, os que são agredidos, presos, mortos etc. Mas essa divisão entre um e outro é muito difusa e o discurso de "mocinhos e bandidos" foi amplamente reproduzido em todas as áreas. Dizem que "os indígenas têm motivos para protestar, mas...", e depois do "mas" vem a regra de conduta e comportamento daqueles que podem ser reprimidos, espancados, etc.
A barbárie pode ser feita sobre esses corpos porque seriam “os violentos”, e embora não haja uma definição exata, a que existe já é muito criminalizadora. Por exemplo: se você paralisa uma estrada e impede a passagem de mercadorias etc., isso já é considerado “violência”. Assim, para que um protesto não seja considerado “violento”, não pode interferir em nada da rotina e reprodução do capital. Em outras palavras, não há possibilidade de protestar de forma útil sem se tornar um 'ser violento'. E isso é importante tanto para compreender a repressão, como o racismo estrutural, baseado no mito do “bom selvagem”, entre outros aspectos.
Podia mencionar também a atitude do governo durante as mesas de diálogo, nas quais fez esperar durante horas, e até dias, os dirigentes indígenas, e ao final o presidente da República não compareceu, não apenas por covardia, senão pelo fato de que sua presença produziria um diálogo entre autoridades, e as autoridades branco-mestiças sempre quiseram evitar esse tipo de horizontalidade.
Correio da Cidadania: E que outros destaques você pode fazer das respostas, policiais ou não, do governo?
Gabriela Borja: A resposta do governo foi bastante desajeitada no sentido de que eles subestimaram a capacidade de convocação do movimento indígena e dos movimentos sociais em geral. Assim que começou a greve já sequestraram, apreenderam sem o devido processo legal a Leónidas Iza, presidente da Conaie, com a desculpa de que estava paralisando um serviço público. Ele não estava em flagrante quando o levaram, tiraram-no de um veículo e ele foi levado. Isso gerou nas pessoas uma necessidade de defendê-lo. As pessoas estão revoltadas em todos os setores. Depois disso, cerca de dois ou três dias, houve um atentado a tiros contra outro militante, e enquanto esses episódios passavam, a repressão nas ruas já começara e continuava acontecendo.
Na parte norte da cidade, onde há uma importante entrada para Quito, houve muita repressão e as forças policiais atuaram com estratégias militares. A população, ao invés de se sentir intimidada, quis participar mais como se fosse uma emergência a sair e apoiar a mobilização. Isso aconteceu mesmo em áreas onde a população não estava determinada a participar. À medida que o governo reprimia e errava, a mobilização crescia.
Essa tática de amedrontamento vem de antes. Cerca de um mês antes, prenderam um grupo de jovens de diferentes organizações, mas sobretudo do Movimento Guevarista. Eles os prendem e os acusam de terrorismo, sabotagem, tráfico de pessoas, era evidentemente uma forma de intimidar, de dizer ao povo que se continuar protestando e se organizando, isso poderia acontecer com qualquer um. Essas são as cartas que o governo joga.
E bem, ainda não se sabe como terminará o processo desses jovens, mas se o juiz determinar a prisão, mais manifestações devem ocorrer.
Outra questão importante é a estratégia repressiva que o governo tem usado. Em outras manifestações foi uma estratégia mais urbana, de contenção das marchas, mas desta vez vimos uma estratégia que nos pareceu de natureza militar. Falo como observadora, não sou especialista em tais questões, mas acho que é a melhor forma de expressar as impressões que tive. Era claramente perceptível que eles estavam fazendo uma guerra de posições.
Há dois episódios em que isso parece muito claro. Uma delas foi a apreensão da Casa de la Cultura em intervenção policial, com a ideia de transformar um espaço que sempre foi usado como ponto de encontro pelos indígenas em um pequeno quartel militar e policial temporário, ou seja, como ganho de posição do inimigo.
A outra estava no norte de Quito. Já se sabia que as pessoas que vivem no norte da província de Pichincha, onde fica a capital, e das províncias mais ao norte, vêm pela estrada Pan-americana Norte e são recebidas no caminho pelas comunas dos povos kitu karas que ficam nesta área, onde comem, descansam etc., antes de terminar a viagem à capital.
Em seguida, a polícia e os militares se colocaram entre essas áreas de parada e a entrada da cidade, para impedir a chegada das pessoas. Mais uma vez, 'ganhando posições'. E houve um massacre ali, sete mortes, pessoas que perderam os olhos, entre outros, sob muita repressão, principalmente em cima dos camaradas que vieram do norte. No final, muitos tiveram que pegar outras rotas, pelo meio das montanhas, para chegar ao centro de Quito.
Correio da Cidadania: Finalizando o balanço da greve, e levando em conta uma sociedade bastante masculinizada que você também descreveu acima, o que comenta sobre a presença feminina?
Gabriela Borja: A participação das mulheres na greve foi muito ativa. Houve a presença de movimentos feministas nas ruas desde o primeiro dia e depois quando chegaram os companheiros das comunidades provinciais, as companheiras do movimento feminista, e de outros movimentos, se organizaram para fazer toda a estrutura necessária para receber as do interior, desde o cuidado, organização, alimentação etc. As pessoas do interior iam vir de qualquer jeito, mas com essa organização puderam vir com um pouco mais de facilidades, para uma jornada muito difícil. A intervenção das feministas e do movimento estudantil foi decisiva para liberar os espaços nas universidades onde os colegas do interior pudessem ficar.
Para além da organização do território, organizando o acolhimento dos camaradas do interior, tivemos também uma forte presença nas ruas e nas assembleias. Foram muitas as vozes femininas, principalmente indígenas, que defenderam nossas bandeiras e tiveram papel fundamental em toda a mobilização.
Evidentemente, na mesa da organização, os três líderes das três principais organizações eram homens. E houve a presença das vice-presidentas de algumas organizações, como a vice-presidente da Conaie, Zenaida Yazacama, e da Ecuarrunari, Nayla Chalan, que são vozes muito poderosas e importantes.
Correio da Cidadania: Qual é a sua opinião sobre este governo e o que podemos esperar para os próximos meses no Equador?
Gabriela Borja: Não estou otimista. O que está acontecendo agora é que vão começar a fazer as avaliações técnicas sobre os diferentes pontos que falamos, para ver como eles podem ser especificados e executados. No entanto, o governo está fazendo coisas que vão além dos pontos e tem a intenção de privatizar ou gerar novas formas de participação privada em setores como a saúde pública. Para isso, dizem que uma vez que não há medicamentos nas farmácias públicas, e assim vão fazer acordos com as farmácias privadas para que os medicamentos cheguem, e o Estado paga as farmácias privadas. Estão gerando mecanismos de roubo público como este em muitos setores.
Se falarmos em termos macroeconômicos, vemos o governo se gabar de ter melhorado os índices nacionais. Mas essa melhora em um curto período significa muitas consequências de longo prazo para nossa economia. Muito do que o governo está fazendo hoje é mal planejado e veremos as consequências no futuro. Agora, vamos amargar mais três anos de um governo Lasso muito antipopular que não vai parar de tomar medidas antipopulares. Acredito que a mobilização em torno dos dez pontos deva ser permanente.
Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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