Correio da Cidadania

Esperanza quer desenvolver o Paraguai investindo na “industrialização, educação e reforma agrária”

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Candidata à presidência do Paraguai pela Frente Guasú-Ñemongeta, a médica Esperanza Martínez, ex-ministra da Saúde e do Bem Estar-Social do governo de Fernando Lugo (2008-2012) e ex-presidente da Comissão da Fazenda e Orçamento do Senado (2020-2021), defende os eixos centrais da campanha para desenvolver o país, “como o investimento na industrialização e na reforma agrária, e a renegociação do Tratado de Itaipu, para gerar recursos necessários ao fortalecimento da saúde e da educação públicas, bem como em novos empreendimentos, como no transporte elétrico”.

Nesta entrevista exclusiva, Esperanza aborda a eleição presidencial de abril de 2023, destaca a importância da frente ampla expressa na “Concertação” de partidos e movimentos progressistas “para vencer e governar” o Paraguai, denuncia os golpes promovidos pelos Estados Unidos na América Latina - “que visam nos debilitar enquanto bloco regional” - e resgata o papel da “Pátria Grande, com visão de integração e solidariedade para podermos avançar e obter melhores resultados para nossos países e povos”.

O que a Frente Guasú-Ñemongeta apresenta de novo ao Paraguai?

A Frente Guasú é uma Concertação em que estamos nove partidos e movimentos políticos, composta por sete senadores. Este processo de construção de uma grande unidade da oposição, que é a concertação para a chapa presidencial, soma o setor progressista e de esquerda, mas também mobiliza e aglutina forças verdes, indígenas e companheiros que até agora vinham se posicionando de forma abstencionista em relação às eleições.

Ñemongeta significa encontro em guarani. É o que foi feito pelo presidente Fernando Lugo antes de 2008, com conversações para debater e construir juntos, espaço político onde se unem as forças progressistas dentro de uma grande concertação.

Realizamos assembleias territoriais nos diversos departamentos [estados] e vamos realizar encontros ampliados com dirigentes de base e departamentais dos diferentes setores sociais, visando consolidar esta lógica de unidade na ação, que vai muito além de um acordo assinado entre dirigentes partidários em Assunção.

Neste momento, qual é o principal desafio?

Acredito que o principal desafio seja precisamente o de chegar à Presidência da República dentro da concertação da grande maioria dos partidos oposicionistas, construindo uma proposta que inclua os dois setores, o progressista e o mais conservador. Queremos que, assim como fizemos em 2008, com o Partido Liberal e Lugo, tenhamos uma composição que represente as duas forças.

Em primeiro lugar, é preciso acordar um Plano de Governo que tenha eixos que nos permitam produzir resultados sociais concretos. Isso será muito importante não apenas pela expectativa criada, como pela necessidade das pessoas.

É preciso dar ao país uma alternância a 70 anos de Partido Colorado, que só esteve fora do poder por 48 meses durante o governo Lugo, entre 2008 e 2012, quando fomos traídos por nossos próprios aliados. Mesmo assim, na disputa eleitoral de 2018 nos faltaram apenas 90 mil votos para o triunfo.

Quais são os eixos de transformação colocados como prioridade?

A mudança do modelo econômico, que é um modelo extrativista em que praticamente não se desenvolveu um processo de industrialização, de valor agregado. Sendo assim, seguimos entregando toda nossa matéria-prima quase sem nenhum processamento.

Dentro da transformação do modelo econômico, o tema da reforma agrária e toda a situação das terras é uma prioridade. Sabemos que há mais de seis milhões de hectares em poucas mãos, resultado da corrupção do período da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) e isso dificulta a adoção de uma nova política agrícola. Somos um país que produz alimentos para cerca de 80 milhões de pessoas no mundo e, no entanto, não conseguimos abastecer a cesta básica dos paraguaios com qualidade, com soberania alimentar, com produtos que protejam tanto o meio ambiente como a qualidade de vida das pessoas.

Há todo um tema estratégico econômico em relação à reforma agrária e à agricultura familiar-camponesa, de modificação desse modelo pecuarista-agro-exportador, um modelo em que 70% dos empregos são informais. Como uma estratégia de luta contra a pobreza, necessitamos melhorar a quantidade e a qualidade dos postos de trabalho.

Outro eixo importante do nosso programa diz respeito à reforma de dois setores extremamente deteriorados, pouco desenvolvidos e que são estratégicos: os sistemas educacional e de saúde. Carente de estrutura e com múltiplas deficiências, particularmente o sistema de saúde se encontrou nas piores condições nesta pandemia e foi alvo de inúmeras reclamações.

Necessitamos de uma reforma fiscal, porque somos um país que tem praticamente 70% da arrecadação vinda do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) e similares [que é de 10% sobre o valor do produto] e não sobre a renda pessoal ou empresarial. Isso faz com que tenhamos um sistema regressivo, injusto, que necessita ser modificado. Precisamos avançar rumo a uma justiça tributária em que quem ganhe mais pague mais e quem ganhe menos pague menos.

Outro tema importante é a renegociação do Tratado de Itaipu, que ocorrerá em 2023. Necessitamos fazê-la de forma soberana para utilizar 50% da nossa energia ou comercializá-la a preço de mercado. Defendemos um preço justo para a energia gerada no Paraguai e também temos o interesse de que possamos utilizar a renda aí produzida para o fortalecimento do nosso próprio sistema elétrico, avançando rumo à construção de um sistema de transporte elétrico público de qualidade, de uma rede interna como valor estratégico para atrair investimentos produtivos, sobretudo de alta empregabilidade.

Mas enquanto temos pautas que são parte importante de um processo de avanço, nos encontramos numa situação econômica em que este governo que sai nos deixará de herança uma dívida pública absurda. Quando Lugo saiu da Presidência em 2012 a dívida pública do país era de 10,2% do PIB e atualmente estamos chegando a quase 37%, 38% do PIB.

Para a farra do capital especulativo.

Exatamente. Portanto, acredito que este é um tema relevante: o desafio de investir na dívida social, ao mesmo tempo em que teremos os serviços da dívida pública herdados. Some-se às dificuldades em termos do que restará da pandemia, do que vai se passar em termos de inflação, de alta do petróleo e do fenômeno Ucrânia. Mais do que problemas locais, há um contexto regional e internacional que, evidentemente, tornam mais complexo o enfrentamento da situação.

Como presidente da Comissão de Orçamento do Senado alertaste sobre os riscos da privatização da Administração Nacional de Eletricidade (ANDE) do Paraguai para a própria Eletrobrás e da necessidade do impeachment de Mario Abdo.

Denunciamos e inclusive tentamos fazer o impeachment do presidente Mario Abdo [em 2020] há dois anos do início do seu governo porque houve uma negociata, denunciada pelo próprio presidente da ANDE, que alertou a população e se negou a assinar o que estava sendo feito de forma completamente oculta e contrária tanto aos interesses do Brasil como do Paraguai.

Um esquema em que estavam envolvidas pessoas muito próximas ao presidente da República. Foi algo tão escandaloso que ditas “negociações” tiveram de ser paralisadas pelo governo paraguaio. Por outro lado, em Yaciretá, o presidente Horácio Cartes (2013-2018) assinou um acordo com a Argentina em que os interesses do Paraguai também foram desconhecidos, contrariando uma linha estratégica de compartilhar tanto os custos como os benefícios do projeto. Assim, novamente, nesta aliança de Cartes com o presidente Mario Abdo - em que são adversários, mas também companheiros e amigos - se protegeram mutuamente.

Como é viver em um país que exporta alimentos em meio à fome de seu próprio povo?

O modelo político e econômico do Paraguai privilegia um pequeno grupo de pessoas. Quase 86% das terras cultiváveis estão nas mãos de somente 5% da população, o que gera todo este modelo agroexportador, concentrador de riquezas, em que os grandes não pagam impostos proporcionais aos lucros que recebem e provocam um êxodo, uma migração interna, de muitos agricultores para as cidades, agravando a pobreza. Além disso, não há um projeto de desenvolvimento industrial e sequer semi-industrial, não há emprego.

Ao mesmo tempo, nossa agricultura familiar não recebe os recursos necessários à produção de alimentos, há muitos despejos de assentamentos, tanto de camponeses quanto de indígenas, algo desumano.

Como foi demonstrado em Curuguaty?

Como foi lastimosamente o exemplo de Curuguaty. Seguem os Curuguaty pelo Paraguai, seguem os camponeses encurralados, agora por uma nova lei que criminaliza e impõe de seis a dez anos de prisão, sem qualquer possibilidade de libertação, aumentando as penas de tal forma que a luta pela justiça social fica ainda mais difícil, tanto para agricultores como para indígenas.

Qual o significado da Pesquisa Permanente de Domicílios (EPH) do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a insegurança alimentar?

Este estudo do Instituto Nacional de Pesquisas revela que uma entre cada quatro famílias paraguaias (25%) foi afetada pela insegurança familiar moderada ou grave, deixando de comer uma ou mais vezes durante a semana ao longo de todo o ano passado. A pesquisa aponta como um dos importantes problemas de acesso à cesta básica o aumento generalizado dos preços e a inflação.

Ao mesmo tempo, sem um sistema de comercialização, de apoio técnico e creditício aos agricultores, e com as dificuldades de transporte - agravadas pela pandemia - temos um país que aumenta o contrabando, a importação de alimentos como o tomate e o pimentão verde. Resultado do nosso modelo extrativista, temos tido dois anos de seca. A isso se soma a crise climática, que só agravou a situação, pois afetou a quantidade e a qualidade da produção.

Diante de uma elite entreguista, que dá as costas às imensas dificuldades do seu próprio povo, como vês a construção desta frente ampla com os setores produtivos?

A Frente Guasú-Ñemongeta é quem coloca estes temas que obrigatoriamente precisamos avançar. E acreditamos que precisamos iniciar o processo de transformação deste modelo realizando um grande cadastro nacional porque, neste momento, temos mais quantidade de terras em títulos do que as reais, havendo sobreposição e falsificação de títulos, vendas, revendas e todo um esquema. Algo viciado, resultado da corrupção e da aliança que tiveram com a ditadura, chegando até governos mais recentes.

Em toda esta disputa existente em relação às terras da reforma agrária, uma minoria termina impondo o seu capital sobre o poder judiciário, acima dos interesses das organizações sociais, indígenas e camponesas.

Este é um tema estratégico que precisamos buscar uma saída, esclarecendo, colocando os pontos nos is. Afinal, são seis milhões de hectares de terras que chamamos mal-habidas (griladas), que são parte do informe da Comissão de Verdade e Justiça formada após a derrubada da ditadura. Temos os nomes, os montantes, os valores pagos, não é algo que se possa continuar jogando para debaixo do tapete.

Há questões referentes à reforma agrária e que deverão ser mais simples de ser enfrentadas, como por exemplo o fato de termos hoje mais de três milhões de hectares sem donos, muitos entregues a assentamentos, mas que não se terminou de legalizar ou cujos títulos não foram repassados. Tudo isso é parte deste processo de corrupção.

É necessário fazer um pacto de justiça social, porque não haverá tranquilidade nem paz sem abordarmos esta questão de forma progressiva e acordada. Precisaremos também de um parlamento à altura e de mudanças no poder judicial que nos ajudem a avançar este processo.

O fato é que é um problema que não podemos desconhecer, porque há despejos, há agricultores presos e assassinados. Portanto, é algo que não se pode esconder e que necessitamos debater entre todos. E resolver.

Como vês o processo de integração para construir o desenvolvimento nacional e caminhar de forma independente?

Acredito que a integração seja uma das agendas políticas da Frente Guasú-Ñemongeta. Temos muito claro o que foi o processo deste novo Plano Condor [campanha de repressão política e terrorismo de Estado promovida pelos Estados Unidos entre 1968 a 1989, que incluiu a tortura e o assassinato de dezenas de milhares de democratas da região], como disse o presidente equatoriano Rafael Correa. Um Plano Condor que se instalou nos últimos anos quando foram aplicados todos esses processos de “golpes suaves”, de instalação de governos ilegítimos, como o que ocorreu no Paraguai, no Equador, no Brasil...

Todos esses processos de instalação de governos de direita apostaram na destruição de ferramentas de integração regional que vinham sendo fortalecidas desde o Mercosul (Mercado Comum do Sul), o Parlasul (Parlamento do Mercosul), a Celac (Comunidade de Estados da América Latina e Caribe) e outros, com essa ideia de que comecemos cada um a negociar de maneira individual e a nos debilitar como bloco regional para enfrentar problemas que são comuns, com as características próprias de cada país, de cada cultura, de cada nação.

Porque temos uma identidade e um conceito de Pátria Grande, que há tempo estamos trabalhando e construindo, compreendendo a América Latina como articulação que nos permita negociar como bloco diante de estruturas políticas, econômicas e de poder que estão se desenhando.

Temos hoje um mundo multipolar em que a maioria dos grandes países vai se aglutinando em termos de bloco de negociação coletiva e a América Latina tem que adotar sua identidade regional para tratar de forma conjunta.

Teria sido muito diferente o combate à pandemia, o acesso à vacina, e mesmo os preços dos medicamentos se os 20 ou 30 países da região tivéssemos negociado conjuntamente, antes da extorsão feita pela indústria farmacêutica, que impôs cláusulas leoninas nos contratos. É mais do que clara a necessidade de apostarmos na integração regional, tanto a nível econômico, político, social, quanto cultural.

Além disso, se pensarmos de forma complementar e solidária, em que um país pode produzir alimentos, outro entra com energia, outro possui lítio, outro petróleo. Poderíamos trocar entre nós para baratear custos, para poder dinamizar nossas economias nacionais com uma visão de integração e com uma agenda em que possamos dialogar e construir sobre pontos comuns, para negociar com mais força diante de outras esferas, a fim de obter melhores resultados para nossos países e povos.

Leonardo Wexell Severo é jornalista.

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