Plebiscito constitucional chileno: rumo a um novo consenso
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- Rossana Castiglioni
- 08/09/2022
No domingo, 4 de setembro, o Chile celebrou a eleição mais importante desde a transição para a democracia, ou talvez a mais relevante de toda sua história. Essa eleição teve o propósito de permitir que os chilenos e chilenas aprovassem ou rejeitassem, através de um plebiscito de ratificação, a nova Constituição redigida por uma Convenção Constituinte paritária conformada por 155 membros eleitos diretamente pelos cidadãos.
A decisão de dar ao eleitorado a oportunidade de manifestar seu acordo ou não com a redação de uma nova Constituição e eleger o mecanismo para fazê-lo se materializou em 15 de novembro de 2019, através de um pacto assinado pelos principais partidos políticos com representação parlamentar. O chamado Acordo de Paz Social e a Nova Constituição foi a resposta desesperada de uma classe política que se viu completamente dominada por uma crise de legitimidade de proporções bíblicas.
Esta crise alcançou seu clímax durante a eclosão social, que começou em 18 de outubro de 2019, quando milhares de chilenos e chilenas saíram às ruas em massa, durante várias semanas, para manifestar seu descontentamento e demandar mudanças. Um ano depois, quase 80% dos eleitores que participaram do chamado plebiscito de entrada de 25 de outubro de 2020 estiveram de acordo com a redação de uma nova carta magna pela Convenção Constituinte eleita pelos cidadãos.
Este apoio contundente a uma nova Constituição contrastou fortemente com o resultado da eleição celebrada no domingo, 4 de setembro. De fato, 62% dos que foram às urnas durante a jornada rejeitaram a Constituição proposta. Em termos práticos, isto significa que a Constituição vigente, escrita (apesar dos ajustes que sofreu desde então) durante a ditadura militar presidida por Augusto Pinochet, permanece válida.
O triunfo do “rechaço” no domingo estava dentro do esperado, ao menos se levarmos em consideração que praticamente todas as pesquisas de opinião realizadas durante as semanas anteriores previam este resultado. Entretanto, o resultado desta eleição foi, sem dúvida, surpreendente ao menos três sentidos.
Primeiro, ninguém antecipou que o “rechaço” prevaleceria com tanta folga, superando o “aprovo” em 24 pontos. Segundo, em 97% das comunas e em todas as regiões do país (incluindo a Região Metropolitana de Santiago), o eleitorado rejeitou o texto constitucional proposto. Terceiro, mesmo considerando que nesta eleição se instaurou o voto obrigatório com registro automático, o nível de participação foi inusitadamente alto para o Chile. Em um país onde a participação eleitoral vinha caindo desde a transição, atingindo um patamar de cerca de 50%, é surpreendente que no plebiscito de saída tenha alcançado 85% do eleitorado. Consequentemente, o triunfo do “rechaço” foi, sem dúvida, tão contundente quanto transversal.
As causas deste resultado categórico são provavelmente diversas e levará algum tempo para desvendarmos suas raízes. No entanto, pode-se especular algumas explicações preliminares. Por um lado, a Convenção Constitucional experimentou uma queda nos níveis de confiança e não foi isenta dos mesmos problemas de legitimidade que afetaram a elite política. De acordo com a pesquisa Pulso Ciudadano, em julho de 2021, 73% dos entrevistados manifestaram níveis altos ou intermediários de confiança na Convenção, mas esse número caiu progressivamente até alcançar 39% em junho de 2022.
Muito provavelmente a desconfiança dos membros da Convenção tenha se traduzido em uma rejeição ao texto que produziram. Em segundo lugar, a composição da Convenção mostrou-se problemática. Boa parte dos membros, que se apresentaram como independentes, carecia de experiência política prévia, o que provavelmente dificultou as negociações e favoreceu uma visão centrada nos objetivos particularistas e maximalistas. Terceiro, o texto constitucional proposto enfatizou aspectos que provavelmente não refletiam nem as preferências nem as prioridades dos cidadãos.
Por último, alguns aspectos chave da Constituição proposta não foram comunicados de forma clara e foram apresentados apelando para um discurso que gerou altos níveis de suspeição e incerteza entre uma cidadania que está à beira do limite há três anos. Muito provavelmente, os níveis relativamente baixos de aprovação da gestão do governo por parte dos cidadãos não contribuíram para cimentar o apoio à nova Constituição.
Quaisquer que sejam as possíveis causas deste resultado, a interpretação óbvia dos resultados eleitorais contrastantes do plebiscito de entrada e saída é que os cidadãos querem que as coisas mudem, mas não na direção que a Constituição proposta estabeleceu. Como resultado, o que provavelmente deve vir num futuro próximo é um novo processo de mudanças constitucionais que capture os corações e mentes dos cidadãos.
De imediato, esta nova etapa exigirá uma mudança de gabinete, que reforce a presença de atores políticos com ampla experiência, que sejam capazes tanto de se engajar em um diálogo fluido com a oposição quanto de estabelecer acordos amplos e inclusivos. O Congresso terá um papel crucial para enfrentar os desafios políticos trazidos por este resultado eleitoral e o governo do presidente Gabriel Boric terá de trabalhar arduamente para promover maiores níveis de coesão dentro de uma esquerda altamente fragmentada. A oposição deverá cumprir o compromisso assumido com a cidadania de “rejeitar para reformar”, evitando a tentação de optar por mudanças cosméticas que não respondam ao profundo descontentamento que levou à eclosão social.
Promover uma agenda de mudanças constitucionais em um país polarizado e desencantado não será fácil e exigirá que os partidos políticos e líderes estejam dispostos a negociar, ceder e tomar decisões difíceis sobre temas complexos. Um importante desafio a ser vencido é que nenhuma força política conta com maioria no Congresso. Por esta razão, será imperativo que os partidos e atores políticos de ambos os lados estejam dispostos a construir uma ampla coalizão, promover a disciplina dentro do Congresso e comportar-se com um nível significativo de responsabilidade e generosidade.
Rossana Castiglioni é decana da Faculdade de Ciências Sociais e História da Univ. Diego Portales (Chile). Doutora em Ciência Política pela Universidade de Notre Dame (EUA). Foi professora visitante nas universidades de Harvard, Leiden y Oxford e no Kellogg Institute for International Studies.
Fonte: Latino América 21.