Líder peruano convoca povo “pela democracia e nova Constituição”
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- Leonardo Wexell Severo
- 12/11/2022
Marino Flores González, coordenador nacional das Organizações Agrárias, da Assembleia Nacional dos Povos e consultor da Central Única das Rondas Camponesas do Peru (Reprodução)
“Nunca na história do Peru construímos uma coalizão tão ampla de forças pela democracia, o governo e a nova Constituição. Nos dias 9 e 10 de novembro demos uma contundente resposta à guerra judicial, política e social travada pela Promotoria, representando os grandes grupos econômicos de poder dos Fujimori, Montesinos e sua mídia, que querem afastar o presidente Pedro Castillo para instalar o governo da lavagem do dinheiro, do narcotráfico e das transnacionais”.
A afirmação é de Marino Flores González, coordenador nacional das Organizações Agrárias, da Assembleia Nacional dos Povos e consultor da Central Única das Rondas Camponesas do Peru (CUNAR), “rechaçando contundentemente os atropelos movidos pela Promotoria, numa campanha multimilionária, macartista, terrorista e totalmente desigual”. Por meio de uma nova manobra do Ministério Público, a ultradireita pretende “suspender” Castillo com menos votos do que os exigidos para um impeachment.
Em entrevista exclusiva, Marino Flores esclareceu que “estamos nos confrontando contra assassinos, verdadeiros delinquentes, corruptos corroídos de insanidade que reduziram um país rico e produtivo a pesadelo dos pais de família. O Peru estampa 50% de anemia, 14% de desnutrição crônica e 9% de desnutrição aguda. Antes éramos produtores, hoje importamos 80% do milho dos Estados Unidos. A ultradireita nos transformou no reino dos monopólios e oligopólios estrangeiros”, condenou.
Conforme o líder camponês, “este é um momento decisivo em que precisamos unir governo e povo para que sejam cumpridas as promessas de campanha e fazer valer um voto que tem significado de identidade e de mudança”. Para este novo momento, enfatizou, “é essencial uma nova Constituição”.
Qual o propósito da ocupação de Lima, defendida pelos movimentos sociais?
Nunca na história do Peru construímos uma coalizão tão ampla de forças pela democracia, o governo e a nova Constituição. Nos próximos dias 9 e 10 de novembro daremos uma contundente resposta à guerra judicial, política e social travada pela Promotoria, representando os grandes grupos econômicos de poder dos Fujimori, Montesinos e sua mídia, que querem afastar o presidente Castillo para instalar o governo da lavagem do dinheiro, do narcotráfico e das transnacionais.
O tema da Constituinte não é novo, é algo que viemos lutando durante muitos anos. Batalhamos para mudar a Constituição de 1993 por considerá-la neoliberal, feita à imagem e semelhança dos interesses dos grandes grupos de poder e da nova oligarquia.
Obviamente, o que essa Constituição conseguiu nestes anos foi cavar uma enorme distância entre o povo peruano e um minúsculo grupo de 14 famílias muito poderosas que comandam o país e grandes empresas transnacionais. Gente que açambarcou o mercado, tomou de assalto as finanças, as indústrias farmacêutica e de alimentos, e todos os grandes meios de comunicação. Ao mesmo tempo também conseguiu destruir o pouco que havia de pesquisa, ciência e tecnologia no país. Conseguiram retirar do Estado o papel de regulação, propulsão e investimento, reduzindo a tal ponto que não possa intervir em nada, fazendo com passe a ser subsidiário e mero sustentáculo do grande capital. Então, fortaleceram o modelo primário-extrativo, primário-exportador, o modelo medieval “encomendero” [feito para atender o exterior], que tem perdurado nestes 500 anos até a atualidade.
Neste último período, tomaram de assalto as empresas que eram importantes para o desenvolvimento nacional e agora nos encontramos numa situação bastante complexa porque temos cerca de 70% da Amazônia sob concessão, assim como 65% da Cordilheira dos Andes e 20% da faixa costeira.
Em termos práticos, o que significa essa “concessão”?
À medida que os grandes “investidores” acertam com o Estado, avançam na exploração dos setores de hidrocarbonetos e de minerais. No caso de Cajamarca, 65% do subsolo já está concessionado. Ali são oito grandes projetos mineiros que estão sendo explorados, mas há outros parados [mantidos como sua reserva], como o projeto Conga – que destrói as fontes de água – no qual diziam que iriam investir 4 bilhões de dólares.
No país temos a costa do Pacífico, a Amazônia e a Cordilheira dos Andes. Para nós, está claro que os bosques geram a água e na Cordilheira ela fica armazenada, para depois baixar à faixa costeira. Estou falando da água doce. A água é vida, é produção, é o principal elemento para a existência dos animais, das plantas e dos seres humanos. Portanto, há um problema também com a desertificação das geleiras e, para isso, acreditamos que o respeito à selva e seu reflorestamento deve ser um elemento muito importante. Grande parte da Amazônia está sendo destruída por madeireiras, projetos minerais e petrolíferas.
Concluindo, a Constituição de 1993 excluiu os povos originários, os indígenas e os afrodescendentes e, praticamente, deixou de lado as mulheres. Não é somente um problema econômico, estamos falando da exclusão de direitos, da vida social e política do país, o que faz com que acreditemos que esta concepção retrógrada tenha chegado ao fim.
Apesar disso, ainda não conseguimos nos colocar de acordo de como encaminhar um único projeto, uma só alternativa e saída.
Porém, há pontos chaves como esse da reversão da privatização e da desnacionalização.
Há problemas estabelecidos na Constituição [de Fujimori] pelos famosos contratos-lei que impedem qualquer mudança. Se quiseres modificar esses contratos, alterar cláusulas impositivas contrárias ao interesse público ou mesmo renegociá-las, a Constituição barra, não deixa. Isso demonstra a urgência da sua modificação.
E há contratos que não são contratos-lei, que é por onde deveriam iniciar as mudanças, o que significaria termos clareza em termos de governo, mas também um consenso da parte dos movimentos sociais, dos trabalhadores da cidade e do campo. O governo Castillo se comprometeu com a mudança e apresentou um projeto de lei, mas de forma fria.
Como assim, de forma fria?
Se bem é fruto da luta que travamos em 18, 19 e 21 de maio deste ano, o projeto foi lançado sem um prévio acordo nacional. E quando se apresenta algo deste peso sem um lastro, fica um pouco confuso. Então o que o Congresso fez foi arquivar. E está arquivado porque, neste caso, a Constituição de 1993 também não permite ao executivo convocar um referendo. Nem o legislativo pode fazê-lo. O que o parlamento pode fazer é modificar o artigo e aprovar a necessidade de um referendo consultivo. Foi também colocado um cadeado aí, que precisa ser rompido pelo legislativo. Mas este parlamento jamais irá fazê-lo. Então estamos nos colocando de acordo em ir à luta por um referendo.
E quais seriam os próximos passos para a realização desta consulta popular?
Um referendo implica em termos de coletar 10% de assinaturas [dos cerca de 25,5 milhões de eleitores]. O que estamos fazendo é nos reunir com as diferentes forças de esquerda e das organizações populares a fim de constituir uma grande frente progressista em um movimento social, político e cidadão.
As condições estão dadas, o que estamos propondo ao governo é instalar o processo Constituinte com o aprofundamento da democracia e o fechamento do atual Congresso. Entendemos que nesta ação devemos estar unidos, movimento e governo, pois estas duas forças são uma potência quando conjugadas. É para isso que estamos trabalhando a ocupação de Lima.
A ultradireita fala em violência.
Diferente do que os golpistas dizem isso não implica em violência, mas em estampar que somos um país profundamente desigual, mas também com uma cultura e uma história milenar muito potente. Este seria o movimento para que se pudesse fundar o grande Tahuantinsuyo, o império socialista dos incas, que é uma lenda, mas que tem as suas bases, cuja capital foi Cusco e se estendeu a toda a costa que conhecemos.
Façamos uma breve retomada histórica com Velazco Alvarado (1968-1975), que foi quem conseguiu romper com o latifúndio, com a oligarquia rural, dissolveu os feudos e entregou as terras aos servos e aos semiescravos. No entanto, esta reforma agrária foi fundamentalmente de distribuição de terras e de criar algumas condições, como a das cooperativas agrícolas, para que se pudesse trabalhar no campo e sair das condições desumanas a que eram submetidos os povos originários, camponeses e indígenas. Lamentavelmente, Velazco não conseguiu concluir este processo.
Veio o golpe de Estado de Francisco Morales Bermúdez (1975-1980) e a ditadura logo começou a reverter tudo isso. Desde aí temos o trágico papel de Belaunde Terry em seus dois governos (1963-1968 e 1980-1985) e de Alan Garcia (1985-1990 e 2006-2011), da máfia montesinista (Vladimir Montesinos, conselheiro do ex-presidente Alberto Fujimori entre 1990 e 2000). Porém, quando se anula a reforma agrária é com Fujimori, com Chlimper, seu ministro da Agricultura, um dos novos latifundiários da agroexportação, representante da nova oligarquia.
A reforma fujimorista se resumia em cinco pontos, com investimentos públicos para os novos latifundiários: entrega de terras; doação, da infraestrutura hídrica; o “cholo barato” – o escravo moderno, que trabalha de 12 a 14 horas diárias, quando se descobriu que colocavam fralda nas mulheres para que não perdessem tempo; exoneração e sonegação tributária – com a qual o Estado perde centenas de milhões de dólares todos os anos; e a imposição dos Tratados de Livre Comércio (TLCs).
Além disso, lhes dão de mão beijada toda a estrutura produtiva para que entrem com altíssima ciência e tecnologia, somada aos TLCs com tarifa zero. Portanto, os agroexportadores levam para fora e, também, trazem a nossa produção para cá, sufocando e matando os nossos produtores. Produzimos arroz suficiente para todos os peruanos, mas ele vai para a Tailândia. E o pior é que volta para ser vendido ao preço imposto por eles. Há uma completa distorção. Esta foi a reforma agrária do fujimorismo. Esta lei tem 23 anos, período em que a agroexportação surgiu para beneficiar uma nova oligarquia, com as cooperativas passando às mãos destes latifundiários, construindo grandes monopólios transnacionais, subtraindo terras dos pequenos e médios produtores, como no caso do açúcar e do leite. Isso foi conseguido não só a partir do assalto à terra e da água, como da produção e do mercado. Isso é a agroexportação peruana, que espalha fome e miséria.
Como reverter esta situação tão calamitosa?
Nós apresentamos ao governo de Pedro Castillo a proposta de uma segunda reforma agrária com base no que havíamos avançado em termos de agenda comum.
Em primeiro lugar, havíamos dito claramente que a água é o fator central se queremos ter uma produção sustentável. Os outros pontos eram o da revolução produtiva, frisando a necessidade de que se assegure a segurança jurídica da terra e da democratização do mercado, com a proteção da produção nacional, o financiamento e o cooperativismo.
Estas bandeiras estiveram presentes na plataforma da grande greve que realizamos em 2019 e que retornaram como agenda na proposta apresentada aos candidatos presidenciais em 2021.
Infelizmente, já passou mais de um ano e este governo ainda não conseguiu construir esta segunda reforma agrária. Foi quando decidimos apresentar a partir das nossas organizações uma proposta ao Congresso da República e ao executivo. Em ambas as instâncias estão caminhando lentamente, mas seguem em frente, pensadas para os 2,2 milhões de produtores agrários.
No caso peruano, 40% das terras cultiváveis encontram-se nas mãos dos grandes latifundiários e 60% dos médios e pequenos produtores. Aqui o bom é que a maioria deste percentual é marcada pela presença das comunidades agrícolas e indígenas, o que implica em comunidade coletiva. Estão sendo destruídas, mas resistem.
Como ainda há parcelas com o Estado, defendemos que sejam redistribuídas, com limitações aos grandes proprietários e o estímulo aos pequenos. Precisamos impor um limite ao máximo e também ao mínimo, porque não podemos ter camponeses com tão somente meio hectare, porque isso não é mais possível.
Quais são as bases de sustentação desta nova reforma agrária?
Não defendemos o caminho da expropriação, mas o de três pilares fundamentais. Devido à água, temos a costa, que de alguma forma tem irrigação; a Amazônia que é bastante chuvosa; e a zona andina dos quais 76% é seca – que depende exclusivamente das chuvas. Isso é muito variável e se agravou com a mudança climática. Aí vem os fenômenos de graves secas ou chuvas torrenciais. Diante disso, propomos que a água disponível deve ser bem distribuída.
É o que chamamos de plantar e semear águas da chuva, pois é muito o que se desperdiça. Precisamos também proteger os bosques, que são as nossas fontes de água, os ecossistemas, ameaçados por projetos mineiros e petrolíferos. É preciso também reflorestar e proteger nossas águas subterrâneas. Porque a população cresce e logo começa a disputa por fontes de água, que são finitas. Hoje somos 32 milhões de peruanos e em poucas décadas isso duplicará.
Outro pilar é a produção. Estamos falando de produzir melhor, qualidade e sustentabilidade, e para isso necessitamos de tecnificação urgente. Estamos falando de investimento em pesquisa, ciência e tecnologia, de fortalecimento da indústria nacional. Daí a importância da unidade do transporte ferroviário e rodoviário, da conexão com o ramo marítimo. Por isso precisamos superar caminhos limitados onde só circulam mulas ou cavalos.
Precisamos valorizar as nossas 3.500 variedades de batatas, recuperar a nossa soberania alimentar que multinacionais como a Monsanto, com os seus transgênicos, querem destruir. Precisamos criar instituições para resolver rapidamente a titularidade da terra e enfrentar os grandes projetos madeireiros, mineiros e de hidrocarbonetos, que buscam a exploração e o oligopólio.
Como esta ação dos oligopólios de alimentação prejudica os produtores e consumidores?
Quem manipula toda a indústria alimentar no Peru é a Alicor e o Grupo Glória, proprietárias de milhões de hectares de terras e de indústrias. Quem sobe o preço azeite? E dos ovos? São transnacionais que acordam e determinam o preço, amarram tudo.
O Estado compra mais de quatro bilhões de sóis (mais de um bilhão de dólares) em programas sociais e não compra nada do produtor. Este valor é o dobro do orçamento do Ministério da Agricultura, mas fica vinculado a oligopólios. Com o preço nas alturas, multiplicam a fome.
Assim o Peru estampa 50% de anemia, 14% de desnutrição crônica e 9% de desnutrição aguda. Antes éramos produtores, hoje importamos 80% do milho dos Estados Unidos. A dependência nos transformou no reino dos monopólios e oligopólios estrangeiros
Por isso defendemos que o nosso voto tem o significado de identidade e de mudança. Nosso povo esteve unido e ganhou uma campanha multimilionária, macartista, terrorista, totalmente desigual, em que os grupos econômicos e a grande mídia jogaram tudo e sujo. E mesmo assim perderam.
Agora a estratégia da ultradireita é depor o atual governo a todo custo. O nosso compromisso é retomar o país e implantar um projeto democrático, de desenvolvimento, que rompa com as amarras do atraso e da dependência.
Leonardo Wexell Severo é jornalista.
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